segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Existe foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade administrativa?



Olá amigos do Dizer o Direito,

Depois de inúmeros pedidos dos leitores e de muito estudar e pesquisar sobre o tema, decidimos tratar aqui a respeito de um dos temas atualmente mais difíceis e polêmicos sobre Direito Administrativo: a existência ou não de foro por prerrogativa de função (“foro privilegiado”) nas ações de improbidade administrativa.

Vamos tentar dar aqui as informações mais seguras, ressaltando, no entanto, que se trata de assunto extremamente polêmico e que ainda não existe uniformidade na jurisprudência.

Nosso estudo divide-se em 9  pontos de destaque:

1) Natureza cível da ação de improbidade
A ação de improbidade administrativa possui natureza cível. Em outras palavras, é uma ação civil e não uma ação penal.

Existe foro por prerrogativa de função no caso de ações cíveis?
NÃO. Em regra, somente existe foro por prerrogativa de função no caso de ações penais e não em demandas cíveis.
Ex1: se for proposta uma ação penal contra um Deputado Federal, esta deverá ser ajuizada no STF.
Ex2: se for ajuizada uma ação de cobrança de dívida contra esse mesmo Deputado, a demanda será julgada por um juízo de 1ª instância.

Por que existe essa diferença?
Porque a Constituição assim idealizou o sistema. Com efeito, as competências do STF e do STJ foram previstas pela CF/88 de forma expressa e taxativa.
No arts. 102 e 105 da CF/88, que preveem as competências do STF e do STJ, existe a previsão de que as ações penais contra determinadas autoridades serão julgadas por esses Tribunais. Não há, contudo, nenhuma regra que diga que as ações de improbidade serão julgadas pelo STF e STJ.


2) Lei n.° 10.628/2012 previu foro por prerrogativa de função para a ação de improbidade:
Em 24/12/2002, foi editada a Lei n.° 10.628, que acrescentou o § 2º ao art. 84 do CPP, prevendo foro por prerrogativa de função para as ações de improbidade. Veja:
Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.
(...)
§ 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei n.° 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.

3) ADI 2797
Diante dessa alteração legislativa, foi proposta a ADI 2797 contra a Lei n.° 10.628/2002 e o STF julgou inconstitucional o referido § 2º do art. 84 do CPP, decisão proferida em 15/09/2005.
O Supremo decidiu que “no plano federal, as hipóteses de competência cível ou criminal dos tribunais da União são as previstas na Constituição da República ou dela implicitamente decorrentes. (...) Quanto aos Tribunais locais, a Constituição Federal - salvo as hipóteses dos seus arts. 29, X e 96, III -, reservou explicitamente às Constituições dos Estados-membros a definição da competência dos seus tribunais, o que afasta a possibilidade de ser ela alterada por lei federal ordinária.” (ADI 2797, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 15/09/2005).
Em suma, o STF afirmou que, como a Constituição não estabeleceu foro por prerrogativa de função para as ações de improbidade administrativa, a lei ordinária não poderia prever.
Desse modo, com a decisão da ADI 2797, ficou prevalecendo o entendimento de que as ações de improbidade administrativa deveriam ser julgadas em 1ª instância.

4) Reclamação 2138/DF: agentes políticos sujeitos aos crimes de responsabilidade da Lei n.° 1.079/50 não respondem por improbidade administrativa
O MPF ajuizou uma ação de improbidade administrativa contra um Ministro de Estado.
A ação foi proposta na Justiça Federal de 1ª instância, que condenou o Ministro à perda do cargo e à suspensão de seus direitos políticos.
Diante dessa decisão, o requerido ingressou com uma reclamação no STF formulando a seguinte tese:
O Ministro de Estado é um agente político e os agentes políticos já respondem por crimes de responsabilidade, previstos na Lei n.° 1.079/50.
As condutas previstas na Lei de improbidade administrativa em muito se assemelham aos crimes de responsabilidade trazidos pela Lei n.° 1.079/50. Logo, caso os agentes políticos respondessem também por improbidade administrativa, haveria bis in idem.

Nessa ocasião, o STF acolheu a tese?
SIM. O STF decidiu que a Lei de Improbidade Administrativa não se aplica aos agentes políticos quando a conduta praticada já for prevista como crime de responsabilidade (Lei n.° 1.079/50).
O STF entendeu que punir o agente político por improbidade administrativa e por crime de responsabilidade seria bis in idem e que deveria ser aplicada apenas a Lei n.° 1.079/50, por ser mais específica (princípio da especialidade).

A Lei n.° 1.079/50 prevê crimes de responsabilidade para os seguintes agentes políticos:
1) Presidente da República;
2) Ministros de Estado;
3) Procurador-Geral da República;
4) Ministros do STF;
5) Governadores;
6) Secretários de Estado.

Segundo decidiu o STF na ocasião, para que o agente político não responda por improbidade administrativa é necessário o preenchimento de duas condições:
a) Esse agente político deverá ser uma das autoridades sujeitas à Lei n. 1.079/50;
b) O fato por ele praticado deverá ser previsto como improbidade administrativa e também como crime de responsabilidade.

Veja trechos da ementa:
(...) Os atos de improbidade administrativa são tipificados como crime de responsabilidade na Lei n° 1.079/1950, delito de caráter político-administrativo.
(...) A Constituição não admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos: o previsto no art. 37, § 4º (regulado pela Lei n° 8.429/1992) e o regime fixado no art. 102, I, "c", (disciplinado pela Lei n° 1.079/1950). Se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, § 4º) pudesse abranger também atos praticados pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-ia uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, "c", da Constituição.
(...) Os Ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, "c"; Lei n° 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa (Lei n° 8.429/1992).
(...) Compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar os delitos político-administrativos, na hipótese do art. 102, I, "c", da Constituição. Somente o STF pode processar e julgar Ministro de Estado no caso de crime de responsabilidade e, assim, eventualmente, determinar a perda do cargo ou a suspensão de direitos políticos.
(...) Incompetência dos juízos de primeira instância para processar e julgar ação civil de improbidade administrativa ajuizada contra agente político que possui prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, por crime de responsabilidade, conforme o art. 102, I, "c", da Constituição.
III. Reclamação Julgada Procedente.
(Rcl 2138, Rel. p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 13/06/2007)


Vale ressaltar que o resultado do julgamento acima foi extremamente polêmico e conquistado por uma apertada maioria de votos (6x5). O placar foi o seguinte:

Julgando PROCEDENTE a reclamação
Julgando IMPROCEDENTE a reclamação
Min. Nelson Jobim
Min. Ellen Gracie
Min. Maurício Corrêa
Min. Ilmar Galvão
Min. Cezar Peluso
Min. Gilmar Mendes

Obs: atualmente, apenas o Min. Gilmar Mendes continua no STF.
Min. Carlos Velloso
Min. Sepúlveda Pertence
Min. Celso de Mello
Min. Marco Aurélio
Min. Joaquim Barbosa


Permanecem no STF os Ministros Marco
Aurélio, Joaquim Barbosa e Celso de Mello.


5) Pet 3211/DF: a competência para julgar ação de improbidade administrativa proposta contra Ministro do STF é do próprio STF
O MPF ajuizou uma ação de improbidade administrativa contra o Min. Gilmar Mendes, questionando atos por ele praticados na época em que foi Advogado Geral da União.
A ação foi proposta na Justiça Federal de 1ª instância.
Como o requerido era Ministro do STF, iniciou-se uma discussão sobre de quem seria a competência para julgar a causa.
O STF decidiu, então, que a competência para julgar uma ação de improbidade contra um dos Ministros do Supremo seria do próprio Tribunal (Pet 3211 QO, Relator p/ Acórdão Min. Menezes Direito, Tribunal Pleno, julgado em 13/03/2008).

6) Rcl 2.790/SC: a Corte Especial do STJ, no julgamento dessa reclamação, chegou a duas conclusões importantes:
a) Os agentes políticos se submetem à Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), com exceção do Presidente da Republica.
b) Existe foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade administrativa.

a) Agentes políticos se submetem à Lei de Improbidade Administrativa
O STJ discordou do entendimento do STF manifestado na Reclamação 2138/DF e afirmou que os agentes políticos respondem sim por improbidade administrativa, com exceção do Presidente da República. Veja trecho da ementa:
(...) Excetuada a hipótese de atos de improbidade praticados pelo Presidente da República (art. 85, V), cujo julgamento se dá em regime especial pelo Senado Federal (art. 86), não há norma constitucional alguma que imunize os agentes políticos, sujeitos a crime de responsabilidade, de qualquer das sanções por ato de improbidade previstas no art. 37, § 4.º. Seria incompatível com a Constituição eventual preceito normativo infraconstitucional que impusesse imunidade dessa natureza. (...)
(Rcl 2790/SC, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Corte Especial, julgado em 02/12/2009)

b) Foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade
Outra conclusão do julgado foi a de que seria possível o foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade administrativa.
Assim, segundo foi decidido, o STJ possuiria competência implícita para julgar as ações de improbidade administrativa propostas contra os agentes públicos que estivessem sob sua jurisdição penal originária.
Em outros termos, concluiu-se que, se a autoridade tivesse foro privativo no STJ em matéria criminal, teria também a prerrogativa de ser julgado no STJ em caso de ação de improbidade.
Exemplo: se fosse proposta uma ação de improbidade contra um Desembargador, contra um Conselheiro do TCE ou contra o Governador do Estado, essa ação deveria ser julgada pelo STJ. O raciocínio era o seguinte: já que o STJ tinha competência para julgar as ações penais contra esses agentes públicos, teria também, implicitamente, competência para julgar as ações de improbidade.
Confira o trecho da ementa que espelhou essa conclusão:
(...) norma infraconstitucional não pode atribuir a juiz de primeiro grau o julgamento de ação de improbidade administrativa, com possível aplicação da pena de perda do cargo, contra Governador do Estado, que, a exemplo dos Ministros do STF, também tem assegurado foro por prerrogativa de função, tanto em crimes comuns (perante o STJ), quanto em crimes de responsabilidade (perante a respectiva Assembléia Legislativa). É de se reconhecer que, por inafastável simetria com o que ocorre em relação aos crimes comuns (CF, art. 105, I, a), há, em casos tais, competência implícita complementar do Superior Tribunal de Justiça. (...)
(Rcl 2790/SC, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Corte Especial, julgado em 02/12/2009)


7) Caso seja provocado, o Plenário do STF manterá o mesmo entendimento manifestado na Reclamação 2138/DF (julgada em 2007)?
Provavelmente não. Essa é a análise feita pelos estudiosos que analisam a jurisprudência do STF, sendo também a previsão realizada pela Corte Especial do STJ (AgRg na Rcl 12.514-MT).

Essa previsão é baseada em decisões monocráticas já proferidas pelos Ministros, negando que os agentes políticos tenham foro por prerrogativa de função no STF para as ações de improbidade administrativa. Veja o quadro atual:

Não admitem foro privativo no STF para ações de improbidade contra agentes políticos
Admite foro privativo no STF para ações de improbidade contra agentes políticos
Min. Celso de Mello (Pet 5.080, DJ 01/08/13)
Min. Marco Aurélio (Rcl 15.831, DJ 20/06/13)
Min. Joaquim Barbosa (Rcl 15.131 DJ 04/02/13)
Min. Cármen Lúcia (Rcl 15.825, DJ 13/06/13)
Min. Rosa Weber (Rcl 2.509, DJ 06/03/2013)
Min. Luiz Fux (MS 31.234, DJ 27/03/12)

O Ministro Ari Pargendler, do STJ, em voto no qual faz um belo estudo sobre o tema acima exposto, afirma textualmente:
“Salvo melhor juízo, o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Reclamação nº 2.138, DF, constituiu um episódio isolado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e tudo leva crer que não se repetirá à vista de sua nova composição.” (AgRg na Rcl 12.514-MT, Rel. Min. Ari Pargendler, julgado em 16/9/2013).

Desse modo, existe uma tendência de que o Plenário do STF, se novamente provocado, decida que as ações de improbidade contra autoridades com foro por prerrogativa de função sejam julgadas em 1ª instância e não no STF.


8) AgRg na Rcl 12.514-MT: o STJ volta atrás e solidifica o entendimento de que NÃO existe foro por prerrogativa de função em ações de improbidade administrativa mesmo se propostas contra agentes políticos que são julgados penalmente no STJ.

Segundo decidiu a Corte Especial do STJ, “a ação de improbidade administrativa deve ser processada e julgada nas instâncias ordinárias, ainda que proposta contra agente político que tenha foro privilegiado no âmbito penal e nos crimes de responsabilidade.” (AgRg na Rcl 12514/MT, Rel. Min. Ari Pargendler, Corte Especial, julgado em 16/09/2013).


9) Conclusões:
Conforme já ressaltado no início, o tema exposto é polêmico e não há garantias de que as conclusões aqui demonstradas se confirmem na jurisprudência, até porque os Ministros podem mudar de entendimento.

No cenário atual, contudo, é possível expormos as seguintes conclusões:

9.1) Não existe foro por prerrogativa de função em ações de improbidade administrativa (posição do STF e do STJ).

9.2) O STJ entende que os prefeitos podem responder por improbidade administrativa e também pelos crimes de responsabilidade do Decreto-Lei 201/67 (ex: REsp 1066772/MS).
A ação de improbidade administrativa contra os prefeitos será julgada em 1ª instância.

9.3) Para o STJ, os agentes políticos se submetem à Lei de Improbidade Administrativa, com exceção do Presidente da República.
Logo, é possível que os agentes políticos respondam pelos crimes de responsabilidade da Lei n.° 1.079/50 e também por improbidade administrativa.

9.4) Para o STJ, a ação de improbidade administrativa deve ser processada e julgada em 1ª instância, ainda que tenha sido proposta contra agente político que tenha foro privilegiado no âmbito penal e nos crimes de responsabilidade.
Logo, para o STJ, as ações de improbidade administrativa propostas contra:
• Governadores de Estado/DF;
• Desembargadores (TJ, TRF ou TRT);
• Conselheiros dos Tribunais de Contas (dos Estados, do DF ou dos Municípios);
• Membros do MPU que oficiem perante tribunais.

Devem ser julgadas pelo juiz de 1ª instância (e não pelo STJ).

9.5) O STF já decidiu, em 2007, que os agentes políticos sujeitos aos crimes de responsabilidade da Lei n.° 1.079/50 não respondem por improbidade administrativa  (Rcl 2138/DF). Existe uma grande probabilidade de que a atual composição da Corte modifique esse entendimento.

9.6) O STF já decidiu, em 2008, que a competência para julgar ação de improbidade administrativa proposta contra Ministro do STF é do próprio STF (Pet 3211/DF QO).

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