segunda-feira, 9 de maio de 2016

Decisão do Presidente interino da Câmara que anulou autorização de impeachment não tem consistência jurídica


O país foi sacudido hoje com mais um capítulo no enredo envolvendo o processo de impeachment da Presidente Dilma.

O Presidente em exercício da Câmara dos Deputados, Waldir Maranhão (PP-MA), proferiu decisão anulando a sessão da Câmara que autorizou o processo de impeachment.

Vamos entender melhor o que aconteceu.

Histórico dos fatos
• No dia 17/04/2016, a Câmara dos Deputados aprovou, com 376 votos favoráveis, a autorização para que a Presidente Dilma seja julgada pelo Senado por crime de responsabilidade.
• No dia 25/04/2016, a Presidente da República, por intermédio da AGU, ingressou com recurso dirigido ao Presidente da Câmara pedindo a anulação da sessão que autorizou o processo alegando uma série de vícios que maculariam o ato.
• O recurso ainda não havia sido apreciado.
• No dia 06/05/2016 (sexta-feira), o STF suspendeu o mandato parlamentar de Eduardo Cunha e o retirou da Presidência da Câmara.
• No dia de hoje (09/05/2016), o Vice-Presidente da Câmara, Dep. Waldir Maranhão, que se encontra na titularidade da Presidência, proferiu decisão anulando as sessões da Câmara dos dias 15, 16 e 17 de abril que autorizaram o processo de impeachment.
• Vale ressaltar que, no dia 11/05/2016 está marcada para ocorrer no Senado a sessão que irá decidir se o processo de impeachment irá ser instaurado naquela Casa. Se isso ocorrer, a Presidente já é afastada temporariamente até que se conclua o processo.

O que o Deputado Waldir Maranhão alegou em sua decisão?
O Deputado invocou quatro fundamentos para decidir anular a sessão:
1) Os partidos políticos não poderiam ter fechado questão ou firmado orientação para que os seus membros votassem a favor ou contra o pedido, considerando que os Deputados “deveriam votar de acordo com as suas convicções e livremente”.
2) Os Deputados não poderiam, antes da conclusão da votação, ter anunciado publicamente os seus votos, “na medida em que isso caracteriza prejulgamento e clara ofensa ao amplo direito de defesa que está consagrado na Constituição”.
3) A defesa da Presidente da República deveria ter falado como último ato  antes do momento da votação.
4) O resultado da votação deveria ter sido formalizado por Resolução, por ser o que dispõe o Regimento Interno da Câmara dos Deputados.

Como decorrência dessa medida, o Deputado encaminhou ofício ao Presidente do Senado para que os autos do processo de impeachment fossem devolvidos à Câmara dos Deputados.

A decisão do Presidente interino da Câmara foi juridicamente correta?
Penso que não.

Sob o ponto de vista formal:
A decisão da Câmara autorizando o processo de impeachment foi entregue ao Senado em 18/04, ou seja, um dia após a sessão de julgamento.
O recurso contra a decisão da Câmara foi protocolizado pela Presidente da República no dia 25/04, ou seja, após a Câmara já ter esgotado seu papel constitucional e depois de o Senado ter iniciado a análise da matéria.
Parece-me, portanto, que houve preclusão quanto à matéria.
Logo, ainda que, em tese, a decisão que autorizou o impeachment contenha vícios, o Presidente da Câmara não tinha mais competência para proceder à sua anulação, considerando que se esgotou a tramitação constitucional naquela Casa no momento em que a deliberação que autorizou o impeachment foi remetida para o Senado
Ademais, não havia, nem no Regimento Interno nem na Lei do Impeachment, previsão de recurso contra a decisão do Plenário da Câmara dos Deputados.

Sob o ponto de vista material:
Ainda que fosse superado esse óbice formal, penso que as razões invocadas pelo Presidente em exercício da Câmara não se sustentam juridicamente:

1) Orientação de voto pelos Partidos Políticos
A sistemática de os Partidos Políticos orientarem a votação de seus filiados é uma prática que sempre existiu no parlamento brasileiro e na grande maioria dos países do mundo.
Não existe qualquer mácula nesta questão.
A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos pelo sistema proporcional (art. 45 da CF/88), de forma que a participação e a coerência ideológica dos partidos políticos nas votações não é apenas admitida como também incentivada, tanto que o STF, mesmo quando não havia previsão legal, já havia admitido a existência do dever de fidelidade partidária, ensejando, em caso de seu descumprimento, a perda do mandato eletivo.
Deve-se salientar que, mesmo alguns partidos tendo “fechado” questão e determinado que seus filiados votassem contra o pedido de impeachment, diversos Deputados desobedeceram as orientações partidárias, como foi o caso dos parlamentares do PR e do PDT. Dessa forma, a orientação das agremiações não teve o condão de se constituir como vício de vontade.
Caso fosse adotada a tese do Presidente interino da Câmara, milhares de deliberações da Câmara dos Deputados teriam que ser anuladas porque nelas os parlamentares seguiram orientação da bancada.
Vale ressaltar, inclusive, que, em determinados casos, o Regimento Interno da Câmara até permite que a votação ocorra mediante manifestação apenas dos líderes de cada Partido, sem a votação nominal por cada Deputado.

2) Inexistência de prejulgamento e de ofensa ao direito de defesa
O impeachment não é um processo de julgamento puramente jurídico, sendo classificado como jurídico-político, considerando que é autorizado e conduzido por duas Casas políticas (Câmara dos Deputados e Senado Federal).

Em razão disso, o STF decidiu recentemente que não se pode exigir isenção e imparcialidade dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. “Na realidade, o impeachment é uma questão política que deve ser resolvida com critérios políticos. A garantia da imparcialidade está no alto quórum exigido para a votação.” (STF. Plenário. ADI 5498 MC/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Teori Zavascki, julgado em 14/4/2016).

Assim, um juiz (membro do Poder Judiciário) não pode adiantar seu posicionamento sobre um tema que irá julgar, sob pena de se tornar suspeito para a causa. No entanto, este mesmo raciocínio não pode ser aplicado aos membros do Congresso Nacional quando estão analisando o pedido de impeachment. Isso já foi, inclusive, decidido pelo STF:
(...) IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DAS HIPÓTESES DE IMPEDIMENTO E SUSPEIÇÃO AO PRESIDENTE DA CÂMARA (ITEM K DO PEDIDO CAUTELAR):
Embora o art. 38 da Lei nº 1.079/1950 preveja a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal no processo e julgamento do Presidente da República por crime de responsabilidade, o art. 36 dessa Lei já cuida da matéria, conferindo tratamento especial, ainda que de maneira distinta do CPP. Portanto, não há lacuna legal acerca das hipóteses de impedimento e suspeição dos julgadores, que pudesse justificar a incidência subsidiária do Código. A diferença de disciplina se justifica, de todo modo, pela distinção entre magistrados, dos quais se deve exigir plena imparcialidade, e parlamentares, que podem exercer suas funções, inclusive de fiscalização e julgamento, com base em suas convicções político-partidárias, devendo buscar realizar a vontade dos representados. Improcedência do pedido. (...)
(STF. Plenário. ADPF 378 MC, Rel. Min. Edson Fachin, Relator(a) p/ Acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 17/12/2015)


3) Alegação de vício pelo fato de a defesa da Presidente Dilma não ter se pronunciado logo antes do início da votação na Câmara dos Deputados
O rito do processo de impeachment foi debatido e aprovado pelo Plenário do STF no julgamento da ADPF 378 MC, em 17/12/2015.
Na ocasião, o STF definiu o momento em que haveria a defesa da Presidente na fase de juízo de admissibilidade. Segundo decidiu o Supremo, a defesa da Presidente ocorre após a instalação da comissão, quando a chefe do Executivo deveria ter um prazo de 10 sessões para apresentar sua defesa. Esse procedimento aprovado pelo STF foi adotado na Câmara dos Deputados, razão pela qual se mostra inviável o argumento de que deveria haver um novo momento de defesa logo antes do início da votação.
Vale ressaltar, ainda, que o processo propriamente dito só ocorre no Senado, onde, aí sim, deverá haver extensa instrução probatória e ampla defesa, inclusive com a realização de interrogatório, que deve ser o último ato de instrução do processo de impeachment.

4) O resultado da votação foi comunicado ao Senado por meio de ofício e deveria ter sido formalizado por Resolução
O argumento não prospera se adotarmos uma interpretação histórica. Isso porque no impeachment do ex-Presidente Fernando Collor, a Câmara dos Deputados também comunicou o Senado Federal sobre sua decisão de autorizar o processo por meio de um ofício, tal qual foi feito na presente situação envolvendo a Presidente Dilma.
Dessa forma, apenas seguiu-se a mesma sistemática já adotada no caso Collor. No julgamento da ADPF 378, o STF firmou o entendimento de que, nos casos omissos, deveria ser adotado o mesmo rito já observado no outro processo de impeachment.
Vale ressaltar, no entanto, que, mesmo que a interpretação dada pelo Deputado Maranhão estivesse correta e fosse necessária realmente uma resolução, ainda assim me parece que se trata de um vício formal, sem qualquer influência ou relevância que enseje a anulação da deliberação tomada.
Dessa feita, em atenção aos princípios da instrumentalidade das formas e da proporcionalidade, não é juridicamente admitido que o Presidente interino da Câmara dos Deputados, por meio de uma decisão monocrática, anule uma deliberação proferida pela maioria qualificada dos parlamentares (mais de 2/3) sob a alegação de que o pronunciamento da Casa não poderia ter sido feito por meio de um ofício, mas sim por resolução.

Medida processual cabível para impugnar a decisão do Presidente
A decisão do Presidente interino da Câmara dos Deputados pode ser atacada mediante mandado de segurança impetrado no STF por qualquer Deputado que tenha participado da sessão de julgamento e que possui direito líquido e certo de que a deliberação da qual participou seja mantida.
Vale ressaltar que o writ poderá ser conhecido e analisado pelo STF, considerando que não se trata de matéria interna corporis. Ao contrário, a decisão questionada fundamenta-se na interpretação de princípios constitucionais cuja incidência ou não no caso concreto poderão ser examinados pela Suprema Corte. Ademais, inegavelmente, os efeitos da decisão transbordam os interesses internos da Câmara dos Deputados, repercutindo na esfera jurídica de todo o país.

Posição do Senado
O Presidente do Congresso Renan Calheiros não conheceu do ofício enviado pelo Presidente interino da Câmara Deputado Waldir Maranhão e decidiu prosseguimento à tramitação do pedido de impeachment no Senado.
Para o Presidente Calheiros, a decisão do Presidente em exercício da Câmara é absolutamente intempestiva.
Desse modo, salvo se houver algum novo acontecimento, o rito do impeachment continua tramitando normalmente e o afastamento cautelar da Presidente Dilma está marcado para ser votado na quarta-feira, ocasião em que se irá decidir sobre a instauração ou não do processo propriamente dito.

Atualização:
No final da noite de ontem, o Presidente interino da Câmara, Deputado Waldir Maranhão, decidiu voltar atrás e revogou a sua decisão que havia anulado as sessões do impeachment.



Márcio André Lopes Cavalcante
Professor

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