terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O segurado perde o direito à indenização do seguro de automóvel se o condutor do veículo estava alcoolizado no momento do acidente?



O que é o contrato de seguro?
No contrato de seguro, “o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados” (art. 757 do CC).
Em outras palavras, no contrato de seguro, uma pessoa física ou jurídica (chamada de “segurada”) paga uma quantia denominada de “prêmio” para que uma pessoa jurídica (“seguradora”) assuma determinado risco. Caso o risco se concretize (o que chamamos de “sinistro”), a seguradora deverá fornecer à segurada uma quantia previamente estipulada (indenização).
Ex.: João celebra um contrato de seguro do seu veículo com a seguradora X e todos os meses paga R$ 100,00 como prêmio; se, por exemplo, o carro for roubado (sinistro), a seguradora deverá pagar R$ 30 mil a título de indenização para o segurado.

Nomenclaturas utilizadas nos contratos de seguro
Risco: é a possibilidade de ocorrer o sinistro. Ex.: risco de morte.
Sinistro: o sinistro é o risco concretizado. Ex.: morte.
Apólice (ou bilhete de seguro): é um documento emitido pela seguradora, no qual estão previstos os riscos assumidos, o início e o fim de sua validade, o limite da garantia e o prêmio devido e, quando for o caso, o nome do segurado e o do beneficiário.
Prêmio: é a quantia paga pelo segurado para que o segurador assuma o risco. O prêmio deve ser pago depois de recebida a apólice. O valor do prêmio é fixado a partir de cálculos atuariais e o seu valor leva em consideração os riscos cobertos.
Indenização: é o valor pago pela seguradora caso o risco se concretize (sinistro).

Risco, mutualidade e boa-fé
O contrato de seguro é baseado no risco, na mutualidade e na boa-fé, que constituem seus elementos essenciais. Vejamos cada um deles:
• Risco: relaciona-se com os fatos e as situações da vida real que causam probabilidade de dano e com as características pessoais de cada um, aferidas comumente no perfil do segurado. Ex: em um contrato de automóvel, o risco é maior em uma grande capital do que em uma pequena cidade do interior; o risco é maior para um motorista de 18 a 24 anos do que para um condutor com idade acima disso.
• Mutualidade: significa dizer que existe uma solidariedade econômica entre os segurados. Isso porque o dinheiro pago pelos segurados forma uma espécie de "poupança coletiva" ou um fundo, que será utilizado para cobrir os prejuízos que possam advir dos sinistros. Em outras palavras, é a distribuição dos custos do risco comum (socialização das perdas). Ademais, a contribuição de cada um será proporcional à gravidade do risco a que está sujeito, obtida por meio de dados estatísticos e cálculos atuariais.
• Boa-fé: é a veracidade, a lealdade, de ambas as partes, que devem agir reciprocamente isentas de dolo ou engano. No contrato de seguro, a boa-fé assume maior relevo, pois tanto o cálculo do risco como a manutenção do mutualismo dependem das afirmações da pessoa que contrata o seguro. A seguradora, utilizando-se das informações prestadas pelo segurado, como na cláusula de perfil, chega a um valor de prêmio conforme o risco garantido e a classe tarifária enquadrada, de modo que qualquer risco não previsto no contrato ou o seu incremento intencional desequilibra o seguro economicamente, dado que não foi incluído no cálculo atuarial nem na mutualidade contratual (base econômica do seguro).

Imagine agora a seguinte situação hipotética:
A empresa transportadora "Transporte Bem" fez um contrato de seguro para cobrir possíveis sinistros em seus veículos.
João, motorista da transportadora, estava conduzindo um caminhão da empresa, quando envolveu-se em um acidente e tombou o veículo, causando a perda total do bem segurado.
A transportadora acionou o seguro pedindo o pagamento da indenização prevista no contrato.
A seguradora recusou-se a pagar a indenização alegando que houve agravamento intencional do risco do objeto contratado. Isso porque ficou constatado pela Polícia Rodoviária Federal que João estava embriagado no momento do fato, o que foi determinante para a ocorrência do acidente.
A transportadora ingressou com ação de cobrança contra a seguradora afirmando que, quando entregou seu veículo ao motorista, este estava em plenas condições de dirigir, de forma que não foi ela (transportadora) que gerou o agravamento intencional de risco. Alegou também que o motorista é considerado "terceiro" nesta relação jurídica entre a transportadora e a seguradora, de forma que o ato cometido por este terceiro não pode ser equiparado a fato imputável ao próprio segurado.

No seguro de automóvel celebrado por uma empresa com a seguradora, é devida a indenização securitária quando o causador do sinistro foi terceiro condutor (preposto da empresa segurada) que estava em estado de embriaguez?
• Em regra: NÃO.
• Exceção: será devido o pagamento da indenização se a empresa segurada conseguir provar que o acidente ocorreria mesmo que o condutor não estivesse embriagado.

Não é devida a indenização securitária decorrente de contrato de seguro de automóvel quando o causador do sinistro – preposto da empresa segurada – estiver em estado de embriaguez, salvo se o segurado demonstrar que o infortúnio ocorreria independentemente dessa circunstância.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.485.717-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 22/11/2016 (Info 594).

Agravamento do risco e perda da indenização
O art. 768 do Código Civil prevê:
Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato.

Assim, havendo agravamento do risco, o segurado perde o direito à indenização.
O segurado deverá, por dolo ou culpa grave, ter praticado algum ato que aumente o risco que havia sido combinado.
Ex: Pedro faz um seguro de automóvel; isso significa que o risco objeto do contrato, assumido pela seguradora, é o de garantir a indenização ao segurado caso aconteça danos ao automóvel; no entanto, a seguradora calcula e assume esse risco levando em consideração que o condutor vá dirigir o veículo sóbrio; se o motorista resolve dirigir alcoolizado, ele está aumentando (agravando) intencionalmente o risco que foi combinado com a seguradora; o prêmio cobrado pela seguradora é baseado em estatísticas sobre a probabilidade do sinistro; se o condutor dirige embriagado, a probabilidade do sinistro é bem maior que sóbrio.

Conduta praticada pelo segurado
Vale ressaltar que, para ser considerado "agravamento do risco", é necessário que a conduta tenha sido praticada pelo próprio segurado.
O segurado deverá, com dolo ou culpa grave, ter praticado algum ato que aumente o risco que havia sido combinado.

Ingestão de álcool e agravamento do risco
É cientificamente comprovado que a ingestão de bebida alcoólica reduz o discernimento, os atos reflexos, o processamento de informações no cérebro, entre outras consequências danosas, mesmo em pequenas doses, o que torna o motorista menos apto a dirigir, aumentando sensivelmente o risco de o sinistro acontecer. Assim, há clara relação entre o consumo consciente de bebida alcoólica e a majoração da taxa de acidentalidade, demonstrada, inclusive, por dados estatísticos.
Em outros termos, a bebida alcoólica é capaz de alterar as condições físicas e psíquicas do motorista, que, combalido por sua influência, acaba por aumentar a probabilidade de produção de acidentes e danos no trânsito.
Assim, a direção do veículo por um condutor alcoolizado representa agravamento essencial do risco combinado.
Por essas razões, a cláusula contratual excluindo a cobertura do seguro no caso de embriaguez não é abusiva, pelo contrário, legítima. Deve, contudo, estar prevista de forma expressa e clara.
O seguro de automóvel não pode servir de estímulo para a assunção de riscos imoderados que, muitas vezes, beiram o abuso de direito, a exemplo da embriaguez ao volante. A função social do contrato de seguro de automóveis é servir como um instrumento de valorização da segurança viária, devendo, por isso, estar de acordo com as leis penais e administrativas que punem a embriaguez ao volante.
O segurado, quando ingere bebida alcoólica e assume a direção do veículo, frustra a justa expectativa das partes contratantes na execução do seguro, pois rompe-se com os deveres anexos do contrato, como os de fidelidade e de cooperação.

Embriaguez ao volante e presunção de que o risco foi aumentado
Uma vez constatado que o condutor do veículo estava sob influência do álcool quando se envolveu em acidente de trânsito, haverá uma presunção relativa de que o risco da sinistralidade foi agravado, o que ensejará a aplicação da pena do art. 768 do CC.
Por outro lado, a indenização securitária deverá ser paga se o segurado demonstrar que o infortúnio ocorreria independentemente do estado de embriaguez. Ex: o segurado poderá provar que a culpa foi do outro motorista, que houve falha do próprio automóvel, imperfeições na pista, animal na estrada etc.

Ônus da prova
Seguradora: precisa comprovar que o motorista estava embriagado. A partir daí surge a presunção de que houve o agravamento do risco e a indenização não será, em princípio, devida.
Segurado: poderá comprovar que o acidente ocorreria mesmo que o condutor não estivesse embriagado. Se não conseguir provar isso, perderá o direito à indenização.

E se o indivíduo que estava dirigindo embrigado não era aquele que contratou o seguro?
A configuração do risco agravado não se dá somente quando o próprio segurado se encontra alcoolizado na direção do veículo, mas abrange também os condutores principais (familiares, empregados e prepostos). Isso porque o agravamento intencional de que trata o art. 768 do CC envolve tanto o dolo quanto a culpa grave do segurado, que tem o dever de vigilância (culpa in vigilando) e o dever de escolha adequada daquele a quem confia a prática do ato (culpa in eligendo). Se o segurado não escolhe de forma correta a quem entrega o veículo ou não o fiscaliza adequadamente, incide em culpa.
O segurado deve se portar e tomar todos os máximos cuidados como se não tivesse feito o seguro. A isso se chama de princípio do absenteísmo, isto é, ele tem o dever de se abster de tudo que possa incrementar, de forma desarrazoada, o risco contratual.
Logo, a pessoa que fez o seguro deve tomar todos os cuidados possíveis quando for entregar o veículo segurado para alguém dirigir.
Desse modo, o simples fato de o indivíduo que estava dirigindo não ser aquele que contratou o seguro não serve como argumento para que a indenização deixe de ser paga. Como explica a doutrina:
"(...) não fosse assim e admitido o entendimento acima exposto, bastaria ao proprietário do veículo nunca conduzi-lo, fazendo sempre uso do subterfúgio de registrar o bem em nome de terceiro, de esposa, de filhos, pois se imunizaria frente às consequências contratuais do mau uso que vier a fazer do bem.
Seria como que um salvo-conduto para que se conduzisse o veículo sob influência de álcool, impregnando o contrato de seguro com uma exegese frontalmente contrária à função social mencionada no art. 421 do CC e à boa-fé preconizada no art. 422 do mesmo diploma legal.
(...)
Ao se entender que o dispositivo do art. 768 do CC deve ser interpretado literalmente e que a disposição contratual acerca da inexistência de cobertura por condução de veículo sob influência de álcool destina-se unicamente ao próprio segurado, se está emprestando ao contrato de seguro de veículos automotores uma exegese, a nosso ver, contrária à sua função social e com efeitos nefastos a toda a sociedade."
(FERNANDES, Marcus Frederico B. Seguro de Automóvel - perda de direito decorrente de condução por terceiro sob efeito de álcool. In: Direito dos Seguros, MIRAGEM, Bruno e CARLINI, Angélica (org.), São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 459)

Dessa forma, o principal condutor do veículo, se não for o próprio segurado, equipara-se a ele, o que afasta qualquer caracterização de terceiro eventual, trazendo-lhe, portanto, a obrigação de observar as mesmas condições e cautelas na direção do veículo, para assim não aumentar intencionalmente o risco do objeto contratado.

Voltando ao exemplo hipotético:
O caminhão da empresa segurada sofreu perda total após ter se envolvido em acidente (tombamento sozinho na pista).
Ficou provado que o motorista estava embriagado e com sonolência no momento do sinistro, sendo evidente o agravamento do risco objeto do contrato.
Além disso, havia cláusula contratual expressa que excluía o direito de cobertura quando o condutor estivesse sob o estado de ebriedade.
O fato de o veículo ter sido conduzido por empregado da segurada (e não por seu dirigente ou sócio) não impede a aplicação da penalidade prevista no art. 768 do CC, porquanto a empresa não agiu com a cautela necessária ao contratar o motorista (culpa in vigilando e in eligendo) que, intencionalmente, embriagou-se antes de ter pegado a direção, colocando diretamente em risco a segurança no trânsito, tanto que culminou na ocorrência do sinistro.
A empresa não conseguiu provar que o acidente ocorreria mesmo que o condutor estivesse sóbrio.
Logo, não há como afastar a culpa grave da empresa, devendo ela perder o direito à indenização securitária por agravamento intencional do risco contratado.



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