quarta-feira, 21 de março de 2018

Transgênero pode alterar seu prenome e gênero no registro civil mesmo sem fazer cirurgia de transgenitalização e mesmo sem autorização judicial



Transgênero
Transgênero é o indivíduo que possui características físicas sexuais distintas das características psíquicas.
É uma pessoa que não se identifica com o seu gênero biológico.
A pessoa sente que ela nasceu no corpo errado. Ex: o menino nasceu fisicamente como menino, mas ele se sente como uma menina.
Assim, o transgênero tem um sexo biológico, mas se sente como se fosse do sexo oposto e espera ser reconhecido e aceito como tal.

Transexual
Da mesma forma, o transexual também possui características físicas sexuais distintas das características psíquicas. Ele também não se identifica com o seu gênero biológico.
Não existe ainda uma uniformidade científica, no entanto, segundo a posição majoritária, a diferença entre o transgênero e o transexual é a seguinte:
Resumindo:
• transgênero: quer poder se expressar e ser reconhecido como sendo do sexo oposto, mas não tem necessidade de modificar sua anatomia.
• transexual: quer poder se expressar e ser reconhecido como sendo do sexo oposto e deseja modificar sua anatomia (seu corpo) por meio da terapia hormonal e/ou da cirurgia de redesignação sexual (transgenitalização).

Identidade de gênero
Significa a maneira como alguém se sente e a maneira como deseja ser reconhecida pelas demais pessoas, independentemente do seu sexo biológico.
“A identidade de gênero se refere à experiência de uma pessoa com o seu próprio gênero. Pessoas transgênero possuem uma identidade de gênero que é diferente do sexo que lhes foi designado no momento de seu nascimento.
Uma pessoa transgênero ou trans pode identificar-se como homem, mulher, trans-homem, trans-mulher, como pessoa não-binária ou com outros termos, tais como hijra, terceiro gênero, dois-espíritos, travesti,
fa’afafine, gênero queer, transpinoy, muxe, waria e meti. Identidade de gênero é diferente de orientação
sexual. Pessoas trans podem ter qualquer orientação sexual, incluindo heterossexual, homossexual, bissexual e assexual.” (Nota Informativa das Nações Unidas. Disponível em https://unfe.org/system/unfe-91-Portugese_TransFact_FINAL.pdf?platform=hootsuite)

Se o transexual faz a cirurgia de transgenitalização, ele poderá alterar o prenome e o sexo/gênero nos assentos do registro civil?
SIM. Essa possibilidade já foi reconhecida há muitos anos pelo STJ:
(...) A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive. (...)
STJ. 4ª Turma. REsp 737.993/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 10/11/2009.

Sendo realizada a retificação do registro, os documentos serão alterados e neles não constará nenhuma menção quanto à troca do sexo.

E se não foi feita a cirurgia? Imagine a seguinte situação hipotética:
Mário, pessoa maior de idade que se identifica como transgênero mulher, ajuizou ação de retificação de registro de nascimento para troca do prenome e do sexo masculino para o feminino.
Na inicial, narrou que, desde tenra idade, embora nascida com a genitália masculina e nesse gênero registrada, sempre demonstrara atitudes de criança do sexo feminino.
Afirmou que foi diagnosticada como portadora de "transtorno de identidade de gênero".
Mário nunca realizou a cirurgia de transgenitalização.
Alegou que sofre muitos transtornos porque sente-se como mulher, veste-se como mulher, mas os dados que constam em seus documentos são masculinos (nome e sexo).
Na ação, Mário pediu para que seu prenome seja alterado para Mariana e seu sexo para feminino. Contudo, o empecilho que encontrou foi pelo fato de que não fez a cirurgia de transgenitalização nem deseja realizar.

A questão jurídica enfrentada, portanto, pelo STJ foi a seguinte: é possível que o transgênero altere seu nome e o gênero no assento de registro civil mesmo que não faça a cirurgia de transgenitalização?
SIM. Inicialmente o STJ decidiu que:
O direito dos transexuais à retificação do prenome e do sexo/gênero no registro civil não é condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.626.739-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 9/5/2017 (Info 608).

Agora, o STF avançou sobre o tema e, de forma mais ampla, utilizou a expressão transgênero, afirmando que:
Os transgêneros, que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, possuem o direito à alteração do prenome e do gênero (sexo) diretamente no registro civil.
STF. Plenário. ADI 4275/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 28/2 e 1º/3/2018 (Info 892).

Premissas da decisão do STF:
1) O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou a expressão de gênero. O respeito à identidade de gênero é uma decorrência do princípio da igualdade.
2) A identidade de gênero é uma manifestação da própria personalidade da pessoa humana. Logo, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. Isso significa que o Estado não diz o gênero da pessoa, ele deve apenas reconhecer o gênero que a pessoa se enxerga.
3) A pessoa não deve provar o que é, e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental. Assim, se cabe ao Estado apenas o reconhecimento dessa identidade, ele não pode exigir ou condicionar a livre expressão da personalidade a um procedimento médico ou laudo psicológico. A alteração dos assentos no registro público depende apenas da livre manifestação de vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero.

Fundamentos jurídicos:
Constituição Federal
• direito à dignidade (art. 1º, III, da CF);
• direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem (art. 5º, X, da CF).

Pacto de São José da Costa Rica
• direito ao nome (artigo 18);
• direito ao reconhecimento da personalidade jurídica (artigo 3);
• direito à liberdade pessoal (artigo 7.1 do Pacto);
• o direito à honra e à dignidade (artigo 11.2 do Pacto).

Opinião Consultiva 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sobre “Identidade de Gênero e Igualdade e Não Discriminação a Casais dos Mesmo Sexo”, publicada em 24.11.2017, na qual se definiram as obrigações estatais em relação à mudança de nome, à identidade de gênero e os direitos derivadas de um vínculo entre casais do mesmo sexo. Veja trecho da Opinião Consultiva:
“(...) a Corte Interamericana deixa estabelecido que a orientação sexual e a identidade de gênero, assim como a expressão de gênero, são categorias protegidas pela Convenção.
Por isso está proibida pela Convenção qualquer norma, ato ou prática discriminatória baseada na orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero da pessoa. Em consequência, nenhuma norma, decisão ou prática do direito interno, seja por parte das autoridades estatais ou por particulares, podem diminuir ou restringir, de modo algum, os direitos de uma pessoa à sua orientação sexual, sua identidade de gênero e/ ou sua expressão de gênero”. (par. 78).
“O reconhecimento da identidade de gênero pelo Estado é de vital importância para garantir o gozo pleno dos direitos humanos das pessoas trans, incluindo a proteção contra a violência, a tortura e maus tratos, o direito à saúde, à educação, ao emprego, à vivência, ao acesso a seguridade social, assim como o direito à liberdade de expressão e de associação.”

Interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica
O art. 58 da Lei nº 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos) prevê:
Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.


O STF, contudo, afirmou que se deve fazer uma nova interpretação desse art. 58 à luz da Constituição Federal e do Pacto de São José da Costa Rica.

Exigir cirurgia ou outros procedimentos é contrário à dignidade da pessoa humana
O Estado deve abster-se de interferir em condutas que não prejudicam a terceiros e, ao mesmo tempo, buscar viabilizar as concepções e os planos de vida dos indivíduos, preservando a neutralidade estatal.
Mostra-se contrário aos princípios da dignidade da pessoa humana, da integridade física e da autonomia da vontade condicionar o exercício do legítimo direito à identidade à realização de um procedimento cirúrgico ou de qualquer outro meio de se atestar a identidade de uma pessoa.
Inadmitir a alteração do gênero no assento de registro civil é atitude absolutamente violadora de sua dignidade e de sua liberdade de ser, na medida em que não reconhece sua identidade sexual, negando-lhe o pleno exercício de sua afirmação pública.

Opinião Consultiva
Conforme consta da Opinião Consultiva 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, os Estados (países) têm a possibilidade de decidir qual é o procedimento que será adotado para a retificação do sexo ou nos registros e documentos. No entanto, segundo a Opinão, o procedimento de alteração adotado pelo Estado (inclusive o Brasil) deve cumprir os seguintes requisitos:
a) o procedimento deve respeitar a identidade de gênero auto-percebida pela pessoa requerente;
b) deve estar baseado unicamente no consentimento livre e informado do solicitante sem que se exijam requisitos como certificações médicas ou psicológicas ou outros que possam resultar irrazoáveis ou patologizantes;
c) deve ser confidencial e os documentos não podem fazer remissão às eventuais alterações;
d) deve ser expedito (célere), e na medida do possível, gratuito; e
e) não deve exigir a realização de operações cirúrgicas ou hormonais.

O Colegiado assentou seu entendimento nos princípios da dignidade da pessoa humana, da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, bem como no Pacto de São José da Costa Rica.

Vimos acima que o transgênero não precisa fazer cirurgia para requerer a alteração do prenome e do sexo. Ok. Uma última pergunta, apenas para não ficar dúvidas: a pessoa transgênera precisa de autorização judicial para essa alteração?
NÃO. O STF entendeu que exigir do transgênero a via jurisdicional para realizar essa alteração representaria limitante incompatível com a proteção que se deve dar à identidade de gênero.
O pedido de retificação é baseado unicamente no consentimento livre e informado do solicitante, sem a necessidade de comprovar nada.




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