quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Qual é o papel do juiz no caso de apreensão de indivíduo com drogas para consumo pessoal (art. 28 da LD)?

 

Porte de droga para consumo pessoal

A Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas) prevê o crime de posse/porte de droga para consumo pessoal nos seguintes termos:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

 

Tese de que o art. 28 não seria crime

Assim que essa Lei foi editada, o saudoso Luiz Flávio Gomes defendeu a tese de que o porte/posse de droga para consumo pessoal havia deixado de ser crime. Em outras palavras, LFG sustentou que o art. 28 não traria a definição de crime, já que ele não prevê pena privativa de liberdade nem multa. Logo, estaria “fora” do conceito de crime trazido pela Lei de Introdução ao Código Penal (DL 3.914/1941):

Art. 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

 

O STF aceitou essa tese?

NÃO. O STF decidiu que o art. 28 da Lei de Drogas, mesmo sem prever pena privativa de liberdade, continua definindo conduta criminosa. Assim, não houve uma descriminalização da conduta (abolitio criminis), mas sim uma despenalização. A despenalização ocorre quando o legislador prevê sanções alternativas para o crime que não sejam penas privativas de liberdade. Nesse sentido: STF. 1ª Turma. RE 430105 QO, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 13/02/2007.

Assim, não há dúvidas de que o art. 28 da Lei de Drogas possui natureza jurídica de CRIME, mas não enseja, em nenhuma hipótese, a aplicação de pena privativa de liberdade.

 

Procedimento no caso do crime do art. 28

O crime do art. 28 da LD é infração de menor potencial ofensivo. Em razão disso, o § 1º do art. 48 da Lei nº 11.343/2006 determina que se aplica o rito dos juizados especiais, com algumas peculiaridades previstas nos §§ 2º a 5º do mesmo artigo:

Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes definidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.

§ 1º O agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais.

(...)

 

Não haverá prisão em flagrante, devendo o usuário ser levado imediatamente para audiência judicial

Um ponto importante sobre o tema é que, no caso do art. 28 da LD, não haverá prisão em flagrante, devendo o autor do fato que foi encontrado com a droga ser encaminhado imediatamente ao juízo competente.

 

E o que acontece se não for possível encaminhar o usuário imediatamente para a presença do juiz?

Na falta do juiz competente, o indivíduo deverá ser levado para a autoridade policial que irá:

• lavrar um termo circunstanciado de ocorrência (TCO);

• requisitar os exames e perícias necessárias (inclusive exame de corpo de delito);

• colher do autor do fato o compromisso (assinatura) de que ele irá comparecer à audiência judicial quando esta for designada.

Isso está previsto nos §§ 2º e 3º do art. 48 da Lei nº 11.343/2006:

Art. 48 (...)

§ 2º Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.

§ 3º Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2º deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.

 

Depois de encerradas as providências previstas no § 2º, o agente deverá ser submetido a exame de corpo de delito, se assim requerer ou se a autoridade policial entender conveniente, e, em seguida, ser liberado:

Art. 48 (...)

§ 4º Concluídos os procedimentos de que trata o § 2º deste artigo, o agente será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer ou se a autoridade de polícia judiciária entender conveniente, e em seguida liberado.

 

Agora que você entendeu o panorama geral, vamos voltar um pouco para o momento em que o usuário de droga é encaminhado ao juiz (§ 2º). O que o magistrado irá fazer ao receber o autor do fato? É o juiz que deverá tomar as providências previstas no § 2º do art. 48 (lavrar termo circunstanciado, requisitar perícia etc.) ou isso é uma atribuição do Delegado?

Sobre o tema, surgiram duas correntes:

Posse/porte de drogas para consumo pessoal e encaminhamento do autor do fato ao juiz

Qual é o papel da autoridade judicial no caso dos §§ 2º e 3º do art. 48 da Lei nº 11.343/2006?

O juiz que irá lavrar o termo circunstanciado e requisitará os exames e perícias?

1ª corrente: NÃO

2ª corrente: SIM

Cabe sempre à autoridade POLICIAL (e não ao juiz) a lavratura do termo circunstanciado e a requisição dos exames e perícias pertinentes.

O autor da conduta do art. 28 deve ser encaminhado diretamente à autoridade judicial, que irá lavrar o termo circunstanciado e fará a requisição dos exames e perícias necessários.

Somente se não houver juiz é que tais providências serão tomadas pelo Delegado de Polícia.

“Encontrado com droga, [o autor] deve ser levado à presença da autoridade policial, pois a esta caberá avaliar, em primeiro lugar, se é consumo pessoal ou tráfico. Entendendo tratar-se de consumo, deve ser lavrado termo circunstanciado, direcionando o usuário ao Juizado Especial Criminal, onde poderá, transacionando, receber advertência ou ser obrigado a cumprir prestação de serviço à comunidade ou frequentar cursos e programas educativos. Inexistindo JECRIM disponível na localidade ou no momento da detenção do agente, lavra-se termo circunstanciado e providencia-se os demais exames e perícias. O autor da infração, segundo a lei, deve assumir o compromisso de comparecer ao JECRIM, quando chamado.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 5ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 401)

“Normalmente, o agente que se encontra em posse de droga para consumo pessoal acaba sendo capturado por agente militar ou civil (ou federal). (...) Concretizada a captura do agente (e feita a apreensão da droga ou da planta tóxica) cabe ao condutor (pessoa que efetuou a captura) levar o autor do fato (imediatamente) ao juízo competente. (...)

A nova Lei de Drogas priorizou o “juízo competente”, em detrimento da autoridade policial. Ou seja: do usuário de droga não deve se ocupar a polícia (em regra). Esse assunto configura uma questão de saúde pessoal e pública, logo, não é um fato do qual deve cuidar a autoridade policial. A lógica da Lei nova pressupõe Juizados (ou juízes) de plantão, vinte e quatro horas. Isso seria o ideal. Sabemos, entretanto, que na prática nem sempre haverá juiz (ou Juizado) de plantão. (...) Se não existe autoridade judicial de plantão, uma vez capturado o agente do fato (com drogas ou planta tóxica), será ele conduzido à presença da autoridade policial (...) que tomará as providências indicadas no § 2º” (GOMES, Luiz Flávio. Lei de Drogas comentada. 6ª ed. São Paulo: RT, 2014).

 

Qual foi a corrente adotada pelo STF?

A segunda.

Para a Min. Cármen Lúcia, essa segunda interpretação é a que melhor atende à finalidade dos arts. 28 e 48 da Lei nº 11.343/2006, que buscaram a despenalização do usuário de drogas.

Assim, havendo disponibilidade do juízo competente, o autor do crime previsto no art. 28 da Lei nº 11.343/2006 deve ser até ele encaminhado imediatamente, para lavratura do termo circunstanciado e requisição dos exames e perícias necessários.

Se não houver disponibilidade do juízo competente, deve o autor ser encaminhado à autoridade policial, que então adotará as providências previstas no § 2º do art. 48 da Lei n. 11.343/2006.

Com a determinação de encaminhamento imediato do usuário de drogas ao juízo competente, afasta-se qualquer possibilidade de que o usuário de drogas seja preso em flagrante ou detido indevidamente pela autoridade policial.

STF. Plenário. ADI 3807, Rel. Cármen Lúcia, julgado em 29/06/2020 (Info 986 – clipping).

 

Essa previsão (e interpretação) dos §§ 2º e 3º do art. 48 da Lei de Drogas possui alguma inconstitucionalidade? A previsão viola de algum modo o papel do juiz no sistema acusatório considerando que ele estaria praticando atos de investigação?

NÃO. Isso porque a lavratura de termo circunstanciado e a requisição de exames e perícias não são atividades de investigação.

Logo, os §§ 2º e 3º do art. 48 da Lei nº 11.343/2006 não atribuíram ao órgão judicial competências de polícia judiciária, considerando que a lavratura de termo circunstanciado de ocorrência NÃO configura, repito, ato de investigação.

Embora substitua o inquérito policial como principal peça informativa dos processos penais que tramitam nos juizados especiais, o termo circunstanciado não é procedimento investigativo. Segundo explica Ada Pellegrini Grinover, “o termo circunstanciado (…) nada mais é do que um boletim de ocorrência mais detalhado” (GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Juizados especiais criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 5ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 118).

Considerando-se que o termo circunstanciado não é procedimento investigativo, mas sim uma mera peça informativa com descrição detalhada do fato e as declarações do condutor do flagrante e do autor do fato, deve-se reconhecer que a possibilidade de sua lavratura pela autoridade judicial (magistrado) não ofende os §§ 1º e 4º do art. 144 da Constituição, nem interfere na imparcialidade do julgador.

As normas dos §§ 2º e 3º do art. 48 da Lei nº 11.343/2006 foram editadas em benefício do usuário de drogas, visando afastá-lo do ambiente policial quando possível e evitar que seja indevidamente detido pela autoridade policial.

STF. Plenário. ADI 3807, Rel. Cármen Lúcia, julgado em 29/06/2020 (Info 986 – clipping). 



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