segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A Súmula 584 do STF foi cancelada

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 28 de dezembro de 1990, foi publicada a Lei Federal nº XXX/1990 criando novo adicional de imposto de renda sobre o lucro das empresas.

Essa lei disse expressamente que suas disposições se aplicavam inclusive para o período-base de 1990.

Em outras palavras, a Lei foi publicada em 28/12/1990 e influenciou no recolhimento do imposto de renda incidente sobre situações ocorridas em 1990. Como ela foi publicada no final de 1990, acabou incidindo sobre operações realizadas antes mesmo da sua vigência.

Diante disso, os contribuintes alegaram a inconstitucionalidade dessa lei porque ela teria violado os princípios da irretroatividade e da anterioridade.

 

Súmula 584-STF

A União, por sua vez, defendeu a constitucionalidade da Lei sob o argumento de que essa prática é permitida pela jurisprudência do STF cristalizada na Súmula 584, que tem a seguinte redação:

Súmula 584-STF: Ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração.

 

Assim, de acordo com esse raciocínio, o fato gerador do imposto de renda completa-se somente no dia 31 de dezembro do ano-base. A lei que tenha sido publicada até essa data poderá ser aplicada no cálculo do imposto correspondente, nos termos do art. 105 do CTN:

Art. 105. A legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos termos do artigo 116.

 

Neste caso hipotético, a jurisprudência atual do STF é favorável ao Fisco ou ao contribuinte?

Ao contribuinte.

 

E a súmula?

O STF decidiu cancelar a sua antiga Súmula 584.

O princípio de irretroatividade tributária assegura ao contribuinte o direito de não ser cobrado com novas hipóteses de incidência ou majorações ocorridas após o início do período-base.

Veja a brilhante explicação de Sacha Calmon para a inconstitucionalidade da posição cristalizada na Súmula 584 do STF:

“Como se sabe, o imposto de renda, no Brasil, das pessoas físicas e jurídicas, salvo determinadas exceções, como mudança para o estrangeiro, encerramento de atividades e outras, está estruturado pelo dualismo: ano-base/ano da declaração. No ano-base, 1º de janeiro a 31 de dezembro, ocorrem os fatos jurígenos. No ano da declaração, o contribuinte recata os fatos tributáveis, aproveita as deduções, compensa os créditos fiscais, dimensiona a base imponível, aplica as alíquotas, obtém o quantum devido e recolhe o imposto sob a condição suspensiva de, a posteriori, o Fisco concordar com o imposto declarado. Em caso de recolhimento a menor, ocorrerão lançamentos suplementares.

É intuitivo, na espécie, que o aspecto temporal da hipótese de incidência fecha em 31 de dezembro do ano-base, porque o fato jurígeno do imposto de renda é continuado. Em 31 de dezembro cessa o movimento, e tudo cristaliza-se. O filme em exibição desde 1º de janeiro chega ao fim (no último átimo de tempo do dia 31 de dezembro de cada ano-base). Nesta data, temos o irreversível. No ano do exercício da declaração, o que se tem é o relato descritivo e quantitativo dos fatos jurígenos (suporte da tributação).

Para satisfazer o princípio da anterioridade, é necessário que a lei de regência do imposto de renda seja a vigente em 31 de dezembro do ano anterior ao ano-base, pois teriam os contribuintes a prévia informação do quadro legal que regularia as suas atividades tributárias, antes de ocorrerem.

A Súmula do STF, no entanto, entendia o contrário, impressionada por uma polêmica acadêmica (mas não só por isso) que discutia sobre o dies ad quem do período aquisitivo da renda, se em 31 de dezembro do ano-base ou em 1º de janeiro do exercício seguinte (exercício da declaração).

Academicismo irritante, pois o importante é e sempre será o contribuinte saber, antes de realizar as suas atividades, o quadro jurídico de regência dessas mesmas atividades, o que leva à tese de que só o dia 31 de dezembro seria, ética e juridicamente, o dia apropriado. Caso contrário, falar em princípio da anterioridade traduziria enorme toleima, a crer-se na seriedade e nas funções do princípio.

Interessa aos jogadores de um time qualquer, de um esporte qualquer, jogar sem saber das regras? E só tomar conhecimento delas após o jogo no vestiário? Privilegiado é o árbitro. Pode valorar a posteriori o vencedor e os vencidos.

Ora, tal era a situação do IR no Brasil antes da Constituição de 1988. Vale dizer o IR não só não respeitava o princípio da anterioridade como tornava o imposto retroativo, contra um princípio geral do Direito universalmente aceito e praticado.

Agora o quadro é outro. O art. 150, III, “a”, “b” e “c” rechaça a prevalência da Súmula nº 584, sem qualquer sombra de dúvidas. Esse é, ao menos, o nosso sentir, no que somos acompanhados por grande parte da doutrina e até mesmo por precedentes do STJ.” (CALMON, Sacha. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 17ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 274-276).

 

Em suma:

Encontra-se superado o entendimento exposto na Súmula 584 do STF.

Esse enunciado é incompatível com os princípios da irretroatividade e da anterioridade.

Por essa razão, o STF decidiu pelo cancelamento do verbete.

STF. Plenário. RE 159180, Rel. Marco Aurélio, julgado em 22/06/2020 (Info 987 – clipping). 


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