quarta-feira, 21 de outubro de 2020

É possível receber o benefício por incapacidade, concedido judicialmente, mesmo que o período coincida com àquele em que o segurado estava trabalhando e aguardava o deferimento do benefício

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 04/04/2014, João foi até uma agência do INSS e requereu a sua aposentadoria por invalidez.

O pedido foi indeferido (negado) administrativamente porque o perito do INSS entendeu que o segurado não estaria incapaz.

Diante disso, João ajuizou ação contra a autarquia pedindo a concessão do benefício.

Ocorre que João precisava se sustentar e, assim, mesmo com muitas dores ele se sacrificou e continuou trabalhando como empregado de um supermercado enquanto aguardava o julgamento do processo.

Na Justiça, foi realizada perícia e o médico concluiu de forma diferente do que havia dito o perito do INSS: João possui realmente incapacidade total e permanente.

Em 05/05/2015, o juiz julgou o pedido procedente, condenando o INSS a:

a) implementar a aposentadoria por invalidez em favor do segurado;

b) pagar as prestações retroativas da aposentadoria desde a data de entrada do requerimento administrativo (DER). Em outras palavras, condenou a autarquia a pagar os meses de aposentadoria por invalidez desde 04/04/2014.

 

Recurso do INSS

O INSS recorreu contra a sentença questionando unicamente o pagamento das prestações retroativas.

A autarquia argumentou o seguinte:

- no período de 04/04/2014 (DER) até 05/05/2015 (concessão judicial da aposentadoria por invalidez), o segurado continuou trabalhando;

- ocorre que a Lei nº 8.213/91 proíbe que o segurado receba benefício por incapacidade (auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez) de forma concomitante com salário. Os dispositivos invocados da Lei foram os seguintes:

Art. 42. A aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição.

 

Art. 46. O aposentado por invalidez que retornar voluntariamente à atividade terá sua aposentadoria automaticamente cancelada, a partir da data do retorno.

 

Art. 59. O auxílio-doença será devido ao segurado que, havendo cumprido, quando for o caso, o período de carência exigido nesta Lei, ficar incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 (quinze) dias consecutivos.

 

- desse modo, o INSS argumentou que, com no período 04/04/2014 a 05/05/2015, o segurado ainda estava trabalhando e recebeu salário, ele não tem direito às parcelas de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez relativas a esse interregno. O juiz deveria ter feito esse desconto;

- as parcelas do benefício deveriam ser pagas somente a partir da data em que ele deixou de trabalhar.

 

A tese do INSS foi acolhida pelo STJ?

NÃO.

O segurado que, considerado incapaz em termos previdenciários, tem que trabalhar para manter seu sustento enquanto aguarda a definição sobre a concessão do benefício por incapacidade, não pode ser penalizado com o não recebimento do benefício nesse período.

Vamos entender com calma.

 

Segurado que recebe benefício por incapacidade, em regra, não pode trabalhar; essa premissa está correta

O auxílio-doença e a aposentadoria por invalidez possuem uma função substitutiva da renda auferida pelo segurado. Em outras palavras, eles existem para substituir a remuneração do trabalhador. Como ele não tem condições de trabalhar, receberá um benefício previdenciário no lugar.

O pressuposto para a concessão do auxílio-doença e da aposentadoria por invalidez é a incapacidade do segurado. Dito de outro modo, esses benefícios só são concedidos porque se está considerando que o segurado não tem condições de trabalhar. No auxílio-doença essa incapacidade é temporária. Na aposentadoria por invalidez, é uma incapacidade permanente.

Ora, se o segurado está incapacitado e, por isso, a Previdência concede a ele o benefício, não é correto que ele volte a trabalhar depois de já estar recebendo o auxílio-doença ou a aposentadoria por invalidez. Se fizer isso, ou seja, se voltar a trabalhar, isso significa que está apto e, portanto, o benefício é automaticamente cancelado, conforme determina o art. 46 e o art. 60, §§ 6º e 7º da Lei nº 8.213/91:

Art. 46. O aposentado por invalidez que retornar voluntariamente à atividade terá sua aposentadoria automaticamente cancelada, a partir da data do retorno.

 

Art. 60 (...)

§ 6º O segurado que durante o gozo do auxílio-doença vier a exercer atividade que lhe garanta subsistência poderá ter o benefício cancelado a partir do retorno à atividade.

§ 7º Na hipótese do § 6º, caso o segurado, durante o gozo do auxílio-doença, venha a exercer atividade diversa daquela que gerou o benefício, deverá ser verificada a incapacidade para cada uma das atividades exercidas.

 

Situação é diferente se o segurado requereu administrativamente o benefício e lhe foi negado: ele é obrigado a trabalhar enquanto aguarda o desfecho na via judicial

No caso de João, a situação é diferente da proibição legal:

• João requereu o benefício, que lhe foi indeferido, e acabou trabalhando enquanto não obteve seu direito na via judicial;

• A lei trata da situação em que o benefício é concedido, o segurado já está recebendo um benefício que substitui sua antiga fonte de renda e, mesmo assim, ele resolve voltar a trabalhar.

 

No caso de João houve uma falha na função substitutiva da renda, considerando que o benefício por incapacidade foi negado.

O segurado estava incapacidade e, mesmo assim, por falha administrativa do INSS, não lhe foi garantido o sustento. Logo, não é exigível que o segurado fique sem qualquer fonte de renda enquanto aguarda o resultado do processo judicial.

Por culpa do INSS, resultado do equivocado indeferimento do benefício, o segurando teve de trabalhar, incapacitado, para o provimento de suas necessidades básicas. Isso é chamado pela doutrina e jurisprudência de “sobre-esforço”.

 

Vedação ao enriquecimento sem causa

A tese defendida pelo INSS ofende o princípio da vedação do enriquecimento sem causa.

Isso porque, por culpa da autarquia (indeferimento equivocado do benefício), o segurado foi privado do auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez. O INSS, mesmo assim, deseja economizar esse período em que já deveria estar pagando o benefício.

É indevido o desconto, em benefícios por incapacidade, de período no qual houve exercício de atividade remunerada, ou recolhimento de contribuições, no curso de demanda judicial contra o indeferimento administrativo, sob pena de prestigiar o enriquecimento da autarquia, que deu causa à lide.

STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 1.393.909/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 9/5/2019.

 

Segurado está de boa-fé

O segurado que trabalha enquanto espera a concessão de benefício por incapacidade, está atuando de boa-fé. Enquanto a função substitutiva da renda do trabalho não for materializada pelo efetivo pagamento do auxílio-doença ou da aposentadoria por invalidez, é legítimo que o segurado exerça atividade remunerada para sua subsistência independentemente do exame da compatibilidade dessa atividade com a incapacidade laboral.

O STJ fixou a seguinte tese sobre o tema:

No período entre o indeferimento administrativo e a efetiva implantação de auxílio-doença ou de aposentadoria por invalidez, mediante decisão judicial, o segurado do RPGS tem direito ao recebimento conjunto das rendas do trabalho exercido, ainda que incompatível com sua incapacidade laboral, e do respectivo benefício previdenciário pago retroativamente.

STJ. 1ª Seção. REsp 1.788.700-SP, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 24/06/2020 (Recurso Repetitivo – Tema 1013) (Info 675).

 

Esse era o entendimento que já prevalecia tanto no STJ como na TNU:

Súmula 72-TNU: É possível o recebimento de benefício por incapacidade durante período em que houve exercício de atividade remunerada quando comprovado que o segurado estava incapaz para as atividades habituais na época em que trabalhou.

 

Por favor, peço novamente para que não confunda:

a) o segurado está recebendo benefício por incapacidade regularmente e passa a exercer atividade remunerada incompatível com sua incapacidade: o benefício é automaticamente cancelado. Segurado não tem direito.

b) o segurado requereu o benefício e foi negado. Ele ingressa com pedido judicial. Enquanto aguarda o desfecho do processo ele continua ou retorna ao trabalho: caso a sentença judicial seja favorável, ele terá direito ao pagamento retroativo do benefício mesmo que seja concomitante com o período trabalhado. Segurado não violou a lei, não podendo ser penalizado com o não recebimento do benefício nesse período.

Última dica: fique atento com a expressão “sobre-esforço”.


 

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