sexta-feira, 23 de abril de 2021

É inconstitucional lei estadual que estabeleça prazo decadencial de 10 anos para anulação de atos administrativos reputados inválidos pela Administração Pública

  

A Administração Pública pode anular seus próprios atos quando estes forem ilegais?

SIM. Trata-se do princípio da autotutela (ou poder de autotutela), segundo o qual a Administração tem o poder-dever de controlar seus próprios atos, com a possibilidade de anular aqueles que forem ilegais e revogar os que se mostrarem inconvenientes ou inoportunos, sem precisar recorrer ao Poder Judiciário.

Existem duas súmulas do STF que preveem esse princípio:

Súmula 346-STF: A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.

Súmula 473-STF: A administração pode anular os seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

 

Necessidade de garantir contraditório e ampla defesa para se realizar a autotutela

Vale ressaltar que a prerrogativa de a Administração Pública controlar seus próprios atos não prescinde (não dispensa) a instauração de processo administrativo no qual sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa. Assim, a Administração deve dar oportunidade ao interessado para que ele se manifeste sobre a ilegalidade que foi, a princípio, detectada:

A Administração, à luz do princípio da autotutela, tem o poder de rever e anular seus próprios atos, quando detectada a sua ilegalidade, consoante reza a Súmula 473/STF. Todavia, quando os referidos atos implicam invasão da esfera jurídica dos interesses individuais de seus administrados, é obrigatória a instauração de prévio processo administrativo, no qual seja observado o devido processo legal e os corolários da ampla defesa e do contraditório.

STJ. 1ª Turma. AgInt no AgRg no AREsp 760.681/SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 03/06/2019.

 

É necessária a prévia instauração de procedimento administrativo, assegurados o contraditório e a ampla defesa, sempre que a Administração, exercendo seu poder de autotutela, anula atos administrativos que repercutem na esfera de interesse do administrado.

STF. 1ª Turma. RE 946481 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 18/11/2016.

 

Ao Estado é facultada a revogação de atos que repute ilegalmente praticados; porém, se de tais atos já decorreram efeitos concretos, seu desfazimento deve ser precedido de regular processo administrativo. STF. Plenário. RE 594296, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 21/09/2011 (repercussão geral).

 

Lei nº 9.784/99 e prazo decadencial para o exercício da autotutela

A Lei nº 9.784/99 regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Esta Lei prevê expressamente a possibilidade de o Poder Público exercer a autotutela:

Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.

 

Logo em seguida, a Lei nº 9.784/99 estabelece um prazo decadencial para a revisão de atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal, ou seja, um prazo para o exercício da autotutela.

 

Qual o prazo de que dispõe a Administração Pública federal para anular um ato administrativo ilegal?

Regra

5 anos, contados da data em que o ato foi praticado.

Exceção 1

Em caso de má-fé.

Se ficar comprovada a má-fé, não haverá prazo, ou seja, a Administração Pública poderá anular o ato administrativo mesmo que já tenha se passado mais de 5 anos.

Exceção 2

Em caso de afronta direta à Constituição Federal.

O prazo decadencial de 5 anos do art. 54 da Lei nº 9.784/99 não se aplica quando o ato a ser anulado afronta diretamente a Constituição Federal.

Trata-se de exceção construída pela jurisprudência do STF. Não há previsão na lei desta exceção 2.

STF. Plenário. MS 26860/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 2/4/2014 (Info 741).

 

O prazo decadencial para a revisão dos atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal está previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99:

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

 

Inconstitucionalidade da Lei estadual que preveja prazo de 10 anos

A Lei estadual nº 10.177/98, do Estado de São Paulo, regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública estadual.

O art. 10, I, dessa Lei prevê que o prazo decadencial para a anulação dos atos administrativos no Estado de São Paulo é de 10 anos:

Art. 10. A Administração anulará seus atos inválidos, de ofício ou por provocação de pessoa interessada, salvo quando:

I - ultrapassado o prazo de 10 (dez) anos contado de sua produção;

(...)

 

Foi proposta ADI contra essa previsão sob o argumento de que a norma violaria:

· a competência privativa da União para legislar sobre direito civil (art. 22, I, da CF/88) e sobre contratos administrativos (art. 22, XXVII);

· os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

 

Essa lei estadual usurpou competência privativa da União?

NÃO. Essa lei, na verdade, está inserida na competência constitucional dos Estados-membros para legislar sobre direito administrativo (art. 25, § 1º, CF/88).

A forma federativa de Estado adotada pela Constituição não admite que seja editada uma lei nacional sobre processo administrativo. Isso afrontaria a autonomia dos entes federativos.

Cada ente possui autonomia para estruturar a sua organização e a sua forma de atuação (art. 25, CF/88).

Desse modo, Estados e Municípios podem editar leis dizendo como será o processo administrativo na Administração Pública estadual ou municipal.

Em outras palavras, assim como a União editou a Lei nº 9.784/99, Estados e Municípios também podem editar suas próprias leis de processo administrativo.

Logo, o art. 10, I, da lei paulista não invadiu competência privativa da União.

 

Essa previsão de 10 anos da lei paulista violou o princípio da segurança jurídica?

NÃO. O prazo decadencial de 10 anos não tem o potencial de causar, por si só, insegurança jurídica apta a invalidar a norma em controle de constitucionalidade. Trata-se de lapso temporal amplamente utilizado no direito brasileiro em outras hipóteses relevantes, tais como: (i) prazo prescricional geral do Código Civil (art. 205 do CC); (ii) prazo para revisão de benefícios previdenciários do Regime Geral de Previdência Social – RGPS (art. 103 da Lei nº 8.213/91); e (iii) prazo para ajuizamento de ações de indenização por desapropriação indireta na hipótese em que o Poder Público tenha realizado obras no local ou atribuído natureza de utilidade pública ou de interesse social ao imóvel (Tema 1019 do STJ).

 

Essa previsão de 10 anos da lei paulista violou os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade?

Também NÃO.

O prazo decadencial previsto no dispositivo contestado não é arbitrário ou desproporcional, sendo fruto de ponderação legislativa razoável, tendo em vista o potencial de dano ao interesse público pela convalidação de atos e contratos administrativos contrários à lei e à Constituição e a necessidade de se estipular um prazo legal para o exercício do poder de autotutela administrativa, sob pena de frustração das legítimas expectativas dos particulares na constância e estabilidade da atuação do Poder Público.

 

Isso significa que o prazo de 10 anos para autotutela previsto na lei paulista é constitucional?

NÃO. O STF afirmou que a previsão é inconstitucional, no entanto, com base em um outro argumento não invocado pela autora da ADI: violação ao princípio da igualdade.

O prazo de 5 anos, previsto na Lei nº 9.784/99 consolidou-se como marco temporal geral nas relações entre o Poder Público e particulares. Como exemplos, podemos citar o art. 1º do Decreto nº 20.910/1932 e o art. 173 do CTN.

A maioria dos Estados-membros aplica o prazo quinquenal para anulação de atos administrativos, seja por previsão em lei própria ou por aplicação analógica do art. 54 da Lei nº 9.784/99.

Logo, “não há fundamento constitucional que justifique a situação excepcional do Estado de São Paulo, justamente o mais rico e certamente um dos mais eficientes da Federação, impondo-se o tratamento igualitário nas relações Estado-cidadão”.

Somente são admitidas exceções ao princípio da isonomia quando houver fundamento razoável baseado na necessidade de remediar um desequilíbrio específico entre as partes.

 

Em suma:

É inconstitucional lei estadual que estabeleça prazo decadencial de 10 (dez) anos para anulação de atos administrativos reputados inválidos pela Administração Pública estadual.

STF. Plenário. ADI 6019/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, redator do acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 12/4/2021 (Info 1012).

 

Com base nesse entendimento, o Plenário do STF, por maioria, julgou procedente o pedido formulado em ação direta para declarar a inconstitucionalidade do art. 10, I, da Lei 10.177/98, do Estado de São Paulo.

 

E se o Estado ou o Município não estipular um prazo em sua legislação? Se não houver lei estadual ou municipal fixando um prazo para o exercício da autotutela, será possível aplicar, por analogia integrativa, o prazo de 5 anos do art. 54 da Lei nº 9.784/99?

SIM. É isso que preconiza a súmula 633 do STJ:

Súmula 633-STJ: A Lei nº 9.784/99, especialmente no que diz respeito ao prazo decadencial para a revisão de atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal, pode ser aplicada, de forma subsidiária, aos estados e municípios, se inexistente norma local e específica que regule a matéria.

 

Qual é o fundamento para essa aplicação?

Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Se não houvesse a aplicação do prazo da Lei nº 9.784/99, a Administração Pública estadual ou municipal que não editasse a sua lei ficaria, em tese, completamente livre para exercer a autotutela a qualquer tempo. Isso, contudo, seria uma afronta à segurança jurídica. Confira:

Com vistas nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, este Superior Tribunal de Justiça tem admitido a aplicação, por analogia integrativa, da Lei Federal nº 9.784/1999, que disciplina a decadência quinquenal para revisão de atos administrativos no âmbito da administração pública federal, aos Estados e Municípios, quando ausente norma específica, não obstante a autonomia legislativa destes para regular a matéria em seus territórios.

STJ. 2ª Turma. AgRg no AREsp 345831 PR, Rel. Min. Assusete Magalhães, julgado em 09/06/2016.

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