terça-feira, 17 de agosto de 2021

É possível declarar uma lei formalmente inconstitucional sob o argumento de que, durante a tramitação do projeto, na Casa Legislativa, houve descumprimento das regras de tramitação previstas no Regimento Interno?


Irei tentar responder essa pergunta a partir de um caso concreto recentemente enfrentado pelo STF e que envolveu a Lei nº 13.654/2018.

                                                                            

Lei nº 13.654/2018

A Lei nº 13.654/2018, publicada no dia 24/04/2018, alterou os crimes de furto e roubo previstos no Código Penal.

Uma das mudanças promovidas foi no roubo circunstanciado por emprego de arma.

O art. 157 do Código Penal tipifica o crime de roubo nos seguintes termos:

Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa.

 

O § 2º do art. 157, por sua vez, prevê causas de aumento de pena para o roubo.

Desse modo, se ocorre alguma dessas hipóteses, tem-se o chamado “roubo circunstanciado” (também conhecido como “roubo agravado” ou “roubo majorado”).

O inciso I do § 2º do art. 157 previa o seguinte:

Art. 157 (...)

§ 2º A pena aumenta-se de um terço até metade:

I - se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma;

 

O que fez a Lei nº 13.654/2018?

Revogou o inciso I do § 2º do art. 157 do CP.

 

Inconstitucionalidade formal

Vale ressaltar que o inciso I do § 2º do art. 157 do Código Penal foi revogado pelo art. 4º da Lei nº 13.654/2018:

Art. 4º Revoga-se o inciso I do § 2º do art. 157 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 dezembro de 1940 (Código Penal).

 

Os Ministérios Públicos de vários Estados começaram a alegar, em juízo, que este art. 4º da Lei nº 13.654/2018 seria formalmente inconstitucional.

O argumento era o de que o referido art. 4º teria sido retirado pelos Senadores na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e posteriormente teria sido reinserido no projeto pela Coordenação de Redação Legislativa (CORELE), formada por servidores que prestam apoio ao processo legislativo, mas sem que esta reinserção tenha sido previamente aprovada pelos parlamentares.

Além disso, teria ocorrido erro na publicação do texto final do PLS nº 149/15 aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que não permitiu o conhecimento da matéria pelos demais Senadores e

a eventual interposição de recurso para apreciação do Plenário.

Dessa maneira, teria havido descumprimento do processo legislativo com a aprovação de um artigo inserido indevidamente no projeto.

Diante desse cenário, vários Promotores de Justiça pediram, nos diversos processos em que atuaram, a declaração incidental da inconstitucionalidade do art. 4º da Lei nº 13.654/2018.

 

A questão chegou até o STF. O que decidiu a Corte? O art. 4º da Lei nº 13.654/2018 foi declarado formalmente inconstitucional?

NÃO.

O argumento para se sustentar que o art. 4º da Lei nº 13.654/2018 seria formalmente inconstitucional está no fato de que, durante a tramitação do projeto de lei, teria sido violado o art. 91 do Regimento Interno do Senado Federal.

Logo, não há, no caso concreto, nenhuma alegação de ofensa direta às normas da Constituição Federal que tratam sobre o processo legislativo (arts. 59 a 69 da CF/88).

O STF entende que não cabe a declaração de inconstitucionalidade formal de lei por ofensa apenas às normas regimentais das Casas Legislativas. Isso porque a intepretação do regimento interno do Poder Legislativo é considerado assunto interna corporis, não sujeito, portanto, ao controle judicial, sob pena de violação ao princípio da independência dos poderes:

A interpretação e a aplicação do Regimento Interno da Câmara dos Deputados constituem matéria interna corporis, insuscetível de apreciação pelo Poder Judiciário.

STF. Plenário. MS 26.062/DF-AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 4/4/2008.

 

Não é possível o controle jurisdicional em relação à interpretação de normas regimentais das Casas Legislativas, sendo vedado ao Poder Judiciário, substituindo-se ao próprio Legislativo, dizer qual o verdadeiro significado da previsão regimental, por tratar-se de assunto interna corporis, sob pena de ostensivo desrespeito à Separação de Poderes, por intromissão política do Judiciário no Legislativo.

A proteção ao princípio fundamental inserido no art. 2º da CF/1988, segundo o qual, são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, afasta a possibilidade de ingerência do Poder Judiciário nas questões de conflitos de interpretação, aplicação e alcance de normas meramente regimentais.

STF. Plenário. MS 36.662 AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 7/11/2019.

 

Em suma:

O controle judicial de atos “interna corporis” das Casas Legislativas só é cabível nos casos em que haja desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo (CF, arts. 59 a 69).

Tese fixada pelo STF:

“Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria ‘interna corporis’.”

STF. Plenário. RE 1297884/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 11/6/2021 (Repercussão Geral – Tema 1120) (Info 1021).


Logo, o art. 4º da Lei nº 13.654/2018, que revogou o inciso I do § 2º do art. 157 do CP, não possui vício de inconstitucionalidade formal.



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