segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Ação proposta diretamente por terceiro lesado contra a seguradora



Obs: atualizado em 19/02/2012. Vide acórdão no final

Antônio estava dirigindo seu veículo quando foi abalroado por trás pelo carro de José, que possui seguro de veículos da “Seguradora X”.

Foi realizada a perícia e comprovou-se que a culpa pelo acidente foi de José.

Antônio ajuizou a ação de indenização por danos materiais, cobrando as despesas do conserto do carro, diretamente contra a “Seguradora X” (sem incluir José entre os requeridos).

A “Seguradora X”, em contestação, suscitou a sua ilegitimidade passiva, sob o fundamento de que não poderia ser demandada diretamente pelo terceiro prejudicado, pois sua relação jurídica seria unicamente com o segurado.
Alegou, ainda, que essa situação provocar-lhe-ia, inclusive, prejuízo ao direito de defesa, pois ela não teria conhecimento sobre os fatos alegados por Antônio nem sobre a dinâmica do acidente.

Em linguagem jurídica, a controvérsia posta é a seguinte: a seguradora pode ser demandada diretamente por terceiro lesado, para responder pelos danos por esse suportados, sem que o segurado também figure no polo passivo da ação?O STJ entende que SIM. É possível o terceiro lesado propor a ação diretamente contra a segurada.

Em uma visão estática e legalista do direito civil, a tese levantada pelas seguradoras estaria correta. A seguradora não tem qualquer relação contratual com o terceiro lesado. De igual forma, não foi a seguradora quem causou o acidente. Logo, a seguradora não teria obrigação contratual ou extracontratual. A sua relação jurídica seria com o contratante do seguro.

Felizmente, vivemos em uma outra era do Direito Civil, arraigada por princípios e valores constitucionais que qualificam axiologicamente as relações e os negócios jurídicos.

Lendo os precedentes do STJ percebe-se que os fundamentos dos acórdãos são alicerçados no princípio constitucional da solidariedade (art. 3º, I, da CF) e no princípio da função social do contrato.

Vide esse trecho confirmando a fundamentação utilizada:
Mostra-se plenamente correta essa orientação, à luz do princípio da função social do contrato de seguro, permitindo a ampliação do âmbito de eficácia da relação contratual para se garantir o pagamento efetivo da indenização ao terceiro lesado pelo evento danoso. (AgRg no REsp 474.921/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 19.10.2010).
Em verdade, mais ou menos desde o ano 2000, o STJ admite a tese de que o terceiro lesado proponha a ação contra o autor do dano e a seguradora em litisconsórcio.
Recurso especial. Ação de indenização diretamente proposta contra a seguradora. Legitimidade.
1. Pode a vítima em acidente de veículos propor ação de indenização diretamente, também, contra a seguradora, sendo irrelevante que o contrato envolva, apenas, o segurado, causador do acidente, que se nega a usar a cobertura do seguro.
2. Recurso especial não conhecido." (REsp 228.840/RS; DJ: 04/09/2000: Rel.p/ acórdão Min. Carlos Alberto Menezes Direito).
RESPONSABILIDADE CIVIL. Acidente de trânsito. Atropelamento. Seguro. Ação direta contra seguradora. A ação do lesado pode ser intentada diretamente contra a seguradora que contratou com o proprietário do veículo causador do dano. Recurso conhecido e provido. (REsp 294.057/DF; DJ:12/11/2001; Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar).
O que vale ressaltar é que apenas recentemente a Corte reconheceu que não é nem mesmo necessário que o autor do dano esteja no polo passivo em litisconsórcio, bastando que a ação seja proposta contra a seguradora, que figurará sozinha como ré. Vide a ementa:
CIVIL E PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. AÇÃO PROPOSTA DIRETAMENTE EM FACE DA SEGURADORA SEM QUE O SEGURADO FOSSE INCLUÍDO NO POLO PASSIVO. LEGITIMIDADE.
1. A interpretação de cláusula contratual em recurso especial é inadmissível. Incidência da Súmula 5/STJ.
2. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o tribunal de origem pronuncia-se de forma clara e precisa sobre a questão posta nos autos.
3. A interpretação do contrato de seguro dentro de uma perspectiva social autoriza e recomenda que a indenização prevista para reparar os danos causados pelo segurado a terceiro seja por este diretamente reclamada da seguradora.
4. Não obstante o contrato de seguro ter sido celebrado apenas entre o segurado e a seguradora, dele não fazendo parte o recorrido, ele contém uma estipulação em favor de terceiro. E é em favor desse terceiro - na hipótese, o recorrido - que a importância segurada será paga. Daí a possibilidade de ele requerer diretamente da seguradora o referido pagamento.
5. O fato de o segurado não integrar o polo passivo da ação não retira da seguradora a possibilidade de demonstrar a inexistência do dever de indenizar.
6. Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, não provido.
(REsp 1245618/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/11/2011, DJe 30/11/2011)
Além dos fundamentos baseados nos princípios da solidariedade e da função social do contrato, a Min. Nancy Andrighi utiliza interessante construção sustentando que, no contrato de seguro de automóvel, há uma estipulação em favor de terceiro. Confira-se:
(...) se a seguradora pode ser demandada diretamente, como devedora solidária – em litisconsórcio com o segurado – e não apenas como denunciada à lide, em razão da existência da obrigação de garantia; ela também pode ser demandada diretamente, sem que, obrigatoriamente, o segurado seja parte na ação.
Com efeito, o contrato de seguro de automóvel que prevê o ressarcimento dos danos ocasionados pelo segurado a terceiros retrata a figura jurídica da estipulação em favor de terceiro, prevista nos arts. 436 a 438 do Código Civil.
A Ministra, em seu voto, cita ainda os ensinamentos do grande civilista José de Aguiar Dias, autor de uma das maiores obras sobre responsabilidade civil:
"Em última análise, o que se faz, com a ação direta, é dar pleno cumprimento à vontade das partes. Na verdade, que quis o segurado? Livrar-se de todos os ônus e incômodos decorrentes de sua responsabilidade civil. Quanto ao segurador, o objeto de sua estipulação é satisfazer essas obrigações. Ora, que faz a ação direta? Proporciona a exoneração objetivada pelo segurado e não prejudica o segurador, porque mais não se lhe exige senão o que pagaria, realmente, ao segurado" (Da Responsabilidade Civil, II/849)
Conclui a Ministra que:
(...) inobstante o contrato de seguro tenha sido celebrado apenas entre o segurado e a seguradora, dele não fazendo parte o recorrido, ele contém uma estipulação em favor de terceiro. E é em favor desse terceiro – na hipótese, o recorrido – que a importância segurada será paga. Daí a possibilidade de ele requerer diretamente da seguradora o referido pagamento.
Ressalte-se, por fim, que o fato de o segurado (autor do dano) não estar no polo passivo da demanda não retira a possibilidade de a seguradora demonstrar, por meio da instrução probatória, a inexistência do dever de indenizar, podendo, para tanto, valer-se de perícias, prova testemunhal, reconstituição, entre outras.

Atualização:
O entendimento acima exposto foi superado pelo STJ que consolidou posição em sentido contrário:
RECURSO REPETITIVO. SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL. AJUIZAMENTO DIRETO EXCLUSIVAMENTE CONTRA A SEGURADORA.
A Seção firmou o entendimento de que descabe ação do terceiro prejudicado ajuizada, direta e exclusivamente, em face da seguradora do apontado causador do dano, porque, no seguro de responsabilidade civil facultativo, a obrigação da seguradora de ressarcir os danos sofridos por terceiros pressupõe a responsabilidade civil do segurado, a qual, de regra, não poderá ser reconhecida em demanda na qual este não interveio, sob pena de vulneração do devido processo legal e da ampla defesa. Esse posicionamento fundamenta-se no fato de o seguro de responsabilidade civil facultativa ter por finalidade neutralizar a obrigação do segurado em indenizar danos causados a terceiros nos limites dos valores contratados, após a obrigatória verificação da responsabilidade civil do segurado no sinistro. Em outras palavras, a obrigação da seguradora está sujeita à condição suspensiva que não se implementa pelo simples fato de ter ocorrido o sinistro, mas somente pela verificação da eventual obrigação civil do segurado. Isso porque o seguro de responsabilidade civil facultativo não é espécie de estipulação a favor de terceiro alheio ao negócio, ou seja, quem sofre o prejuízo não é beneficiário do negócio, mas sim o causador do dano. Acrescente-se, ainda, que o ajuizamento direto exclusivamente contra a seguradora ofende os princípios do contraditório e da ampla defesa, pois a ré não teria como defender-se dos fatos expostos na inicial, especialmente da descrição do sinistro. Essa situação inviabiliza, também, a verificação de fato extintivo da cobertura securitária; pois, a depender das circunstâncias em que o segurado se envolveu no sinistro (embriaguez voluntária ou prática de ato doloso pelo segurado, por exemplo), poderia a seguradora eximir-se da obrigação contratualmente assumida.
REsp 962.230-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 8/2/2012.

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