quinta-feira, 24 de março de 2016

É possível relativizar coisa julgada que foi baseada em uma lei posteriormente declarada "não recepcionada" pela CF/88?



Imagine a seguinte situação hipotética:
João ajuizou ação contra o Estado-membro pedindo o pagamento de determinada quantia com base na Lei Estadual nº 7.070/1987.
A sentença foi procedente, tendo transitado em julgado em 1999. Com isso, formou-se um título executivo em favor de João.
Em 2000, o STF, examinando um recurso extraordinário envolvendo o processo de outra pessoa (Pedro) decidiu que a Lei nº 7.070/1987 não foi recepcionada pela CF/88. Logo, Pedro "perdeu" a demanda.
Sobre o tema, façamos duas reflexões:

1) Imaginemos que ainda está em tramitação o processo de execução de João contra a Fazenda Pública e ainda não passou o prazo para que o Poder Público ofereça embargos. É possível que o Estado-membro ofereça embargos à execução (atualmente chamado de "impugnação") invocando a inexequibilidade do título por ser ele inconstitucional (art. 741, II e parágrafo único do CPC 1973 / art. 535, III e § 5º do CPC 2015)?
NÃO. Inicialmente, vejamos o que dizem estes dispositivos:

CPC 1973
CPC 2015
Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre:
II - inexigibilidade do título;
(...)
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.
Art. 535.  A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir:
III - inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação;
(...)
§ 5º Para efeito do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

Não se pode aplicar o art. 741, II e parágrafo único do CPC 1973 (art. 535, III e § 5º do CPC 2015) por duas razões:

a) A sentença de João transitou em julgado em 1999 e o parágrafo único do art. 741 do CPC 1973 foi inserido no Código no ano de 2001. Logo, a jurisprudência entende que este parágrafo único, que foi uma novidade, não pode retroagir para alcançar coisas julgadas anteriores à sua vigência. Nesse sentido:

Súmula 487-STJ: O parágrafo único do art. 741 do CPC não se aplica às sentenças transitadas em julgado em data anterior à da sua vigência.

b) Existem precedentes do STJ afirmando que o art. 741, II e parágrafo único do CPC 1973 (art. 535, III e § 5º do CPC 2015) não se aplica em caso de título executivo fundado em lei posteriormente declarada não recepcionada pelo STF. Nesse sentido: STJ. 1ª Turma. REsp 783.500/SC, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 06/04/2006).

2) Sabendo que não ia adiantar opor os embargos à execução (atual impugnação) pelas razões acima explicadas, o Estado-membro ingressou, em 2002, com ação declaratória de nulidade (querela nullitatis) contra João alegando que o título executivo judicial em seu favor é nulo porque baseado na Lei nº 7.070/1987, considerada incompatível com a CF/88 pelo STF. A Fazenda Pública propôs, portanto, a chamada relativização da coisa julgada inconstitucional. O pedido foi aceito pelo STJ?
NÃO.

Não é possível utilizar ação declaratória de nulidade (querela nullitatis) contra título executivo judicial fundado em lei declarada não recepcionada pelo STF em decisão proferida em controle incidental que transitou em julgado após a constituição definitiva do referido título.
STJ. 2ª Turma. REsp 1.237.895-ES, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 15/9/2015 (Info 576).

O simples fato de o STF ter declarado a inconstitucionalidade de uma lei não faz com que ocorra automaticamente a desconstituição da sentença transitada em julgado anterior que tenha aplicado este ato normativo:

A decisão do STF que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo não produz a automática reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado entendimento diferente; para que tal ocorra, será indispensável a interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria, nos termos do art. 485, V, do CPC 1973, observado o respectivo prazo decadencial. Ressalva-se desse entendimento, quanto à indispensabilidade da ação rescisória, a questão relacionada à execução de efeitos futuros da sentença proferida em caso concreto sobre relações jurídicas de trato continuado.
STF. Plenário. RE 730462, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 28/05/2015 (repercussão geral).

Com esse fundamento, não se revela possível a utilização da querela nullitatis com a finalidade de desconstituir título executivo judicial fundada em lei declarada inconstitucional (ou não recepcionada) após o trânsito em julgado da ação de conhecimento.

Vale ressaltar que, no caso concreto de "João", o STF não declarou a "inconstitucionalidade" da Lei Estadual nº 7.070/1987 (não houve juízo de constitucionalidade), tendo o Pretório declarado a "não-recepção" do referido ato normativo. Mesmo assim aplica-se o entendimento acima exposto no RE 730462. Isso porque se, mesmo com algo mais forte (juízo de inconstitucionalidade), não há aplicação automática do entendimento do STF, com maior razão também não deverá haver desconstituição automática com um mero juízo de recepção negativa (não-recepção; revogação).





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