quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Oitiva de estrangeiro, preso no Brasil por ordem do STF em processo de extradição: carta rogatória ou auxílio direto?



Imagine a seguinte situação adaptada:
Michael, cidadão irlandês, estava sendo procurado pela Interpol por conta de crimes que teria praticado na Irlanda, tendo sido preso no Brasil.
A Irlanda pediu a extradição de Michael e, enquanto o STF não decide o pleito, ele segue preso.
Ocorre que Michael também está sendo investigado por crimes que teria cometido em Portugal.
Diante disso, o Ministério Público português enviou à Procuradoria-Geral da República no Brasil um pedido de cooperação jurídica internacional solicitando que Michael seja ouvido aqui a respeito desses fatos e seu depoimento seja enviado a Portugal.
O pedido feito pelo Ministério Público português ao Ministério Público federal brasileiro foi realizado com base em um tratado bilateral de cooperação jurídica internacional existente entre Brasil e Portugal.

Este pedido formulado é o mesmo que uma carta rogatória? O que Portugal enviou ao Brasil foi uma carta rogatória?
NÃO. No caso concreto, o que Portugal fez foi um pedido de auxílio direto, que é uma forma de cooperação jurídica internacional diferente da carta rogatória.

A oitiva de estrangeiro, preso por ordem do STF em processo de extradição, enquadra-se como providência a ser cumprida por meio de auxílio direto.
STF. 1ª Turma. Pet 5946/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 16/8/2016 (Info 835).

O auxílio direto consiste na obtenção de providências em jurisdição estrangeira, de acordo com a legislação do Estado requerido, por meio de autoridades centrais indicadas em tratado internacional. No auxílio direto, ao contrário da carta rogatória, não é necessário prévio juízo de delibação a ser proferido pelo STJ. Em outras palavras, não é necessário exequatur.

O pedido feito pelo Ministério Público português não se destina à execução de decisão estrangeira no Brasil, ou seja, não haverá produção de efeitos jurídicos no país. Cuida-se apenas de oitiva destinada a instruir persecução penal em curso em Portugal, não havendo necessidade de concessão de exequatur ao pleito.
Não há, nesta situação, a obrigatoriedade de a medida requerida ser cumprida no Brasil por meio de carta rogatória, sendo suficiente o auxílio direto (arts. 28 a 34 do CPC), medida simplificada de cooperação internacional.

Cooperação jurídica internacional
Cooperação jurídica internacional "é o meio pelo qual os entes estatais se articulam para colaborar com a solução de processos judiciais que correm em outros Estados" (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. 8ª ed., Salvador: Juspodivm, 2016, p. 699).

Existem diversos instrumentos de cooperação jurídica internacional, podendo ser destacados os seguintes:
a) auxílio direto;
b) carta rogatória;
c) cooperação por meio de tratados específicos (ex: sequestro internacional de crianças);
d) homologação de sentença estrangeira;
e) extradição.

Dessa forma, cooperação jurídica internacional é um gênero e o auxílio direto uma de suas espécies.

Veja como o tema foi cobrado em prova:
(PFN 2012 ESAF) No Brasil, os instrumentos de cooperação jurídica internacional são o auxílio direto, a homologação de sentença estrangeira, a carta rogatória e a extradição (mesmo que estes não estejam todos previstos na Constituição da República Federativa do Brasil). (CERTO)

Para que serve a cooperação jurídica internacional? Que tipo de cooperação o Brasil pode fornecer a um país estrangeiro e vice-versa?
A cooperação jurídica internacional pode ter por objeto:
I - citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial;
II - colheita de provas e obtenção de informações;
III - homologação e cumprimento de decisão;
IV - concessão de medida judicial de urgência;
V - assistência jurídica internacional;
VI - qualquer outra medida judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira.

Regras
As regras da cooperação jurídica internacional são previstas no tratado que o Brasil celebra (art. 26, caput, do CPC). Ex: tratado bilateral Brasil-Portugal.
Se não houver tratado, a cooperação jurídica internacional deverá ser realizada com base na reciprocidade, manifestada por via diplomática (art. 26, § 1º, do CPC). Em outras palavras, as autoridades diplomáticas brasileiras entram em contato com as autoridades diplomáticas estrangeiras e combinam que, mesmo sem tratado, será assegurado igual tratamento para o Brasil caso um dia venhamos a necessitar de auxílio daquele país para a prática de atos processuais.
Obs1: para que uma sentença estrangeira seja homologada em nosso país não se exige tratado nem reciprocidade (art. 26, § 2º, do CPC).
Obs2: na cooperação jurídica internacional não será admitida a prática de atos que contrariem ou que produzam resultados incompatíveis com as normas fundamentais que regem o Estado brasileiro (art. 26, § 3º).
Obs3: o CPC trata sobre cooperação jurídica internacional em seus arts. 26 a 41. Vale ressaltar que tais disposições, apesar de estarem no CPC, podem ser utilizadas também no processo penal (art. 3º do CPP).

Auxílio direto
O auxílio direto é uma forma de cooperação jurídica internacional mais simplificada.
No auxílio direto, a providência solicitada é cumprida no Brasil mesmo sem exequatur, ou seja, de modo muito mais rápido.
O auxílio direto foi disciplinado pelo art. 28 do CPC:
Art. 28. Cabe auxílio direto quando a medida não decorrer diretamente de decisão de autoridade jurisdicional estrangeira a ser submetida a juízo de delibação no Brasil.

Normalmente, a possibilidade de o Brasil conceder auxílio direto a determinado país está previsto em tratado internacional com ele firmado. No entanto, mesmo que não haja, é possível esta forma de cooperação com base no princípio da reciprocidade.

Veja como o tema já foi cobrado em prova:
(Juiz Federal TRF2 2014) O auxílio direto é espécie do gênero cooperação jurídica internacional e consiste na assistência que a autoridade nacional presta à autoridade estrangeira requerente por meio de um procedimento nacional. Como regra, deve estar previsto em tratado internacional e prescinde da concessão de exequatur pelo Superior Tribunal de Justiça. (CERTO)

Autoridade central
No auxílio direto, a autoridade do país estrangeiro encaminha o pedido de cooperação para uma autoridade no Brasil responsável por receber tais solicitações. Esta autoridade é chamada de "autoridade central". Confira o que diz o CPC:
Art. 29. A solicitação de auxílio direto será encaminhada pelo órgão estrangeiro interessado à autoridade central, cabendo ao Estado requerente assegurar a autenticidade e a clareza do pedido.

A autoridade central é, portanto, o órgão responsável por receber e enviar os pedidos de cooperação jurídica internacional, fazendo antes um juízo de admissibilidade quanto às formalidades. Tem também a função de acompanhar os pedidos, zelando para que a cooperação seja realizada com êxito.

Normalmente, o tratado internacional que é firmado pelo Brasil com o Estado estrangeiro já prevê quem exercerá o papel de "autoridade central" em cada país. Algumas vezes, a lei interna do país é quem define. Na ausência de designação específica, o Ministério da Justiça é quem exercerá as funções de autoridade central em nosso país (art. 26, § 4º). No Ministério da Justiça existe um departamento apenas para cuidar da cooperação jurídica internacional (DRCI), nos termos do Decreto nº 8.668/2016.

Além do Ministério da Justiça, alguns outros tratados internacionais preveem como autoridades centrais no Brasil para determinados casos: a Procuradoria-Geral da República e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Art. 31. A autoridade central brasileira comunicar-se-á diretamente com suas congêneres e, se necessário, com outros órgãos estrangeiros responsáveis pela tramitação e pela execução de pedidos de cooperação enviados e recebidos pelo Estado brasileiro, respeitadas disposições específicas constantes de tratado.

Auxílio direto sem necessidade do Poder Judiciário
Na maioria dos casos, a providência requerida no auxílio direto pode ser cumprida no Brasil sem a necessidade de provocação do Poder Judiciário. Nesta hipótese, a própria autoridade central já toma as providências necessárias e remete o resultado para a autoridade estrangeira. Nesse sentido:
Art. 32.  No caso de auxílio direto para a prática de atos que, segundo a lei brasileira, não necessitem de prestação jurisdicional, a autoridade central adotará as providências necessárias para seu cumprimento.

Ex: a autoridade de um Estado estrangeiro poderá requerer, por auxílio direto, informações a respeito dos bens imóveis que estejam em nome de determinada pessoa no Brasil. Neste exemplo, a autoridade central brasileira poderá obter tais informações no cartório de Registro de Imóveis e remeter tais dados sem necessidade de autorização ou qualquer outra medida do Poder Judiciário.

Auxílio direto e necessidade de prestação jurisdicional
Pode acontecer, no entanto, que a medida requerida no auxílio direto somente possa ser cumprida no Brasil se houver intervenção judicial. Ex: ouvir um investigado que se encontra preso preventivamente.
Neste caso, recebido o pedido de auxílio direto passivo do Estado estrangeiro, o Ministério da Justiça encaminhará à Advocacia-Geral da União, que requererá em juízo a medida solicitada (art. 30).
Se a autoridade central for o Ministério Público, não há necessidade de assistência da AGU e o próprio Parquet poderá requerer em juízo a medida solicitada pela autoridade estrangeira.
Se houver necessidade de prestação jurisdicional para cumprimento do auxílio direto, a competência para analisar e executar esta medida será, em regra, da Justiça Federal de 1ª instância:
Art. 34. Compete ao juízo federal do lugar em que deva ser executada a medida apreciar pedido de auxílio direto passivo que demande prestação de atividade jurisdicional.

A competência é da Justiça Federal com base em três incisos do art. 109, da CF/88:
Inciso I: considerando que a União é interessada na condição de autora;
Inciso III: tendo em vista que o auxílio direto é, normalmente, fundado em um tratado internacional;
Inciso X: uma vez que, quando este inciso fala em "execução de carta rogatória", tal expressão deve abranger também o cumprimento de auxílio direto, providência incomum na época da edição da CF/88.

Finalidades do auxílio direto
Segundo o art. 30 do CPC, o auxílio direto poderá ser utilizado para as seguintes finalidades:
I - obtenção e prestação de informações sobre o ordenamento jurídico e sobre processos administrativos ou jurisdicionais findos ou em curso;
II - colheita de provas, salvo se a medida for adotada em processo, em curso no estrangeiro, de competência exclusiva de autoridade judiciária brasileira;
III - qualquer outra medida judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira.

Quadro-resumo com as diferenças entre a carta rogatória e o auxílio direto:

Carta rogatória
Auxílio direto
Pedido de cooperação judiciária formulado pela autoridade judiciária de um país para a autoridade judiciária de outro.
Também consiste em um pedido de cooperação judiciária, mas não necessariamente precisará da participação do Poder Judiciário.
Para que seja cumprida no Brasil, é necessário um prévio juízo de delibação feito pelo STJ.
Não existe esta necessidade.
Será executada pelo juiz federal após a concessão do exequatur pelo STJ.
Pode ser executada pelas autoridades administrativas de nosso país, salvo se for necessária alguma medida judicial. Neste caso, a competência para executar também será do juiz federal.

Voltando ao caso concreto, se a medida solicitada fosse caso de carta rogatória:
Quando o Ministério Público português formulou o pedido para ouvir Michael, surgiu a dúvida se isso seria uma providência a ser cumprida no Brasil por meio de carta rogatória ou auxílio direto.
Se fosse carta rogatória, seria necessário encaminhar o pedido ao STJ para que ele concedesse o exequatur, ou seja, o "cumpra-se", depois de analisar que os requisitos formais foram preenchidos. Assim, somente poderia ser ouvido o investigado depois de o STJ autorizar o cumprimento da carta. Esta competência está prevista no art. 105, I, "i", da CF/88:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar, originariamente:
(...)
i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias;

Depois de o STJ conceder o exequatur, quem iria cumprir a carta rogatória, ou seja, quem iria ouvir o investigado seria um juiz federal de 1ª instância, conforme determina o art. 109, X, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
X - os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o "exequatur", e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização;

Veja como o tema já foi cobrado em prova:
(Juiz Federal TRF2 2014) Concedido o exequatur pelo Superior Tribunal de Justiça, a Carta Rogatória será cumprida por juiz federal de primeiro grau, independentemente da matéria de que cuide. (CERTO)

No entanto, não era hipótese de carta rogatória, mas sim de auxílio direto...
No caso de carta rogatória, é indispensável a intervenção judicial por meio da concessão do exequatur (STJ) e da execução da carta (juiz federal).
No caso de auxílio direto, conforme já vimos, nem sempre será necessária a intervenção judicial.
No exemplo dado, era necessária a intervenção judicial porque Michael encontrava-se preso para fins de extradição, ou seja, ele se encontrava preso por força de decisão judicial, não se podendo interrogá-lo sem autorização da autoridade judicial responsável pela prisão.
O pedido do Ministério Público português foi recebido pelo Ministério Público federal brasileiro (autoridade central).
O MPF quer cumprir o auxílio direto, mas necessita de autorização judicial para a oitiva do preso.

De quem é a competência, no caso concreto, para autorizar este auxílio direto?
STF.

Compete ao STF apreciar o pedido de cooperação jurídica internacional na hipótese em que solicitada, via auxílio direto, a oitiva de estrangeiro custodiado no Brasil por força de decisão exarada em processo de extradição.
STF. 1ª Turma. Pet 5946/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 16/8/2016 (Info 835).



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