quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Quem julga os crimes praticados por Desembargadores?



DECISÃO DO STF RESTRINGINDO O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Em maio de 2018, o STF decidiu restringir o foro por prerrogativa de função dos Deputados Federais e Senadores.
O art. 53, § 1º e o art. 102, I, “b”, da CF/88 preveem que, em caso de crimes comuns, os Deputados Federais e os Senadores serão julgados pelo STF.
Ocorre que o Supremo conferiu uma interpretação restritiva a esses dispositivos e afirmou o seguinte:
O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018 (Info 900).

Em outras palavras, os Deputados Federais e Senadores somente serão julgados pelo STF se o crime tiver sido praticado durante o exercício do mandato de parlamentar federal e se estiver relacionado com essa função.

O entendimento que restringe o foro por prerrogativa de função vale para outras hipóteses de foro privilegiado ou apenas para os Deputados Federais e Senadores?
Vale para outros casos de foro por prerrogativa de função. Foi o que decidiu o próprio STF no julgamento do Inq 4703 QO/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 12/06/2018, no qual afirmou que o entendimento vale também para Ministros de Estado.
O STJ também decidiu que a restrição do foro deve alcançar Governadores e Conselheiros dos Tribunais de Contas estaduais. Explico.
O art. 105, I, “a”, da CF/88 prevê que compete ao STJ julgar os crimes praticados por Governadores de Estado e por Conselheiros dos Tribunais de Contas dos Estados:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;

STJ DECIDIU TAMBÉM RESTRINGIR O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NO CASO DAS AUTORIDADES QUE SÃO JULGADAS NAQUELE TRIBUNAL
A Corte Especial do STJ, seguindo o mesmo raciocínio do STF, limitou a amplitude do art. 105, I, “a”, da CF/88 e decidiu que:
O foro por prerrogativa de função no caso de Governadores e Conselheiros de Tribunais de Contas dos Estados deve ficar restrito aos fatos ocorridos durante o exercício do cargo e em razão deste.
Assim, o STJ é competente para julgar os crimes praticados pelos Governadores e pelos Conselheiros de Tribunais de Contas somente se estes delitos tiverem sido praticados durante o exercício do cargo e em razão deste.
STJ. Corte Especial. APn 857/DF, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, julgado em 20/06/2018.
STJ. Corte Especial. APn 866/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 20/06/2018.

O STJ disse o seguinte:
• O STF, ao analisar o art. 102, I, da CF/88 decidiu restringir o foro por prerrogativa de função para Deputados Federais e Senadores. Em seguida, restringiu também para Ministros de Estado. A partir dessa restrição, tais autoridades somente poderão ter foro no STF em caso de crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
• Diante dessa decisão do STF, eu (STJ) também irei restringir o foro por prerrogativa de função para as autoridades que estão listadas no art. 105, I, “a”, da CF/88, aplicando o mesmo raciocínio.
• O fato de a regra de competência estar prevista no texto constitucional (art. 105 da CF/88) não pode representar óbice à análise, por este STJ, de sua própria competência, sob pena de se inviabilizar, nos casos como o dos autos, o exercício deste poder-dever básico de todo órgão julgador, impedindo o imprescindível exame deste importante pressuposto de admissibilidade do provimento jurisdicional. Em palavras mais simples, a restrição da competência do art. 105 da CF/88 passa por uma nova intepretação do texto constitucional. A função precípua de interpretação à Constituição Federal é do STF. No entanto, eu (STJ), assim como todo e qualquer magistrado, também tenho a prerrogativa de interpretar as normas jurídicas, inclusive a Constituição da República.
• Além disso, todo juiz é competente para analisar a sua própria competência (“kompetenz-kompetenz”), de forma que eu (STJ) posso interpretar o art. 105 da CF/88 para dizer se sou ou não competente para julgar determinada autoridade, podendo, assim, adotar a mesma restrição construída pelo STF.
• O foro especial no âmbito penal é prerrogativa destinada a assegurar a independência e o livre exercício de determinados cargos e funções de especial importância, isto é, não se trata de privilégio pessoal. O princípio republicano é condição essencial de existência do Estado de Direito e impõe a supressão dos privilégios, devendo ser afastados da interpretação constitucional os princípios e regras contrários à igualdade.
• O art. 105, I, “a”, CF/88 consubstancia exceção à regra geral de competência, de modo que, partindo-se do pressuposto de que a Constituição é una, sem regras contraditórias, deve ser realizada a interpretação restritiva das exceções, com base na análise sistemática e teleológica da norma.
• As mesmas razões fundamentais (a mesma ratio decidendi) que levaram o STF, ao interpretar o art. 102, I, “b” e “c”, da CF/88, a restringir as hipóteses de foro por prerrogativa de função devem ser também aplicadas ao art. 105, I, “a”.
• Assim, é de se conferir ao art. 105, I, “a”, da CF/88, o mesmo sentido e alcance atribuído pelo STF ao art. 102, I, “b” e “c”, restringindo-se, desse modo, as hipóteses de foro por prerrogativa de função perante o STJ àquelas em que o crime for praticado em razão e durante o exercício do cargo ou função.

As hipóteses de foro por prerrogativa de função perante o STJ restringem-se àquelas em que o crime for praticado em razão e durante o exercício do cargo ou função.
STJ. Corte Especial. AgRg na APn 866-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 20/06/2018 (Info 630).

DECISÃO QUE RESTRINGE O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO NÃO SE APLICA PARA DESEMBARGADORES
O art. 105, I, “a”, da CF/88 prevê que os Desembargadores dos Tribunais de Justiça são julgados criminalmente pelo STJ. O entendimento acima exposto (que restringiu o foro para crimes relacionados com o cargo) é aplicado também para os Desembargadores dos Tribunais de Justiça? Se um Desembargador praticar crime que não esteja relacionado com o exercício de suas funções (ex: lesão corporal contra a esposa), ele será julgado pelo juízo de 1ª instância?
NÃO.
Os Desembargadores dos Tribunais de Justiça continuam sendo julgados pelo STJ mesmo que o crime não esteja relacionado com as suas funções.
Assim, o STJ continua sendo competente para julgar quaisquer crimes imputados a Desembargadores, não apenas os que tenham relação com o exercício do cargo.
STJ. APn 878/DF QO, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 21/11/2018.

É uma espécie de “exceção” ao entendimento do STJ que restringe o foro por prerrogativa de função.
O STJ entendeu que haveria um risco à imparcialidade caso o juiz de 1º instância julgasse um Desembargador (autoridade que, sob o aspecto administrativo, está em uma posição hierarquicamente superior ao juiz).
Veja as palavras do Min. Relator Benedito Gonçalves:
“É que, em se tratando de acusado e de julgador, ambos, membros da Magistratura nacional, pode-se afirmar que a prerrogativa de foro não se justifica apenas para que o acusado pudesse exercer suas atividades funcionais de forma livre e independente, pois é preciso também que o julgador possa reunir as condições necessárias ao desempenho de suas atividades judicantes de forma imparcial.
Esta necessidade (de que o julgador possa reunir as condições necessárias ao desempenho de suas atividades judicantes de forma imparcial) não se revela como um privilégio do julgador ou do acusado, mas como uma condição para que se realize justiça criminal. Ser julgado por juiz com duvidosa condição de se posicionar de forma imparcial, afinal, violaria a pretensão de realização de justiça criminal de forma isonômica e republicana.
A partir desta forma de colocação do problema, pode-se argumentar que, caso Desembargadores, acusados da prática de qualquer crime (com ou sem relação com o cargo de Desembargador) viessem a ser julgados por juiz de primeiro grau vinculado ao Tribunal ao qual ambos pertencem, se criaria, em alguma medida, um embaraço ao juiz de carreira.”

O caso concreto enfrentado pelo STJ envolvia um Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná que estava sendo acusado de ter, supostamente, praticado lesão corporal contra a mãe e a irmã.
Este Desembargador deve ser julgado pelo STJ (e não pelo Juiz de Direito de 1ª instância).

O Min. João Otávio de Noronha acompanhou o Relator argumentando que:
“Por mais que acredite na lisura dos juízes brasileiros, seria muito constrangedor para esse juiz em determinada situação votar ou condenar um superior hierárquico, que votou ou votará nele para uma promoção. Sem considerar outras hipóteses. Eu não daria essa carta em branco. Não assinaria um cheque em branco para os juízes nessa hipótese. Eu prefiro a cautela. Não quero ver juiz perseguido nem promovido por favores concedidos que pode gerar até a impunidade. Minha preocupação é sobretudo a impunidade, vamos ver Estado em que a pressão no juiz é muito grande. Juiz que tem vínculo com investigado não pode julgar. É uma blindagem que se faz à independência da magistratura. O juiz que está subordinado a um investigado não deve julgá-lo.”

No mesmo sentido foi o voto do Min. Herman Benjamin:
“Para um juiz, a carreira é o fundamento da sua existência profissional. E não vejo como um juiz possa julgar o corregedor do seu Tribunal. O foro existe para o réu e em favor da sociedade. É garantia implícita."

Votos vencidos
Ficaram vencidos os Ministros Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques e Maria Thereza de Assis Moura, que defendiam a tese de que os Desembargadores devem receber o mesmo tratamento que as demais autoridades e que se o delito não estiver relacionado com as funções, eles deveriam ser julgados em 1ª instância.

O caso analisado pelo STJ envolvia um Desembargador do Tribunal de Justiça. Esse entendimento deverá ser aplicado também para os membros dos TRFs (“Desembargadores Federais), para os membros dos TRTs (“Desembargadores Federais do Trabalho”) e para os membros dos TREs? Essas autoridades também serão julgadas pelo STJ mesmo que o crime tenha sido praticado fora do exercício do cargo e mesmo que o delito não esteja relacionado com as funções desempenhadas?
Essa questão não foi solucionada ainda de forma expressa pelo STJ. Isso porque alguns Ministros afirmaram que estavam mantendo o foro porque entendiam que não era prudente um juiz julgar o processo criminal de um Desembargador ao qual está vinculado hierarquicamente. Logo, para esses Ministros, um dos argumentos principais para se manter a competência do STJ nesses casos está no fato de que o Juiz não teria a imparcialidade necessária para julgar um Desembargador que pertence ao mesmo Tribunal que ele (e que é seu superior).
Ocorre que, se um membro do TRT (“Desembargador Federal do Trabalho”) praticar um crime, ele não seria julgado por um Juiz do Trabalho, mas sim por um Juiz Federal, por exemplo. Isso porque o Juiz do Trabalho não tem jurisdição criminal. O “Desembargador Federal do Trabalho” não tem qualquer ingerência sobre o Juiz Federal, considerando que fazem parte de Tribunais diferentes. Desse modo, esse argumento do STJ não se aplicaria neste caso e, em tese, não haveria qualquer empecilho de o “Desembargador Federal do Trabalho” ser julgado em 1ª instância.
O Min. João Otávio de Noronha, em trecho de seu voto, deu a entender que poderia, em tese, adotar essa distinção:
 “A questão envolvendo o Judiciário tem que ser caso a caso. Não há problema nenhum de um juiz do Trabalho, por exemplo, ser julgado por um juiz de primeiro grau. Mas há problema um juiz de primeiro grau julgar um desembargador que o promoveu ou que reforma suas decisões”.

Por outro lado, alguns Ministros demonstraram certo incômodo de se criar uma regra de foro para os Desembargadores dos Tribunais de Justiça e outra para os “Desembargadores Federais do Trabalho”.
Assim, é preciso aguardar para se ter certeza do caminho que será adotado pelo STJ.

Por enquanto, posso apontar as seguintes conclusões e dúvidas:
• REGRA: as autoridades listadas no art. 105, I, “a”, da CF/88 somente são julgadas pelo STJ em caso de crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. Ex: membro do Tribunal de Contas pratica violência doméstica contra a sua esposa. Será julgado pelo Juiz de Direito de 1ª instância.
• EXCEÇÃO: os Desembargadores dos Tribunais de Justiça são julgados pelo STJ mesmo que o crime não esteja relacionado com as suas funções. Ex: Desembargador pratica violência doméstica contra sua esposa. Será julgado pelo STJ (e não pelo juiz de 1ª instância).

DÚVIDAS:
1) Essa mesma exceção poderá ser aplicada para os membros dos TRFs (“Desembargadores Federais), para os membros dos TRTs (“Desembargadores Federais do Trabalho”) e para os membros dos TREs?
2) Essa mesma exceção poderá ser aplicada para os membros dos TRFs (“Desembargadores Federais), para os membros do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais (e que estão listados no art. 105, I, “a”, da CF/88)?
3) Se o crime praticado pelo Desembargador do Tribunal de Justiça for um “crime federal” (delito de competência da Justiça Federal), ele poderia ser julgado pelo Juiz Federal de 1ª instância, considerando que eles não mantêm qualquer vinculação entre si, já que não fazem parte do mesmo Tribunal?

Com informações dos sites:
www.migalhas.com.br
www.stj.jus.br



Print Friendly and PDF