quarta-feira, 5 de novembro de 2025
O Estado não pode ser condenado a indenizar o ofendido por declarações de Deputado Estadual; isso porque a imunidade material é uma causa de exclusão de responsabilidade do Estado; se houve abuso, a responsabilidade será pessoal do parlamentar
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Ricardo era juiz de direito em
uma comarca do interior do Estado.
O Deputado Estadual Pedro
Carvalho, em um discurso no Plenário da Assembleia Legislativa do Estado, fez
graves acusações contra Ricardo.
O parlamentar afirmou que o juiz
teria recebido R$ 174.960,00 da Prefeitura para, em troca, beneficiar o
prefeito em uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público.
Segundo o Deputado, tratava-se de
um “conchavo”, um “conluio” entre o prefeito e o juiz, caracterizando o
recebimento como “pagamento do serviço prestado pelo Juiz ao Prefeito”.
O Deputado usou expressões como “as
provas ainda estão aqui, nas minhas mãos”, “as pegadas do crime estão aqui na
minha mão” e questionou: “quando quem faz é o próprio juiz, vai-se apelar para
quem? Para o Bispo?”.
As acusações foram amplamente
divulgadas pela imprensa.
Ocorre que Ricardo, na verdade,
havia recebido aquele valor em razão de uma transação processual legítima em
outra ação indenizatória que ele próprio havia movido contra o Município. Não
havia qualquer crime ou irregularidade.
Diante disso, Ricardo ajuizou ação de indenização contra o
Estado-membro (e não contra o Deputado), pedindo indenização por danos morais
com base no art. 37, § 6º da Constituição (responsabilidade civil objetiva do
Estado por atos de seus agentes):
Art. 37 (...)
§ 6º As pessoas jurídicas de direito
público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão
pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado
o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Ricardo ajuizou a ação contra o Estado-membro (e não contra
o Deputado pessoalmente) porque sabia que os Deputados Estaduais gozam de
imunidade material (art. 53 c/c art. 27, § 1º da CF/88) e, portanto, foi a
forma que tentou encontrar de superar essa previsão e ser indenizado pelas
acusações injustamente sofridas:
Art. 53. Os Deputados e Senadores são
invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e
votos.
(...)
Art. 27. O número de Deputados à
Assembléia Legislativa corresponderá ao triplo da representação do Estado na
Câmara dos Deputados e, atingido o número de trinta e seis, será acrescido de
tantos quantos forem os Deputados Federais acima de doze.
§ 1º Será de quatro anos o mandato dos
Deputados Estaduais, aplicando- sê-lhes as regras desta Constituição sobre
sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato,
licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas.
(...)
O Estado-membro contestou
argumentando que não poderia ser responsabilizado, pois as palavras do Deputado
estavam cobertas pela imunidade parlamentar material prevista no art. 53 da
Constituição. Segundo o Estado, se o parlamentar é inviolável civil e
penalmente por suas opiniões, palavras e votos, o ente público também não
poderia ser responsabilizado objetivamente.
O juiz julgou o pedido
procedente.
O Tribunal de Justiça manteve a
condenação em R$ 200.000,00.
Irresignado, o Estado-membro
interpôs recurso extraordinário insistindo nos argumentos acima expostos.
A imunidade parlamentar
material afasta a responsabilidade civil objetiva do Estado prevista no art.
37, § 6º da Constituição? O STF concordou com os argumentos do Estado-membro?
SIM.
A imunidade parlamentar
material e sua relação com a liberdade de expressão
Este caso envolve dois
importantes temas do Direito Constitucional: a liberdade de expressão (art. 5º,
IV, da Constituição) e a imunidade parlamentar material (art. 53, caput, da
Constituição).
Os dois institutos estão
intimamente ligados.
A imunidade parlamentar é, em
essência, uma forma especial de proteger a liberdade de expressão dos
parlamentares, garantindo sua independência e, por consequência, o
funcionamento livre e saudável da democracia.
A centralidade da liberdade
de expressão
A liberdade de expressão ocupa
posição central nas democracias modernas. Isso ocorre porque ela cumpre várias
funções essenciais: permite o debate político, viabiliza a formação da opinião
pública, promove a dignidade humana e o livre desenvolvimento da personalidade.
Além disso, é indispensável para o processo coletivo de busca pela verdade,
pois só há democracia real onde há circulação livre de ideias e opiniões
diversas.
A Constituição de 1988 conferiu
proteção reforçada à liberdade de expressão. Isso significa que, quando ela
entra em conflito com outros direitos (como a honra ou a imagem), há uma
presunção inicial em seu favor. Assim, quem quiser restringi-la precisa apresentar
justificativas muito fortes. Qualquer medida limitadora deve ser vista com
desconfiança e analisada de forma rigorosa.
Limites da liberdade de
expressão
Apesar de sua importância, a
liberdade de expressão não é um direito absoluto. Ela não protege, por exemplo,
discursos que incitem a violência, pornografia infantil ou ofensas
deliberadamente difamatórias.
A função da imunidade
parlamentar
O art. 53 da Constituição
estabelece que deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por
quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Essa regra se estende aos
deputados estaduais (art. 27, §1º) e, de forma mais restrita, aos vereadores (art.
29, VIII), que só são protegidos quando agem no exercício do mandato e dentro
do território do município.
A imunidade parlamentar material
é uma garantia funcional, não um privilégio pessoal. Ela existe para proteger a
liberdade de expressão dos representantes eleitos, assegurando que possam agir
e falar livremente no exercício do mandato, sem medo de punições civis ou
penais.
Essa proteção visa resguardar o
Poder Legislativo e o próprio regime democrático, permitindo o debate franco e
a fiscalização dos demais Poderes.
O STF entende que essa imunidade
protege a instituição parlamentar, não o indivíduo. Por isso, deve ser
interpretada de forma a reforçar a liberdade de expressão no exercício do
mandato. A Corte já decidiu que até ofensas pessoais proferidas em debates políticos
estão cobertas pela imunidade, desde que ocorram dentro dos limites
constitucionais. Contudo, isso não impede o controle político interno pela
própria Casa Legislativa.
A liberdade de expressão
parlamentar deve ser ampla, mas dentro dos limites da civilidade. O Parlamento
é o espaço legítimo para o debate de ideias, mas não para o “mercado de
ofensas”. O uso da imunidade para propagar discursos de ódio, intolerância ou discriminação
viola sua própria razão de existir.
O STF tem afastado a imunidade
quando o discurso do parlamentar representa abuso de direito, fraude ou desvio
de finalidade. Isso ocorre, por exemplo, quando há incitação ao crime, ataques
à democracia ou mentiras deliberadas. A imunidade é ampla, mas não pode ser
usada contra os valores que a fundamentam, como a dignidade humana e o
princípio democrático.
A regra geral da
responsabilidade do Estado
O art. 37, §6º, da Constituição
estabelece que o Estado responde objetivamente pelos danos causados por seus
agentes no exercício de suas funções. Essa regra se baseia na teoria do risco
administrativo, que visa proteger o cidadão contra prejuízos resultantes da
atuação estatal.
A responsabilidade do Estado
exige três elementos principais:
• conduta do agente público;
• dano ao particular;
• nexo causal entre ambos.
Além disso, é necessário que não
haja causa excludente de responsabilidade.
Quando esses requisitos se
confirmam, o Estado deve indenizar, podendo, depois, cobrar do agente público
se ele tiver agido com dolo ou culpa.
A imunidade parlamentar é
uma causa de exclusão de responsabilidade
A partir da leitura sistemática
da Constituição, conclui-se que a imunidade parlamentar material (art. 53,
caput) atua como uma causa de exclusão da responsabilidade civil objetiva do
Estado. Em outras palavras: se o ato do parlamentar está protegido pela
imunidade, não há dever de indenizar.
Cinco razões principais sustentam
essa conclusão:
1) interpretação teleológica
(baseada na finalidade da norma)
A imunidade material existe para
proteger a liberdade de expressão parlamentar e garantir a independência do
Legislativo. Ela não é um privilégio pessoal, mas uma prerrogativa
institucional do Estado.
Assim, não faria sentido aplicar
simultaneamente o art. 37, §6º (responsabilidade do Estado) e o art. 53
(imunidade), pois isso criaria contradição entre normas constitucionais.
Se o Estado fosse obrigado a
indenizar danos causados por discursos protegidos, isso criaria um efeito
inibidor (chilling effect): os parlamentares poderiam evitar críticas ou
fiscalizações temendo repercussões financeiras para o erário.
Em outras palavras, o medo de
indenizações poderia levar à autocensura, enfraquecendo o debate público e a
democracia.
Portanto, imputar
responsabilidade ao Estado por atos protegidos pela imunidade distorce a sua
finalidade e compromete a separação dos Poderes.
2) interpretação sistemática
A segunda razão decorre do
princípio da unidade da Constituição.
A Constituição deve ser
interpretada como um sistema coerente e harmônico, e não como um conjunto de
normas isoladas.
Dentro desse sistema, a imunidade
parlamentar é uma norma especial e estruturante, voltada a proteger o núcleo da
democracia representativa.
Por isso, ela limita o alcance da
regra geral de responsabilidade do Estado (art. 37, §6º).
Onde há imunidade, não pode haver
dever de indenizar.
Admitir o contrário geraria
“responsabilidade sem regresso”, já que o Estado não poderia cobrar do
parlamentar o valor pago em indenização, rompendo a coerência do §6º.
Logo, atos protegidos pela
imunidade excluem a responsabilidade civil do Estado, e eventuais excessos
devem ser apurados politicamente, nos termos do art. 55, §§1º e 2º da
Constituição.
3) princípio da
proporcionalidade
Reconhecer a responsabilidade do
Estado pode proteger a honra de terceiros (art. 5º, X), mas, em contrapartida,
restringe a liberdade de expressão e o princípio democrático.
Na ponderação entre esses
valores, prevalece a proteção da liberdade parlamentar, pois ela é essencial ao
regime democrático.
4) dimensão objetiva da
liberdade de expressão
A liberdade de expressão tem duas
dimensões:
• subjetiva, que protege o
indivíduo contra censura;
• objetiva, que impõe ao Estado o
dever de promover e proteger o debate público.
Assim, para que essa proteção
seja efetiva, o Estado deve evitar medidas que enfraqueçam a liberdade
parlamentar, como a responsabilização civil por discursos cobertos pela
imunidade.
Caso contrário, haveria uma
proteção deficiente da liberdade de expressão no próprio ambiente onde ela mais
precisa ser garantida: o Parlamento.
5) preservação do sistema
representativo
O sistema representativo foi
criado para garantir pluralismo e dar voz às minorias políticas.
Se cada discurso pudesse gerar
uma ação de indenização contra o Estado, a maioria poderia usar o argumento
financeiro para silenciar opositores (“veto orçamentário”).
A imunidade parlamentar impede
justamente isso: ela assegura que o debate político seja livre, plural e sem
coerção econômica.
Diante disso, a imunidade
parlamentar material deve ser entendida como causa excludente da
responsabilidade civil objetiva do Estado (art. 37, §6º).
Quando a imunidade não se
aplica
Quando o parlamentar abusa da
imunidade, usando-a para fins pessoais, fraudulentos ou desconectados do
mandato, o ato não está protegido. Nesses casos, a responsabilidade é pessoal e subjetiva,
conforme o Código Civil (arts. 186, 187 e 927), e depende de prova de culpa ou
dolo.
O STF já reconheceu isso em
precedentes, como o RE 405.386 (Rel. Min. Teori Zavascki) e o ARE 1.422.919 AgR
(Rel. Min. Cármen Lúcia, red. p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes), que
afastaram a imunidade por reconhecer que houve excesso evidente e ausência de
relação entre a fala e o exercício do mandato.
Voltando ao caso concreto
As manifestações proferidas pelo
então Deputado Estadual ocorreram em sessão oficial da Assembleia Legislativa,
no contexto de críticas dirigidas à Administração Municipal.
Para o STF, as palavras do
Deputado estavam acobertadas pela imunidade parlamentar material. Logo, havia
uma causa excludente de responsabilidade, que afasta a imputação estatal.
Diante disso, o STF reformou o
acórdão do Tribunal de Justiça para afastar a responsabilidade objetiva do
Estado pelas ofensas proferidas pelo Deputado.
O STF afirmou, ainda, que se o
ofendido entendeu que as manifestações do parlamentar extrapolaram os limites
da garantia institucional, a ação deveria ter sido proposta diretamente contra
ele, a fim de que fosse analisada a sua responsabilidade subjetiva (e não
contra o Estado).
Tese fixada pelo STF:
1. A imunidade material parlamentar (art. 53, caput,
c/c art. 27, § 1º, e art. 29, VIII, CF/88) configura excludente da
responsabilidade civil objetiva do Estado (art. 37, § 6º, CF/88), afastando
qualquer pretensão indenizatória em face do ente público por opiniões, palavras
e votos cobertos por essa garantia.
2. Nas hipóteses em que a conduta do parlamentar
extrapolar os limites da imunidade material, eventual responsabilização recairá
de forma pessoal, direta e exclusiva sobre o próprio parlamentar, sob o regime
de responsabilidade civil subjetiva.
STF. Plenário.
RE 632.115/CE, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 27/09/2025
(Repercussão Geral – Tema 950) (Info 1192).
O parlamentar, enquanto agente
político, exerce função de natureza eminentemente política, gozando de
independência e autonomia. Nesse contexto, responsabilizar o Estado por atos
integralmente cobertos pela imunidade material comprometeria a separação de
Poderes e a autonomia do Poder Legislativo, além de interferir na liberdade de
expressão parlamentar.
Já nas situações em que se abusa
da garantia institucional conferida ao Parlamento, a responsabilização é
subjetiva, conforme previsto no Código Civil, exigindo-se a demonstração de
culpa ou dolo na prática do ato ilícito. Assim, se causar danos por ofensas sem
relação com o mandato ou por uso abusivo ou fraudulento de prerrogativas
constitucionais, o parlamentar estará sujeito à responsabilidade civil
subjetiva.
Na espécie, o Tribunal de Justiça
do Ceará reconheceu a responsabilidade civil objetiva do estado, condenando-o
ao pagamento de indenização por dano moral causado por pronunciamento de
deputado estadual na tribuna da respectiva Assembleia Legislativa, no contexto
de críticas dirigidas à Administração Municipal de Canindé/CE.
Com base nesses e em outros
entendimentos, o Plenário, por unanimidade, ao apreciar o Tema 950 da
repercussão geral, (i) deu provimento ao recurso extraordinário para julgar
improcedentes os pedidos formulados na inicial e (ii) fixou a tese
anteriormente citada.

