Dizer o Direito

domingo, 2 de novembro de 2025

O mau estado de conservação do veículo não constitui fundada suspeita para justificar a busca veicular e pessoal

Imagine a seguinte situação hipotética:

Durante patrulhamento de rotina, policiais militares visualizaram um veículo trafegando com a porta amassada e em mau estado de conservação. Eles consideraram aquilo suspeito e, então, decidiram abordar o automóvel e ordenaram que o condutor parasse.

Em busca veicular, foi encontrada uma pistola no carro, sem que João, o condutor, tivesse autorização.

João foi preso em flagrante.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra ele pela prática do crime previsto no art. 14, caput, da Lei nº 10.826/2003.

A denúncia foi recebida.

A defesa do réu impetrou habeas corpus, no qual alegou que a busca veicular foi ilegal, pois não havia fundada suspeita que justificasse a abordagem. Argumentou que o simples fato de o veículo estar com a porta amassada não configura indício concreto de prática criminosa, tratando-se de abordagem exploratória (fishing expedition).

 

A questão chegou até o STJ. Para o STJ, a busca veicular realizada foi LEGAL?

NÃO.

A busca pessoal é regida pelo art. 244 do CPP.

A busca veicular é equiparada à busca pessoal, ou seja, recebe o mesmo tratamento jurídico.

Vejamos o que o art. 244 do CPP fala sobre a busca pessoal (à qual se equipara a busca veicular):

Art. 244.  A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

 

A partir da leitura desse dispositivo, é possível extrair três hipóteses de busca pessoal sem mandado.

 

Hipóteses de busca pessoal sem mandado:

a) no caso de prisão (ex: o indivíduo é preso em flagrante, o que autoriza a realização de busca pessoal);

b) quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito; ou

c) quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

 

A situação em tela se enquadraria, segundo a narrativa dos policiais, na hipótese da letra “b”.

Exige-se, neste caso, a fundada suspeita de que a pessoa abordada esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papeis que constituam corpo de delito.

 

O § 2º do art. 240 afirma que é necessária a presença de fundada suspeita para que seja autorizada a busca pessoa.

 

O mau estado de conservação do veículo não constitui fundada suspeita para justificar a busca veicular e pessoal

No caso concreto, a única justificativa apresentada pelos policiais para a abordagem foi o fato de o carro de João estar com a porta amassada, ou seja, em mau estado de conservação.

Para o STJ, contudo, isso não configura, por si só, uma fundada suspeita.

O mau estado do veículo é um elemento genérico, subjetivo e insuficiente para justificar uma medida invasiva como a busca.

Vale ressaltar que não basta a intuição policial ou impressões subjetivas para que se realize uma busca pessoal ou veicular. É necessário que existam elementos objetivos, concretos e demonstráveis, que apontem para a prática de um crime ou para a posse de objetos ilícitos. Essa exigência evita que as abordagens se transformem em “fishing expeditions”, isto é, buscas genéricas realizadas sem motivo definido, apenas com a esperança de encontrar algo irregular.

Assim, o STJ considerou a abordagem ilegal e declarou a ilicitude das provas obtidas em decorrência dessa busca. Com base na teoria dos frutos da árvore envenenada, determinou o trancamento da ação penal contra João. Obs: de acordo com a teoria dos frutos da árvore envenenada, se a prova principal foi obtida por meios ilícitos, todas as provas derivadas dela também são contaminadas e não podem ser usadas.

 

Tese de julgamento:

1. O mau estado de conservação do veículo não constitui fundada suspeita para justificar busca veicular.

2. A busca pessoal e veicular sem justa causa é ilegal e as provas obtidas são ilícitas.

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 1.002.334-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 10/9/2025 (Info 865).


Print Friendly and PDF