Dizer o Direito

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Pessoa com deficiência comprou um carro com isenção de IPI (Lei 8.989/1995); se houve perda total desse carro em um acidente, a seguradora pode se tornar proprietária do veículo sinistrado (sucata) sem ter que pagar o IPI que havia sido isentado anteriormente

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, pessoa com deficiência (PCD), adquiriu um veículo novo com isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), conforme autorizado pelo art. 1º, IV, da Lei nº 8.989/1995:

Art. 1º  Ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) os automóveis de passageiros de fabricação nacional, equipados com motor de cilindrada não superior a 2.000 cm³ (dois mil centímetros cúbicos), de, no mínimo, 4 (quatro) portas, inclusive a de acesso ao bagageiro, movidos a combustível de origem renovável, sistema reversível de combustão ou híbrido e elétricos, quando adquiridos por:

[...]

IV - pessoas com deficiência física, visual, auditiva e mental severa ou profunda e pessoas com transtorno do espectro autista, diretamente ou por intermédio de seu representante legal; (Redação dada pela Lei nº 14.287, de 2021)  

 

Seis meses depois da aquisição, João envolveu em um acidente de trânsito que resultou na perda total do veículo que ele havia adquirido.

A sorte é que João tinha feito um seguro do veículo.

A seguradora pagou a indenização integral, conforme previsto no contrato de seguro.

Como é praxe nesses casos, o contrato de seguro prevê que a propriedade do veículo sinistrado (o “salvado” ou “sucata”) será transferida para a seguradora.

Ao tentar efetivar a transferência junto ao DETRAN, a seguradora foi surpreendida pela exigência de pagamento do IPI que havia sido dispensado quando o veículo foi originalmente adquirido com isenção.

A exigência foi feita com base no art. 6º da Lei nº 8.989/1995, que determina que, se o veículo adquirido com isenção for alienado antes de dois anos da aquisição a pessoa que não preencha os requisitos legais para o benefício, o alienante deverá recolher o imposto dispensado:

Art. 6º A alienação do veículo adquirido nos termos desta Lei e da Lei nº 8.199, de 28 de junho de 1991, e da Lei nº 8.843, de 10 de janeiro de 1994, antes de 2 (dois) anos contados da data da sua aquisição, a pessoas que não satisfaçam às condições e aos requisitos estabelecidos nos referidos diplomas legais acarretará o pagamento pelo alienante do tributo dispensado, atualizado na forma da legislação tributária.

 

A seguradora não concordou e ajuizou ação buscando a declaração de inexigibilidade do IPI na transferência do veículo sinistrado para seu nome.

Alegou que a transferência não se equiparava à alienação voluntária com escopo lucrativo, que é o que a lei visa coibir, e que o condicionamento da transferência ao pagamento do IPI configurava uma ilegal e inconstitucional sanção política que restringia sua atividade econômica.

A seguradora requereu a transferência do veículo para seu nome independentemente do recolhimento do IPI e a suspensão da exigibilidade do tributo.

Após tramitar nas instâncias ordinárias, o caso chegou até o STJ.

 

O pedido da seguradora foi acolhido?

SIM.

A Lei nº 8.989/1995 concede isenção do IPI na compra de automóveis por pessoas com deficiência e motoristas profissionais (como taxistas). Essa isenção tem finalidade extrafiscal, ou seja, visa promover inclusão social, facilitar a mobilidade e apoiar o exercício profissional, e não meramente arrecadar tributos.

O art. 6º da Lei nº 8.989/1995 estabelece que, se o veículo adquirido com isenção for alienado a pessoa não beneficiária da lei dentro do prazo de dois anos, o imposto será exigido. Essa disposição visa coibir usos indevidos da isenção, como revenda com fins lucrativos, não se aplicando automaticamente a toda e qualquer transferência.

A transferência de veículo para a seguradora por força de cláusula contratual, em caso de perda total, não configura alienação voluntária. É uma imposição contratual e legal que decorre da lógica do contrato de seguro, sem qualquer intuito de obtenção de lucro por parte do beneficiário da isenção.

Deve-se aplicar, portanto, o princípio da boa-fé objetiva, afastando a incidência do art. 6º da lei.

A decisão está em consonância com o REsp 1.310.565/PB, em que o STJ já havia decidido que a transferência de um veículo sinistrado à seguradora, em virtude de perda total, não atrai a incidência do IPI dispensado, justamente por não configurar alienação com objetivo de lucro:

A isenção de IPI prevista na Lei 8.989/1995 tem finalidade extrafiscal e cessa apenas quando houver alienação voluntária do veículo, antes do prazo legal, com potencial caráter lucrativo.

A transferência do veículo sinistrado (sucata) para a seguradora, como requisito contratual para recebimento de indenização por perda total, não configura enriquecimento indevido nem alienação voluntária, razão pela qual deve ser mantida a isenção.

STJ. 2ª Turma. REsp 1.310.565/PB, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 21/8/2012.

 

Após o pagamento da indenização integral, o segurado não pode manter a posse do bem (ou salvado), sob pena de enriquecimento ilícito. A transferência à seguradora é, portanto, consequência natural e necessária do contrato de seguro.

Embora o art. 111 do CTN exija interpretação literal das normas que tratam de isenção, isso não impede a consideração do contexto sistemático, histórico e da finalidade da norma, o que é essencial para garantir a justiça tributária em casos como esse.

Ressalta-se, por fim, que a cobrança de tributo, sendo atividade administrativa plenamente vinculada, deve ocorrer nos limites do que a lei determina, em obediência ao princípio da legalidade. Ora, a Lei nº 8.989/1995 não possui previsão que autorize a cobrança do IPI dispensado no caso de transferência de veículo/sucata para a seguradora, situação que não se confunde com a alienação voluntária, estabelecida na norma em referência.

Desse modo, deve ser mantida a isenção de IPI quando da transferência do veículo/sucata para a seguradora como cumprimento de cláusula contratual para pagamento de indenização decorrente de sinistro, seja porque a situação não caracteriza alienação voluntária por parte do beneficiário da isenção, seja porque não há previsão legal para a cobrança do IPI outrora dispensado nesse caso.

 

Em suma:

A transferência de veículo (sucata) por perda total para a seguradora, como condição ao recebimento de indenização securitária integral, antes do transcurso do prazo de 2 (dois) anos da data da aquisição, não se considera alienação para fins do art. 6º da Lei n. 8.989/1995, não ensejando a perda da isenção do IPI anteriormente deferida. 

STJ. 2ª Turma. AREsp 2.694.218-SP, Rel. Min. Afrânio Vilela, julgado em 16/10/2025 (Info 869).


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