Dizer o Direito

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

A atuação de ofício do juiz na fase investigativa para deferir busca e apreensão domiciliar e quebra de sigilo telemático, sem provocação dos órgãos de persecução penal, viola o sistema acusatório

Imagine a seguinte situação hipotética:

A Polícia Civil instaurou inquérito policial para apurar crimes que teriam sido cometidos por João e Regina contra os clientes de uma cooperativa de crédito na qual os dois trabalhavam.

No curso da investigação, o juiz, a requerimento do Delegado, determinou o sequestro do carro de João por entender que ele poderia ser fruto do crime. Ocorre que João continuou na posse do veículo.

Algum tempo depois, ainda durante o inquérito, o Delegado fez nova representação ao juiz pedindo a busca e apreensão desse carro e a autorização para que a polícia civil ficasse utilizando o veículo provisoriamente.

Assim, o delegado fez um pedido simples e direto ao juiz representado apenas pela autorização para buscar e apreender o veículo que já tinha sido objeto de sequestro anteriormente. O pedido era estritamente limitado ao carro.

No entanto, ao analisar esse pedido, o juiz decidiu ir muito além.

Sem que a polícia ou o Ministério Público tivessem pedido, o magistrado:

• autorizou busca domiciliar na casa de João;

• determinou a apreensão de todos os dispositivos eletrônicos encontrados (celulares, tablets, notebooks); e

• ordenou, de ofício, a quebra do sigilo telemático desses dispositivos, inclusive com acesso a mensagens, e-mails, fotos, vídeos e arquivos armazenados na nuvem.

 

A defesa impetrou habeas corpus afirmando que o juiz não poderia ter ordenado diligências investigativas de ofício (sem provocação), em especial, medidas invasivas como quebra de sigilo telemático.

Ao fazer isso, o juízo de origem violou o sistema acusatório e o princípio da imparcialidade, ao agir de ofício durante a fase investigativa, sem requerimento de órgão legitimado.

Argumentou ainda que a medida, além de invadir a esfera de direitos fundamentais do investigado, especialmente o direito à intimidade e à privacidade, representava usurpação da função investigatória atribuída à polícia e ao Ministério Público, em afronta ao art. 3º-A do CPP, introduzido pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime):

Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.     (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019) 

 

O STJ concordou com a defesa?

SIM.

Conforme já explicado, a representação da autoridade policial foi apenas para a busca e apreensão do veículo do investigado, com a finalidade de cumprir decisão anterior que havia determinado o sequestro e permitido o uso provisório do automóvel pela Polícia Civil.

Não houve, portanto, qualquer requerimento para apreensão de dispositivos eletrônicos ou para a quebra do sigilo de dados telemáticos. Tais providências foram determinadas de ofício pelo juiz.

Ao decidir esse pedido específico, o magistrado ampliou significativamente o objeto da diligência, determinando não apenas a apreensão do veículo, mas também a busca por dispositivos eletrônicos e a quebra do sigilo dos dados neles armazenados, incluindo mensagens, aplicativos e arquivos em nuvem.

Essa atuação de ofício, no atual estágio de evolução do sistema processual penal brasileiro, caracteriza violação do sistema acusatório, expressamente adotado pelo art. 3º-A do CPP, introduzido pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), que estabelece que o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

O art. 242 do CPP prevê que a busca pode ser determinada de ofício pelo juiz:

Art. 242.  A busca poderá ser determinada de ofício ou a requerimento de qualquer das partes.

 

O STJ, contudo, afirmou que esse dispositivo deve ser interpretado à luz da Constituição Federal e do atual modelo processual penal.

A partir da vigência do art. 3º-A do CPP, que positivou o princípio acusatório já implícito na Constituição Federal, não mais se admite que o magistrado atue na fase investigativa de ofício, substituindo-se aos órgãos de persecução penal.

No caso em tela, o juiz não apenas determinou a busca e apreensão de dispositivos eletrônicos sem prévia provocação, como também autorizou, de ofício, a quebra do sigilo dos dados telemáticos. Trata-se de medida que restringe o direito fundamental à privacidade e que, por sua natureza, exige provocação dos órgãos de persecução penal e fundamentação específica.

 

Em suma:


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