terça-feira, 27 de setembro de 2016

Breves observações sobre o Decreto 8.858/2016, que regulamenta o emprego de algemas



Olá amigos do Dizer o Direito,

Foi publicado no dia de hoje (27/09/2016) o Decreto nº 8.858/2016, que trata sobre o emprego de algemas.

Vamos entender o tema.

HISTÓRICO

CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR (1969)
O CPPM possui uma regra sobre o uso de algemas:
Art. 234 (...)
Emprego de algemas
1º O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242.

Segundo o entendimento majoritário, contudo, esta regra somente valia para as prisões envolvendo crimes militares, não sendo aplicadas para os crimes "comuns" (não militares).

LEI 7.219/84 (LEP)
Assim, a primeira lei que tratou sobre o uso de algemas no Brasil de forma geral foi a Lei nº 7.210/84 (Lei de Execuções Penais). Ela, no entanto, não ajudou muito porque afirmou que o tema deveria ser tratado por meio de decreto. Confira:
Art. 199. O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal.

A LEP é de 1984 e até 2016 este decreto não havia sido editado.

LEI 11.689/2008
Em junho de 2008, foi editada Lei nº 11.689/2008, que alterou o procedimento do Júri previsto no CPP. Esta Lei aproveitou a oportunidade e tratou também sobre o uso de algemas, porém apenas no plenário do Júri. Veja os dispositivos que foram inseridos por ela:
Art. 474 (...)
§ 3º Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes. (Incluído pela Lei 11.689/2008)

Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências:
I – à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado; (Incluído pela Lei 11.689/2008)

Como se vê, tirando a hipótese do Plenário do Júri, a legislação continuava sem disciplinar o uso de algemas.

SV 11-STF
Em razão dessa lacuna normativa, em 2008, o Supremo Tribunal Federal, diante do uso abusivo de algemas em determinadas pessoas, viu-se obrigado a dispor sobre o tema e editou uma súmula vinculante que mais parecia um artigo de lei tratando a respeito do assunto. Confira:
Súmula vinculante 11-STF: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do estado.

DECRETO 8.858/2016
Agora, com 32 anos de atraso, finalmente é editado o Decreto federal mencionado pelo art. 199 da LEP e que trata sobre o emprego de algemas.


ENTENDENDO O DECRETO 8.858/2016

Sobre o que trata?
Regulamenta o art. 199 da Lei de Execução Penal com o objetivo de disciplinar como deve ser o emprego de algemas.

Diretrizes
O emprego de algemas terá como diretrizes:
• a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88);
• a proibição de que qualquer pessoa seja submetida a tortura, tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III, da CF/88);
• a Resolução nº 2010/16, de 22 de julho de 2010, das Nações Unidas sobre o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok); e
• o Pacto de San José da Costa Rica, que determina o tratamento humanitário dos presos e, em especial, das mulheres em condição de vulnerabilidade.

DIRETRIZES
1) Dignidade da pessoa humana
2) Proibição de tortura, tratamento desumano ou degradante
3) Regras de Bangkok
4) Pacto de San José da Costa Rica
  
A pessoa presa pode ser algemada?
Como regra, NÃO.

Existem três exceções. Quais são elas?
É permitido o emprego de algemas apenas em casos de:
• resistência;
• fundado receio de fuga; ou
• perigo à integridade física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiros.

EMPREGO DE ALGEMAS
1) Resistência da pessoa à prisão;
2) Fundado receio de fuga
3) Perigo à integridade física (própria ou alheia), causado pelo preso ou por terceiros

Formalidade que deve ser adotada no caso do uso de algemas
Caso tenha sido verificada a necessidade excepcional do uso de algemas, com base em uma das três situações acima elencadas, essa circunstância deverá ser justificada, por escrito.

Situação especial das mulheres em trabalho de parto ou logo após
É proibido usar algemas em mulheres presas:
• durante o trabalho de parto
• no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar; e
• após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada.

NÃO PODE ALGEMA EM MULHERES
1) Durante o trabalho de parto
2) No trajeto da grávida do presídio para o hospital
3) Após o parto, durante o período em que estiver hospitalizada


Confira o texto integral do Decreto:
Art. 1º  O emprego de algemas observará o disposto neste Decreto e terá como diretrizes:
I - o inciso III do caput do art. 1º e o inciso III do caput do art. 5º da Constituição, que dispõem sobre a proteção e a promoção da dignidade da pessoa humana e sobre a proibição de submissão ao tratamento desumano e degradante;
II - a Resolução no 2010/16, de 22 de julho de 2010, das Nações Unidas sobre o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de Bangkok); e
III - o Pacto de San José da Costa Rica, que determina o tratamento humanitário dos presos e, em especial, das mulheres em condição de vulnerabilidade.

Art. 2º  É permitido o emprego de algemas apenas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiros, justificada a sua excepcionalidade por escrito.

Art. 3º  É vedado emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema penitenciário nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada.

Art. 4º  Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.


OBSERVAÇÕES FINAIS

A proibição das algemas vale somente no momento da prisão?
NÃO. Essa regra vale para todas as situações.
A vedação quanto ao uso de algemas incide tanto no momento da prisão (seja em flagrante ou por ordem judicial) como também nas hipóteses em que o réu preso comparece em juízo para participar de um ato processual (ex: réu durante a audiência).
Em outras palavras, a pessoa que acaba de ser presa, em regra, não pode ser algemada. Se ela tiver que ser deslocada para a delegacia, por exemplo, em regra, não pode ser algemada. Se tiver que comparecer para seu interrogatório, em regra, não pode ser algemada.

Quais são as consequências caso o preso tenha sido mantido algemado fora das hipóteses mencionadas ou sem que tenha sido apresentada justificativa por escrito?
O Decreto nº 8.858/2016 não prevê consequências ou punições para o descumprimento das regras impostas para o emprego de algemas. No entanto, a SV 11 do STF impõe as seguintes consequências:
a) Nulidade da prisão;
b) Nulidade do ato processual no qual participou o preso;
c) Responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade responsável pela utilização das algemas;
d) Responsabilidade civil do estado.

Vale ressaltar que, se durante audiência de instrução e julgamento o juiz recusa, de forma motivada, o pedido para que sejam retiradas as algemas do acusado, não haverá nulidade processual (STJ HC 140.718-RJ).

A SV 11-STF continua valendo mesmo após o Decreto nº 8.858/2016?
SIM. O Decreto nº 8.858/2016 praticamente repetiu as mesmas hipóteses previstas na súmula vinculante, acrescentando, contudo, a proibição das algemas para mulheres em trabalho de parto e logo após.
Apesar disso, a SV 11 continua tendo grande importância porque ela prevê, em sua parte final, as consequências caso o preso tenha sido mantido algemado fora das hipóteses mencionadas ou sem que tenha sido apresentada justificativa por escrito.

Vamos comparar os dois documentos:

DECRETO 8.858/2016
SV 11

Art. 2º  É permitido o emprego de algemas apenas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, causado pelo preso ou por terceiros, justificada a sua excepcionalidade por escrito.


Súmula vinculante 11-STF: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, (...)

Não prevê qualquer consequência ou punição em caso de descumprimento das regras impostas para o emprego de algemas.


(...) sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do estado.


Art. 3º  É vedado emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema penitenciário nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada.


A súmula vinculante não trata sobre esta situação específica das mulheres em trabalho de parto ou que tiveram seus filhos.


Quadro-resumo:




Márcio André Lopes Cavalcante
Professor.



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