terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Críticas de um líder religioso a outras religiões configura o crime de racismo? Análise do caso Jonas Abib



A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:
Jonas Abib, conhecido sacerdote da Igreja Católica, escreveu um livro (“Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de cura e libertação”), voltado aos católicos, no qual faz críticas ao espiritismo e a religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé.
O Ministério Público da Bahia ofereceu denúncia contra ele, acusando-o de ter cometido o crime do art. 20, § 2º da Lei nº 7.716/89 (conhecida como Lei do Racismo):
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
(...)
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

Segundo o Parquet, as afirmações feitas no livro incitariam os leitores à discriminação ou preconceito com pessoas de outras religiões.

A questão chegou até o STF. Para a Corte, houve a prática de crime?
NÃO. Neste caso concreto, entendeu-se que não houve crime. STF. 1ª Turma. RHC 134682/BA, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 29/11/2016 (Info 849).

Liberdade religiosa
A CF/88 garante o direito à liberdade religiosa em diversos dispositivos, podendo ser destacados os seguintes:
Art. 5º (...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; 
(...)
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

A liberdade religiosa pode ser subdividida em três espécies:
a) liberdade de consciência: é o direito que a pessoa tem de fazer suas próprias convicções, escolher seus padrões de valoração ética ou moral.
b) liberdade de crença: é o direito de a pessoa adotar ou não uma religião sem ser prejudicada por isso e também o direito de fazer proselitismo religioso (proselitismo religioso significa empreender esforços para convencer outras pessoas a também se converterem à sua religião).
c) liberdade de culto: é o direito, individual ou coletivo, de praticar atos externos de veneração próprios de uma determinada religião.

Assim, a liberdade religiosa significa que o indivíduo tem o direito não apenas de escolher qual religião irá seguir (ou se não irá seguir nenhuma), mas também a liberdade de fazer proselitismo e de explicitar os atos próprios de sua religiosidade. A proteção à liberdade religiosa não se limita à crença, assegurando condutas religiosas exteriores.

Nesse sentido: CANOTILHO, JJ Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. 1. São Paulo: Coimbra Editora / RT, 2007, p. 609.

Liberdade religiosa não é absoluta
Obviamente, a liberdade religiosa não possui caráter absoluto, devendo ser exercitada de forma harmoniosa com os demais direitos e garantias fundamentais protegidos pela Constituição Federal, em atenção ao Princípio da Convivência das Liberdades Públicas.
Um dos valores que a Constituição protege é o repúdio ao racismo (art. 4º, VIII e art. 5º, XLII).

Análise de possível colisão entre as liberdades de expressão e religiosa e o repúdio ao racismo
No caso concreto, para verificar se houve ou não crime, é necessário analisar uma possível colisão entre as liberdades de expressão e religiosa e o repúdio ao racismo.
A religião professada pelo réu (catolicismo) tem como uma de suas características o objetivo de converter o maior número possível de pessoas (caráter universalista). Assim, impedir que o referido sacerdote exercesse o proselitismo seria o mesmo que impedir que ele exercesse sua liberdade religiosa.
Vale ressaltar que é muito comum que o proselitismo religioso seja feito a partir da comparação entre as diversas religiões. Em outras palavras, o indivíduo que almeja a conversão de uma outra pessoa muitas vezes faz isso argumentando que sua religião é melhor que as demais. Isso, se realizado dentro de limites, configura simplesmente a manifestação da própria liberdade religiosa. Nesse sentido:
"(…) é natural do discurso religioso praticado pelas Igrejas, em especial pelas instituições daquelas religiões de pretensão universalista, pregar o rechaço às demais religiões. Esta postura integra o núcleo central da própria liberdade de religião.” (TAVARES, André Ramos. O direito fundamental ao discurso religioso: divulgação da fé, proselitismo e evangelização. Disponível em http://www.cjlp.org/direito_fundamental_discurso_religioso.ht ml, acesso em 22/12/2016)

Desse modo, a prática do proselitismo, ainda que feita por meio de incômodas comparações entre as religiões, o que gera certa animosidade, não configura, por si só, crime de racismo. Trata-se do exercício de um dos aspectos da liberdade religiosa.

Este tema já foi diversamente debatido pela doutrina portuguesa:
“(...) a criminalização do proselitismo em termos genéricos traduzir-se-ia, não na proteção de um bem fundamental devidamente identificado, mas sim na proibição de uma conduta religiosa, independentemente do impacto que a mesma pudesse vir a ter, ou não, nos bens fundamentais constitucional e penalmente tutelados. Tal solução, ao transferir para as autoridades administrativas vastos poderes de restrição do direito à liberdade religiosa, deve ter-se, evidentemente, como constitucionalmente inadmissível.” (MACHADO, Jônatas. Liberdade Religiosa numa comunidade constitucional inclusiva. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p 229)

Situações em que o proselitismo transborda os limites da liberdade de expressão religiosa
Apesar de o proselitismo, por si só, não configurar crime, ainda que feito por meio de comparações entre as religiões, é preciso que isso seja feito dentro de limites que, se ultrapassados, podem sim configurar condutas discriminatórias e preconceituosas.
É normal que no discurso proselitista defenda-se que uma religião é melhor que a outra, que uma está "certa" e a outra "errada". Até aqui não há qualquer ilícito na conduta. O ponto crucial vem a seguir: pelo fato de uma religião ser superior a outra, o que esta "superior" deve fazer em relação às demais?

• Se o discurso dessa religião supostamente superior for de dominação, opressão, restrição de direitos ou violação da dignidade humana das pessoas integrantes dos demais grupos: aí teremos discriminação passível de ser punida criminalmente.

• Por outro lado, se o discurso dessa religião supostamente superior for no sentido de que os superiores têm o dever de ajudar os inferiores para que estes alcancem um nível mais alto de bem-estar e de salvação espiritual: neste caso, não haverá conduta criminosa.

"(...) Da relação superior-inferior podem derivar tanto a concepção de que o superior tem o dever de ajudar o inferior a alcançar um nível mais alto de bem-estar e civilização, quanto à concepção de que o superior tem o direito de suprimir o inferior. (…)
Somente quando a diversidade leva a este segundo modo de conceber a relação entre superior e inferior é que se pode falar corretamente de uma verdadeira discriminação, com todas as aberrações dela decorrentes.” (BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 109)

“O embate religioso, invariavelmente, envolve esta concepção de que determinada religião ou igreja há de ajudar o terceiro a alcançar um nível mais alto de bem-estar, de salvação. Esta é a pedra angular, por exemplo, do cristianismo, presente na sua missão de evangelizar (tema já desenvolvido neste presente artigo), reputada como um dever, mas não apenas do cristianismo. Esta conduta, contudo, não implica discriminação. Apenas a concepção de que o superior tem o direito de suprimir o inferior (que só pode ser verificada adequadamente em cada caso concreto e que não se manifesta no caso em apreço) é que enseja prática discriminatória, a ser, por conseguinte, considerada legalmente (penalmente) censurável.” (TAVARES, André Ramos. O direito fundamental ao discurso religioso: divulgação da fé, proselitismo e evangelização. Disponível em http://www.cjlp.org/direito_fundamental_discurso_religioso.html)

O discurso discriminatório criminoso somente se materializa se forem ultrapassadas três etapas indispensáveis:
a) uma de caráter cognitivo, em que atestada a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos (existem religiões diferentes entre si);
b) outra de viés valorativo, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles e, por fim (a minha religião é "superior" às demais);  e, por fim,
c) uma terceira, em que o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior.

Se o discurso proselitista prega que a religião supostamente "superior" tem o objetivo de auxiliar os adeptos de outras religiões (tidas como equivocadas), neste caso, não há discriminação. Isso porque se ficou apenas nas duas primeiras etapas acima expostas, não se ultrapassando a terceira (mais danosa).

Assim, a tentativa de persuasão, de convencimento pela fé, sem contornos de violência ou que atinjam diretamente a dignidade humana, não é crime.

Voltando ao caso concreto
No livro em questão, o autor associa o espiritismo ao demônio, afirma que a doutrina espírita é maligna e que o espiritismo precisa ser eliminado da vida dos cristãos. Defende também que os católicos que possuam livros espíritas em casa devem queimá-los. Veja os trechos transcritos pelo MP na denúncia:
“O demônio, dizem muitos, "não é nada criativo". Ele continua usando o mesmo disfarce. Ele, que no passado se escondia por trás dos ídolos, hoje se esconde nos rituais e nas práticas do espiritismo, da umbanda, do candomblé e de outras formas de espiritismo. Todas essas formas de espiritismo têm em comum a consulta aos espíritos e a reencarnação." (págs. 29/30)
"Os próprios pais e mães-de-santo e todos os que trabalham em centros e terreiros são as primeiras vítimas: são instrumentalizados por Satanás. (...) A doutrina espírita é maligna, vem do maligno. (...)" (pág 16)
"O espiritismo não é uma coisa qualquer como alguns pensam. Em vez de viver no Espírito santo, de depender dele e ser conduzida por Ele, a pessoa acaba sendo conduzida por espíritos malignos. (...) O espiritismo é como uma epidemia e como tal deve ser combatido: é um foco de morte. O espiritismo precisa ser desterrado da nossa vida. Não é preciso ser cristão e ser espírita, (...) Limpe-se totalmente! "
(págs. 17/18)
"Há pessoas que já leram muitos livros do chamado "espiritismo de mesa branca", de um kardecista muito
intelectual que realmente fascina - as coisas do inimigo fascinam. Desfaça-se de tudo. Queime tudo. Não fique com nenhum desses livros. (...)" (pág.43)

No entanto, em outros trechos da obra, o padre deixa claro que não está pregando contra as pessoas, mas sim contra a religião:
“Não estou falando contra as pessoas espíritas, contra as pessoas que frequentam umbanda, candomblé, mas estou falando aos cristãos que são inocentes úteis: sem saber dos fatos, vão e fazem tudo isso, só para conseguir o que desejam e do jeito que desejam.
(...)
Não estamos condenando os espíritas, mas o espiritismo. Estamos denunciando a obra covarde, suja, desleal que o inimigo tem feito, enganando muita gente, retirando os filhos de Deus da salvação de Jesus, arrancando os filhos de Deus dos braços de Jesus e os jogando nas garras do lobo.
Podemos dizer sem medo que, infelizmente, os espíritas são as primeiras vítimas deste embuste do demônio. Não estamos contra eles: estamos contra aquele que os enganou.
(…)
São filhos de Deus, são filhas de Deus! Ele os quer resgatar a todos, sem exceção.
Não estamos condenando os espíritas nem seus entes queridos, que foram vítimas do espiritismo. Pelo contrário, estamos afirmando que Deus quer salvá-los.”

Por conta disso, o STF entendeu que o réu apenas fez comparações entre as religiões, procurando demonstrar que a sua deveria prevalecer e, ainda que isso gere certa animosidade, não se pode extrair de suas palavras a intenção de que os fiéis católicos escravizem, explorem ou eliminem pessoas adeptas ao espiritismo. Não há, portanto, tentativa de subjugar os adeptos do espiritismo.
A publicação escrita pelo sacerdote católico dedica-se à pregação da fé católica, e suas explicitações detêm público específico. Sua intenção foi a de orientar a população católica sobre a incompatibilidade verificada, segundo sua visão, entre o catolicismo e o espiritismo.
Pregar um discurso de que as religiões são desiguais e de que uma é inferior a outra não configura, por si, o elemento típico do art. 20 da Lei nº 7.716/89. Para haver o crime, seria indispensável que tivesse ficado demonstrado o especial fim de supressão ou redução da dignidade do diferente, elemento que confere sentido à discriminação que atua como verbo núcleo do tipo.
Segundo o Min. Edson Fachin, a afirmação do autor de que a sua religião é superior e que ela deverá resgatar e salvar os espíritas, "apesar de indiscutivelmente preconceituosa, intolerante, pedante e prepotente, encontra guarida na liberdade de expressão religiosa e, em tal dimensão, não preenche o âmbito proibitivo da norma penal incriminadora".

Obs1: os argumentos expostos foram retirados do voto do Ministro Relator do processo no STF.

Obs2: a situação foi decidida com base nos fatos ocorridos e a solução poderia ser outra a depender das palavras empregadas pelo líder religioso no caso concreto.



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