quarta-feira, 30 de maio de 2012
Comentários ao novo art. 135-A do Código Penal
quarta-feira, 30 de maio de 2012
Márcio André Lopes Cavalcante*
Foi publicada ontem (29/05) e já
está em vigor a Lei n.°
12.653/2012, que inclui um novo tipo no Código Penal: o crime de condicionamento
de atendimento médico-hospitalar emergencial.
Vamos conhecer um pouco mais sobre
esse novo delito:
| 
Condicionamento de atendimento
  médico-hospitalar emergencial 
Art. 135-A. Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer
  garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos,
  como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial: 
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. 
Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de
  atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se
  resulta a morte. | |||||||
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Posição topográfica | 
O art. 135-A foi inserido no Capítulo
  III do Título I do Código Penal. 
Esse capítulo trata dos crimes
  que envolvam “periclitação da vida e da saúde”. 
Periclitar significa “correr
  perigo”. 
Este Capítulo III, portanto, traz
  diversos crimes de perigo. 
Desse modo, entendo que o art.
  135-A, pelo menos em sua forma simples (caput), é um crime de perigo. | ||||||
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Crime de perigo abstrato | 
Penso que o art. 135-A é crime
  de perigo abstrato, presumido ou de simples desobediência. 
Assim, para a consumação do delito
  basta a prática da conduta típica pelo agente, sem ser necessário demonstrar
  que houve, concretamente, a produção de uma situação de perigo. 
Pela simples redação do tipo percebe-se
  que não se exige a demonstração de perigo, havendo uma presunção absoluta (juris et de jure) de que ocorreu
  perigo pela simples exigência indevida. 
Vale ressaltar que, apesar de
  haver polêmica na doutrina, o STF entende que: 
“A criação de crimes de perigo
  abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte
  do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em
  abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais
  eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de caráter
  coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc. Portanto, pode o legislador, dentro de suas
  amplas margens de avaliação e de decisão, definir quais as medidas mais
  adequadas e necessárias para a efetiva proteção de determinado bem jurídico,
  o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de um direito
  penal preventivo. Apenas a atividade legislativa que, nessa hipótese,
  transborde os limites da proporcionalidade, poderá ser tachada de
  inconstitucional.”  
(HC 104410, Relator Min. Gilmar
  Mendes, 2ª Turma, julgado em 06/03/2012) | ||||||
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Bem jurídico protegido | 
Vida e saúde das pessoas humanas. | ||||||
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Sujeito 
ativo | 
Trata-se de crime próprio considerando
  que somente pode ser praticado pelos responsáveis (sócios, administradores etc.)
  ou prepostos (atendentes, seguranças, médicos, enfermeiras etc.) do serviço
  médico-hospitalar emergencial. 
Imaginemos o seguinte exemplo: 
O diretor geral do hospital edita
  uma norma interna determinando que todas as recepcionistas somente podem aceitar
  a internação, ainda que de emergência, de pessoas que apresentem
  cheque-caução. 
Duas semanas depois, chega um
  paciente em situação de emergência e a recepcionista do hospital faz a
  exigência do cheque-caução como condição para que ele receba o atendimento
  médico-hospitalar emergencial. 
Quem cometeu o crime, o diretor geral ou a recepcionista? 
Os dois. Pela teoria do domínio
  do fato, o diretor-geral seria o autor intelectual e a recepcionista a autora
  executora. 
A recepcionista poderia alegar obediência hierárquica? 
NÃO. A obediência hierárquica é
  uma causa excludente da culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa
  (art. 22 do CP). 
Ocorre que um dos requisitos
  para que seja reconhecida a excludente pela obediência hierárquica é que deve
  haver uma relação de direito público. Não incide essa excludente se a relação
  for de direito privado, como no caso da relação empregatícia em um hospital
  privado. | ||||||
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Sujeito passivo | 
Pessoa destinatária do
  atendimento médico-hospitalar emergencial. 
Atenção: se a exigência de
  caução foi feita a um parente da pessoa que seria internada, a vítima é
  apenas a pessoa que seria internada e não o seu parente. Isso porque o bem
  jurídico protegido é a vida e a saúde da pessoa em estado de emergência. Desse
  modo, não se trata de crime patrimonial, pouco importando de quem se exigiu a
  caução.  | ||||||
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Tipo objetivo | 
·        
  Exigir 
·        
  cheque-caução 
É um cheque normal (título de crédito) assinado pela
  pessoa a ser atendida ou por terceiro (familiar, amigo, etc.) com determinado
  valor ou mesmo com valor em branco e destinado a servir como garantia de
  futuro pagamento das despesas que forem realizadas com o tratamento. Se as
  despesas forem pagas, o cheque é devolvido; se não forem, o cheque é descontado.
   
·        
  nota promissória 
Consiste em um título de crédito (documento escrito)
  no qual uma pessoa (sacador) faz a promessa, por escrito, de pagar certa
  quantia em dinheiro em favor de outra (beneficiário). 
A nota promissória, neste caso, também funcionaria
  como um instrumento de garantia de que as despesas médicas seriam pagas. 
·        
  ou
  qualquer garantia 
Exs: fiança prestada por um parente do paciente; uma
  joia dada em penhor; a exigência de que se passe o cartão de crédito para
  desconto futuro, como é feito na locação de veículos. 
·        
  bem como
  o preenchimento prévio de formulários administrativos 
O preenchimento prévio de formulários administrativos
  é vedado porque muitas vezes eles escondem um contrato de adesão, com a
  previsão de cláusulas abusivas. O paciente ou seus familiares, no momento de
  desespero em virtude da enfermidade, é compelido psicologicamente a assinar sem
  ter o necessário discernimento quanto ao conteúdo do documento. 
·        
  como
  condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial. 
Segundo o Conselho Federal de Medicina, emergência é
  a constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem em risco
  iminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo portanto, tratamento médico
  imediato (art. 1º, parágrafo 2º, da Resolução CFM n.° 1451/95). | ||||||
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Preenchimento
  prévio de formulários administrativos | 
O tipo penal incrimina também a
  conduta de se exigir o preenchimento prévio de formulários administrativos
  como condição para que seja prestado o atendimento médico-hospitalar
  emergencial. 
Deve-se alertar, contudo, que é
  possível imaginar que, em alguns casos, seja lícita a exigência de prévio
  preenchimento de formulários administrativos, nas hipóteses em que essa
  imposição for imprescindível para a saúde e a vida do paciente ou para
  resguardar a equipe médica que faz o atendimento.  
É o caso, por exemplo, do
  fornecimento de informações relacionadas com o tipo sanguíneo da pessoa a ser
  atendida, caso seja imediatamente constatada a necessidade de uma transfusão
  de sangue. | ||||||
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Exigência
  de garantia após o atendimento médico-hospitalar de emergência | 
Pessoa sofre acidente e é
  levada para hospital particular, onde é prontamente atendida, sem que seja
  feita qualquer exigência. 
Após cessar o quadro de
  emergência do paciente, o responsável pelo hospital procura os familiares,
  apresenta a tabela de valores dos serviços do hospital e exige um
  cheque-caução para que o paciente continue internado. Esse responsável pelo
  hospital praticou o delito do art. 135-A? 
NÃO, trata-se de conduta
  atípica. Somente é crime a exigência como condição para o atendimento
  médico-hospitalar emergencial.
  Não havendo mais situação de emergência, ainda que o paciente continue
  necessitando dos serviços médico-hospitalares, é lícita a exigência de
  garantias para que o paciente continue recebendo o atendimento. | ||||||
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Formas
  de praticar o delito | 
O crime somente pode ser
  praticado de forma comissiva (por ação), não sendo possível ser perpetrado
  por omissão. 
No entanto, trata-se de crime
  de execução livre, podendo ser realizado de modo verbal, gestual ou escrito. | ||||||
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Tipo subjetivo | 
O crime somente é punido a
  título de dolo. 
Não há previsão de modalidade
  culposa. | ||||||
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Consumação | 
O crime é formal. Logo, consuma-se
  com a simples exigência. 
A consumação ocorre no exato instante
  em que é exigida a garantia ou o prévio preenchimento do formulário
  administrativo como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial. | ||||||
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Tentativa | 
É possível, em tese, a
  tentativa. Trata-se, contudo, de difícil ocorrência na prática. | ||||||
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Caso hipotético | 
“A” está sofrendo um ataque cardíaco e é levado por seu irmão “B”, ao
  hospital. “B” para o veículo na porta do hospital para que “A” desça e dê
  entrada o mais rápido possível na emergência, enquanto ele vai estacionar o
  veículo.  
Em um período de tempo curtíssimo
  (5 minutos, p. ex.), “B” consegue estacionar o automóvel e se dirigir à
  entrada de emergência do hospital. Quando
  lá chega, descobre que seu irmão ainda não foi internado porque a responsável
  pelo hospital está exigindo a apresentação de um cheque-caução.  
“B”, que é advogado, argumenta
  fortemente que esta prática é abusiva, ameaçando formular representação contra
  o hospital na Agência Nacional de Saúde Complementar, momento em que a
  responsável autoriza a internação mesmo sem a garantia anteriormente exigida. 
Nesse exemplo hipotético, haverá o crime do art. 135-A (tentado ou
  consumado)? Haverá desistência voluntária? Haverá arrependimento eficaz? 
Penso que nessa hipótese, haverá
  o crime do art. 135-A consumado. 
Não terá havido desistência
  voluntária nem arrependimento eficaz. 
As razões são as seguintes: 
O delito do art. 135-A é formal,
  logo, consuma-se com a simples exigência. 
O fato de logo depois a
  funcionária do hospital ter permitido a internação não importa para fins de
  consumação considerando que a exigência já foi feita, completando o tipo
  penal. 
Na desistência voluntária (1ª
  parte do art. 15, CP), o agente inicia a execução do crime e, antes dele se
  consumar, desiste de continuar os atos executórios. 
Não se trata de desistência
  voluntária no exemplo dado, considerando que a execução já tinha se encerrado
  e o crime se consumado com a simples exigência. 
No arrependimento eficaz (2ª parte
  do art. 15, CP), o agente, após ter consumado o crime, resolve adotar providências
  para que o resultado não se consuma. 
Ocorre que o resultado de que
  trata o art. 15 do CP é o resultado naturalístico. Desse modo, somente existe
  arrependimento eficaz no caso de crimes materiais, isto é, naqueles que exigem
  a produção de resultado naturalístico. O delito do art. 135-A é, como disse, formal,
  portanto, incompatível com o arrependimento eficaz. 
O fato de o funcionário do
  hospital ter permitido a internação, após a exigência inicial da caução, não
  torna a conduta atípica, servindo apenas como circunstância favorável na
  primeira fase de dosimetria da pena. | ||||||
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Ação penal | 
Trata-se de crime de ação penal pública incondicionada (art. 100, CP). | ||||||
| 
Pena | 
Na forma simples (caput do artigo), a pena é de detenção,
  de 3 meses a 1 ano, e multa. 
Consequências: 
·        
  Trata-se de crime de menor potencial ofensivo,
  submetido, portanto, ao rito sumaríssimo (juizados especiais); 
·        
  Não cabe prisão em flagrante (art. 69 da Lei n.° 9.099/95); 
·        
  É possível
  o oferecimento de transação penal (art. 76 da Lei n.° 9.099/95); 
·        
  Cabe a suspensão condicional do processo (art.
  89 da Lei n.°
  9.099/95); 
·        
  Não cabe prisão preventiva (art. 313, I, do
  CPP); 
·        
  Em caso de condenação, é possível, em tese, a
  substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (art. 44
  do CP). | ||||||
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Forma majorada | 
O parágrafo único do art. 135-A
  prevê duas causas especiais de aumento de pena (obs: não se trata de
  qualificadora, mas sim de majorante): 
 
Este parágrafo único constitui-se
  em tipo preterdoloso, havendo:  
·        
  dolo no antecedente (na conduta de fazer a
  exigência indevida); e 
·        
  culpa no consequente (na lesão corporal grave
  ou morte). 
Esta forma majorada não é
  infração de menor potencial ofensivo. | ||||||
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Dever de afixar aviso | 
A Lei n.° 12.653/2012 previu ainda que o
  estabelecimento de saúde que realize atendimento médico-hospitalar
  emergencial fica obrigado a afixar, em local visível, cartaz ou equivalente,
  com a seguinte informação: 
“Constitui crime a exigência de cheque-caução, de nota promissória ou
  de qualquer garantia, bem como do preenchimento prévio de formulários
  administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar
  emergencial, nos termos do art. 135-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de
  dezembro de 1940 - Código Penal. | ||||||
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Punição desta conduta por outros ramos do
  direito | 
A conduta punida por este novo
  tipo penal já era sancionada pelos demais ramos do direito. 
O Código de Defesa do
  Consumidor (Lei n.°
  8.078/90) prevê que é prática abusiva o fato do fornecedor de serviços se
  prevalecer da fraqueza do consumidor diante de um problema de saúde.
  Confira-se: 
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre
  outras práticas abusivas: 
IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em
  vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe
  seus produtos ou serviços; 
O Código Civil de 2002, por sua
  vez, prevê o estado de perigo como vício de consentimento, apto a gerar a
  anulabilidade do negócio jurídico. A doutrina civilista em peso classifica a exigência
  de cheque-caução para atendimentos emergenciais em hospitais como típico
  exemplo de estado de perigo. 
Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da
  necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido
  pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa. 
Por fim, no âmbito do direito
  administrativo sancionador, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS,
  agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde, possui a Resolução
  Normativa n.°
  44, de 24 de julho de 2003, proibindo a prática nos seguintes termos: 
Art. 1º Fica vedada, em qualquer situação, a exigência, por parte dos
  prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou
  referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde e Seguradoras
  Especializadas em Saúde, de caução, depósito de qualquer natureza, nota
  promissória ou quaisquer outros títulos de crédito, no ato ou anteriormente à
  prestação do serviço. | ||||||
* Juiz Federal Substituto (TRF da
1ª Região).
Foi Defensor Público, Promotor de
Justiça e Procurador do Estado.
Como citar este texto em
trabalhos científicos:
CAVALCANTE, Márcio André Lopes.
Comentários ao novo art. 135-A do Código Penal. Dizer o Direito. Disponível em:
http://www.dizerodireito.com.br. Acesso em: dd mm aa
 





