segunda-feira, 2 de abril de 2018

A incitação de ódio público feita por líder religioso contra outras religiões pode configurar o crime de racismo



A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:
Tiago, pastor de uma determinada igreja evangélica, publicou, em seu blog, vídeos e posts de conteúdo religioso nos quais ofendeu líderes e seguidores de outras crenças religiosas diversas da sua (católica, judaica, espírita, islâmica, umbandista etc.), pregando inclusive o fim de algumas delas e imputando fatos ofensivos aos seus devotos e sacerdotes.
O pastor afirmou, por exemplo, que os seguidores dessas outras crenças “sofrem” e “padecem”, sendo “estuprados”, “violentados” e “destruídos” por seguirem “caminhos de podridão”.
Utilizou expressões como “religião assassina”, “líderes assassinos”, “prostituta católica”, “prostituta espiritual” e “pilantragem”.
Tiago vinculou, ainda, de forma pejorativa, tais religiões à adoração ao diabo.
Diante disso, ele foi denunciado e condenado pela prática do crime previsto no art. 20, §2º, da Lei nº 7.716/81:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
(...)
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

A defesa de Tiago interpôs uma série de recursos até que o caso chegou ao STF. No Supremo, alegou a atipicidade da conduta. Segundo a defesa, a condenação ideológica de outras crenças é inerente à prática religiosa, e se trataria de exercício de uma garantia constitucionalmente assegurada.

A tese da defesa foi acolhida pelo STF?
NÃO. O STF manteve a condenação e afirmou que:
A incitação ao ódio público contra quaisquer denominações religiosas e seus seguidores não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão.
STF. 2ª Turma. RHC 146303/RJ, rel. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Dias Toffoli, julgado em 6/3/2018 (Info 893).

Conforme explicou o Min. Dias Toffoli, o Brasil, social e historicamente, orgulha-se de ser um país de tolerância religiosa, valor que faz parte da construção de nosso estado democrático de direito.
De acordo com o Ministro, existem diversos trechos no discurso do condenado que alimentam o ódio e a intolerância. Assim, se o Estado não exercer seu papel de pacificar a sociedade, vai se chegar a uma guerra de religiões. “Ao invés de sermos instrumento de pacificação, vamos aprofundar o que acontece no mundo”, afirmou o Ministro.
O preâmbulo da Constituição Federal fala na construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social. A ação do condenado atua, portanto, contra um importante valor escolhido como fundamento da República Federativa do Brasil, que é a solidariedade.
A despeito da importância conferida à liberdade de expressão, o próprio texto constitucional determina que sejam respeitados determinados limites. O art. 220, § 1º, da Constituição diz que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observados determinados incisos do art. 5º, onde estão contidas as limitações.
O direto de pensar, falar e escrever sem censuras ou restrições é o mais precioso privilégio dos cidadãos, mas esse direito não é absoluto e sofre limitações de natureza ética e jurídica.
Os abusos, quando praticados, legitimam a atuação estatual. “Se assim não fosse, caluniar, injuriar, difamar ou fazer apologia de fatos criminosos não seriam suscetíveis de punições”, explicou o Min. Celso de Mello.
O abuso no exercício da liberdade de expressão não pode ser tolerado. Assim, a incitação ao ódio público não está protegida nem amparada pela cláusula constitucional que assegura liberdade de expressão.

Caso Ellwanger
Os Ministros relembraram ainda o célebre julgamento do “caso Ellwanger” (HC 82424), em setembro de 2003, quando o STF manteve a condenação imposta ao escritor gaúcho Siegfried Ellwanger por crime de racismo contra os judeus. Veja trechos da ementa:
(...) 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII).
(...)
6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo.
(...) 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.
14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. (...)
STF. Plenário. HC 82424, Relator p/ Acórdão Min. Maurício Corrêa, julgado em 17/09/2003.

Hate speech (discurso de ódio)
O tema acima exposto está ligado ao que a doutrina chama de hate speech (discurso de ódio).
Discurso de ódio (hate speech) são “manifestações de pensamento que ofendam, ameacem ou insultem determinado grupo de pessoas com base na raça, cor, religião, nacionalidade, orientação sexual, ancestralidade, deficiência ou outras características próprias.
(...)
No direito norte-americano, prevalece o entendimento de que até o discurso de ódio (hate speech) inclui-se no âmbito de proteção da liberdade de expressão.” (BERNARDES, Juliano Taveira; FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Direito Constitucional. Tomo II. 7ª ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 128).
No Brasil, ao contrário dos EUA, prevalece que o hate speech não é protegido pela ordem constitucional. Isso porque o direito à liberdade de expressão não é absoluto, podendo a pessoa que proferiu o discurso de ódio ser punida, inclusive criminalmente, em caso de abuso.
Esse tem sido, por exemplo, o entendimento das bancas examinadoras:
(PGE-RS FUNDATEC 2015) Ao tratar do alcance da liberdade de expressão em relação ao chamado "discurso do ódio" (“hate speech”), o STF sustentou que o direito à liberdade de expressão é um direito relativo, objeto de ponderação, à luz dos princípios da dignidade humana, proporcionalidade e razoabilidade, não podendo acolher a incitação ao ódio racial ou religioso. (certo)

Situação deve ser analisada com base no caso concreto
Assim, podemos concluir que é possível a condenação de um líder religioso pelo crime de racismo (art. 20, §2º, da Lei nº 7.716/81) em caso de discursos de ódio público contra outras denominações religiosas e seus seguidores.
Vale ressaltar, no entanto, que essa condenação dependerá do caso concreto, ou seja, das palavras que foram proferidas e da intenção do líder religioso de suprimir ou reduzir a dignidade daquele que é diferente de si. Desse modo, não é qualquer crítica de um líder religioso a outras religiões que configurará o crime de racismo.
Nesse sentido, recentemente o STF absolveu um líder religioso dessa imputação por falta de dolo. Relembre:
Determinado padre escreveu um livro, voltado ao público da Igreja Católica, no qual ele faz críticas ao espiritismo e a religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé.
O Ministério Público da Bahia ofereceu denúncia contra ele pela prática do art. 20, § 2º da Lei nº 7.716/89 (Lei do racismo).
No caso concreto, o STF entendeu que não houve o crime.
A CF/88 garante o direito à liberdade religiosa. Um dos aspectos da liberdade religiosa é o direito que o indivíduo possui de não apenas escolher qual religião irá seguir, mas também o de fazer proselitismo religioso.
Proselitismo religioso significa empreender esforços para convencer outras pessoas a também se converterem à sua religião.
Desse modo, a prática do proselitismo, ainda que feita por meio de comparações entre as religiões (dizendo que uma é melhor que a outra) não configura, por si só, crime de racismo.
Só haverá racismo se o discurso dessa religião supostamente superior for de dominação, opressão, restrição de direitos ou violação da dignidade humana das pessoas integrantes dos demais grupos. Por outro lado, se essa religião supostamente superior pregar que tem o dever de ajudar os "inferiores" para que estes alcancem um nível mais alto de bem-estar e de salvação espiritual e, neste caso não haverá conduta criminosa.
Na situação concreta, o STF entendeu que o réu apenas fez comparações entre as religiões, procurando demonstrar que a sua deveria prevalecer e que não houve tentativa de subjugar os adeptos do espiritismo.
Pregar um discurso de que as religiões são desiguais e de que uma é inferior à outra não configura, por si, o elemento típico do art. 20 da Lei nº 7.716/89. Para haver o crime, seria indispensável que tivesse ficado demonstrado o especial fim de supressão ou redução da dignidade do diferente, elemento que confere sentido à discriminação que atua como verbo núcleo do tipo.
STF. 1ª Turma. RHC 134682/BA, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 29/11/2016 (Info 849).


Desse modo, em concursos públicos deve-se ficar atento para a redação do enunciado.



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