domingo, 1 de abril de 2018

Cabe reclamação contra decisão judicial que determina retirada de matéria jornalística de site



                                                                        
A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:
A revista “VEJA RIO” publicou uma reportagem na sua edição impressa e também no site.
João, mencionado na matéria, sentiu-se ofendido e ajuizou ação pedindo a retirada da reportagem do site, além de indenização por danos morais.
O juiz da vara cível, com base no art. 20 do Código Civil, concedeu a tutela provisória de urgência determinando que a empresa jornalística retirasse, de seu sítio eletrônico, a matéria referente ao autor. Vale ressaltar que, na decisão, o juiz afirma expressamente que não está decidindo com base na Lei de Imprensa.
Inconformada, a revista apresentou reclamação no STF, alegando que a decisão do juiz teria afrontado o entendimento do Supremo Tribunal Federal firmado na ADPF 130/DF (DJE de 6.11.2009), que declarou a não recepção da chamada “Lei de Imprensa” (Lei nº 5.250/1967) pela Constituição Federal de 1988.
Argumenta que a decisão reclamada configura censura à atividade de imprensa, restringe a liberdade de expressão e afronta o direito de acesso à informação.
Afirma, por fim, que a imposição de censura é desarrazoada, considerando que eventuais danos sofridos poderão ser compensados por meio de indenização.

A reclamação foi acolhida pelo STF (foi julgada procedente)?
SIM. A 1ª Turma do STF julgou procedente reclamação.

Cabimento de reclamação quando há afronta à liberdade de imprensa
Em regra, o STF é muito restritivo em aceitar reclamações propostas contra decisões que teriam desrespeitado acórdãos da Corte.
Essa posição do STF está dentro daquilo que se chama de “jurisprudência defensiva”, ou seja, uma postura interpretativa dos Tribunais Superiores de restringir o cabimento de recursos e de ações autônomas (como é o caso da reclamação), com o objetivo de reduzir a quantidade de processos que chegam aos Tribunais. Assim, os Ministros do STF e do STJ adotam um “rigor” maior na análise dos aspectos formais a fim de limitar os casos que chegam para análise dos Tribunais.
Um exemplo de “jurisprudência defensiva” é a interpretação consolidada no STF no sentido de que não se deve adotar a teoria da transcendência dos motivos determinantes. Pela teoria da transcendência dos motivos determinantes (efeitos irradiantes dos motivos determinantes), a ratio decidendi, ou seja, os fundamentos determinantes da decisão do STF também teriam efeito vinculante.
Ocorre que, como já dito, o Supremo não acolhe esta posição e entende que, em regra, as decisões proferidas pelo STF em controle abstrato de constitucionalidade devem ter eficácia vinculante apenas quanto à parte dispositiva do julgado. Assim, em regra, não se admite reclamação sob a alegação de que houve violação dos fundamentos da decisão do STF. Nesse sentido:
(...) a exegese jurisprudencial conferida ao art. 102, I, “l”, da Magna Carta rechaça o cabimento de reclamação fundada na tese da transcendência dos motivos determinantes. (...)
STF. 1ª Turma. Rcl 22470 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 24/11/2017.

Como explica o Min. Roberto Barroso, essa recusa em se admitir a transcendência dos motivos determinantes representa “uma jurisprudência defensiva, destinada a conter a multiplicação de reclamações, em número que ultrapassaria a capacidade física de julgamento dos ministros”.

Essa linha restritiva, no entanto, tem sido excepcionada em processos relacionados com a liberdade de expressão ou liberdade de imprensa. Nesses casos, o STF tem proferido inúmeras decisões admitido reclamações mesmo que a decisão reclamada não esteja baseada no mesmo ato declarado inconstitucional em sede concentrada.
A justificativa para essa postura mais ampla está no fato de que “a liberdade de expressão ainda não se tornou uma ideia suficientemente enraizada na cultura do Poder Judiciário de uma maneira geral. Não sem sobressalto, assiste-se à rotineira providência de juízes e tribunais no sentido de proibirem ou suspenderem a divulgação de notícias e opiniões, num “ativismo antiliberal” que precisa ser contido.” (Min. Roberto Barroso).
Em suma, o STF possui uma posição menos rigorosa ao analisar reclamações envolvendo decisões que violem a liberdade de expressão. Por essa razão, é cabível reclamação contra decisão judicial que determina a retirada de matéria jornalística da página eletrônica do meio de comunicação mesmo que esta decisão esteja supostamente baseada no art. 20 do Código Civil, e não na Lei de Imprensa.

A solução de conflitos entre liberdade de imprensa e direitos da personalidade
A censura consiste na possibilidade de o Estado interferir no conteúdo da manifestação do pensamento.
A censura é proibida pela CF/88 em diversos dispositivos (art. 5º, IV, IX e XIV, bem como art. 220, §§ 1º e 2º).
Diante da existência de diversos dispositivos assegurando a liberdade de expressão, podemos dizer que a Carta de 88 conferiu uma espécie de “prioridade” para essa garantia.
Assim, embora não haja hierarquia entre direitos fundamentais, a liberdade de expressão (aqui entendida em sentindo amplo) possui uma posição preferencial (preferred position) em relação aos demais direitos. Isso significa que o afastamento da liberdade de expressão é excepcional, e o ônus argumentativo é de quem sustenta o direito oposto.
Como consequência disso, deve-se fazer uma análise muito rigorosa, criteriosa e excepcional de toda e qualquer medida que tenha por objetivo restringir a liberdade de expressão.

Razões pelas quais a liberdade de expressão ocupa lugar privilegiado
O Min. Roberto Barroso cita 5 motivos principais pelos quais a liberdade de expressão ocupa um lugar privilegiado tanto no ordenamento jurídico interno como nos documentos internacionais. São eles:
a) a liberdade de expressão desempenha uma função essencial para a democracia, ao assegurar um livre fluxo de informações e a formação de um debate público robusto e irrestrito, condições essenciais para a tomada de decisões da coletividade e para o autogoverno democrático;
b) a proteção da liberdade de expressão está relacionada com a própria dignidade humana, ao permitir que indivíduos possam exprimir de forma desinibida suas ideias, preferências e visões de mundo, bem como terem acesso às dos demais indivíduos, fatores essenciais ao desenvolvimento da personalidade, à autonomia e à realização existencial;
c) este direito está diretamente ligado à busca da verdade. Isso porque as ideias só possam ser consideradas ruins ou incorretas após o confronto com outras ideias;
d) a liberdade de expressão possui uma função instrumental indispensável ao gozo de outros direitos fundamentais, como o de participar do debate público, o de reunir-se, de associar-se, e o de exercer direitos políticos, dentre outros; e
e) a liberdade de expressão é garantia essencial para a preservação da cultura e da história da sociedade, por se tratar de condição para a criação e o avanço do conhecimento e para a formação e preservação do patrimônio cultural de uma nação.

Liberdade de expressão não é absoluta
Vale ressaltar, contudo, que nenhum direito constitucional é absoluto e, portanto, a liberdade de expressão também não é.
A própria Constituição impõe alguns limites ou qualificações à liberdade de expressão, como por exemplo:
a) vedação do anonimato (art. 5º, IV);
b) direito de resposta (art. 5º, V);
c) restrições à propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos e terapias (art. 220, § 4º);
d) classificação indicativa (art. 21, XVI); e
e) dever de respeitar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X).

Isso significa que é indispensável que haja uma ponderação entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade.

Direitos da personalidade
Direitos da personalidade é uma expressão de uso relativamente recente no direito brasileiro, tendo sido desenvolvida pela doutrina contemporânea até ingressar no Código Civil, que abriu para o tema um capítulo específico, logo no Título I.
O Min. Barroso afirma que “é possível conceituar os direitos da personalidade, inerentes a toda pessoa humana, como a versão privada dos direitos fundamentais, e sua aplicação às relações com outros indivíduos como regra geral”.
Os direitos da personalidade costumam ser divididos pela doutrina civilista em dois grandes grupos:
a) direitos à integridade física, que englobam o direito à vida, o direito ao próprio corpo e o direito ao cadáver; e
b) direitos à integridade moral, rubrica sob a qual se abrigam, entre outros, os já mencionados direitos à honra, à imagem, à privacidade e o direito moral do autor.

Ponderação entre liberdade de expressão e os direitos da personalidade
Tanto a liberdade de expressão como os direitos de privacidade, honra e imagem têm estatura constitucional. Vale dizer: entre eles não há hierarquia. De modo que não é possível estabelecer, em abstrato, qual deve prevalecer.
Em caso de conflito entre normas dessa natureza, impõe-se a necessidade de ponderação, que, como se sabe, é uma técnica de decisão que se desenvolve em três etapas:
1) na primeira, verificam-se as normas que postulam incidência ao caso;
2) na segunda, selecionam-se os fatos relevantes;
3) e, por fim, testam-se as soluções possíveis para verificar, em concreto, qual delas melhor realiza av vontade constitucional.

Em um cenário ideal, a ponderação deve procurar fazer concessões recíprocas, preservando o máximo possível dos direitos em disputa. No limite, porém, fazem-se escolhas. Todo esse processo intelectual tem como fio condutor o princípio instrumental da proporcionalidade ou razoabilidade.

Critérios para a ponderação entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade
O Min. Roberto Barroso defende a aplicação de 8 critérios ou elementos a serem considerados na ponderação entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade. São eles:
a) veracidade do fato: a notícia divulgada dever ser verdadeira. Isso porque a informação que goza de proteção constitucional é a verdadeira. A divulgação deliberada de uma notícia falsa, em detrimento de outrem, não constitui direito fundamental do emissor. Os veículos de comunicação têm o dever de apurar, com boa-fé e dentro de critérios de razoabilidade, a correção do fato ao qual darão publicidade. É bem de ver, no entanto, que não se trata de uma verdade objetiva, mas subjetiva, subordinada a um juízo de plausibilidade e ao ponto de observação de quem a divulga. Para haver responsabilidade, é necessário haver clara negligência na apuração do fato ou dolo na difusão da falsidade.

b) licitude do meio empregado na obtenção da informação: o conhecimento acerca do fato que se pretende divulgar tem de ter sido obtido por meios admitidos pelo direito. A Constituição, da mesma forma que veda a utilização, em juízo, de provas obtidas por meios ilícitos, também proíbe a divulgação de notícias às quais se teve acesso mediante cometimento de um crime. Se o jornalista ou alguém empreitado pelo veículo de comunicação realizou, por exemplo, uma interceptação telefônica clandestina, invadiu domicílio, violou o segredo de justiça em um processo de família ou obteve uma informação mediante tortura ou grave ameaça, sua divulgação, em princípio, não será legítima. Note-se ainda que a circunstância de a informação estar disponível em arquivos públicos ou poder ser obtida por meios regulares e lícitos torna-a pública e, portanto, presume-se que a divulgação desse tipo de informação não afeta a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem dos envolvidos.

c) personalidade pública ou privada da pessoa objeto da notícia: a depender se a pessoa for uma personalidade pública ou privada, o grau de exposição é maior ou menor.

d) local do fato: deve-se analisar também se os locais dos fatos narrados são reservados ou protegidos pelo direito à intimidade.

e) natureza do fato: deve-se analisar se os fatos divulgados possuem caráter sigiloso ou se estão relacionados com a intimidade da pessoa.

f) existência de interesse público na divulgação em tese: presume-se, como regra geral, o interesse público na divulgação de qualquer fato verdadeiro.

g) existência de interesse público na divulgação de fatos relacionados com a atuação de órgãos públicos.

h) preferência por sanções a posteriori, que não envolvam a proibição prévia da divulgação: o uso abusivo da liberdade de expressão pode ser reparado por mecanismos diversos, que incluem a retificação, a retratação, o direito de resposta, a responsabilização civil ou penal e a proibição da divulgação. Somente em hipóteses extremas se deverá utilizar a última possibilidade. Nas questões envolvendo honra e imagem, por exemplo, como regra geral será possível obter reparação satisfatória após a divulgação, pelo desmentido – por retificação, retratação ou direito de resposta – e por eventual reparação do dano, quando seja o caso.

Resumindo:
O STF tem sido mais flexível na admissão de reclamação em matéria de liberdade de expressão, em razão da persistente vulneração desse direito na cultura brasileira, inclusive por via judicial.
No julgamento da ADPF 130, o STF proibiu enfaticamente a censura de publicações jornalísticas, bem como tornou excepcional qualquer tipo de intervenção estatal na divulgação de notícias e de opiniões.
A retirada de matéria de circulação configura censura em qualquer hipótese, o que se admite apenas em situações extremas.
Assim, em regra, a colisão da liberdade de expressão com os direitos da personalidade deve ser resolvida pela retificação, pelo direito de resposta ou pela reparação civil.
Diante disso, se uma decisão judicial determina que se retire do site de uma revista determinada matéria jornalística, esta decisão viola a orientação do STF, cabendo reclamação.
STF. 1ª Turma. Rcl 22328/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 6/3/2018 (Info 893).

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