sábado, 13 de outubro de 2018

O STF pode arquivar, de ofício, um inquérito? Isso viola o sistema acusatório?



A situação concreta foi a seguinte:
Em março de 2017, a Procuradoria Geral da República requereu ao STF a abertura de inquérito para apurar suposto crime que teria sido praticado, em 2010, pelo Deputado Federal Rodrigo Garcia.
Em abril de 2017, o pedido foi autorizado e o Ministro Relator do inquérito, no STF, determinou que a Polícia Federal fizesse, em 30 dias, as diligências de investigação que foram requeridas pelo Ministério Público.
Em julho de 2017, a PGR afirma que parte das diligências foram feitas, mas pede a prorrogação do prazo para que novas investigações sejam realizadas.
O Ministro Relator deferiu o pedido de prorrogação do prazo, com base no art. 230-C, § 1º, do Regimento Interno do STF, que diz o seguinte:
Art. 230 (...)
§ 1º O Relator poderá deferir a prorrogação do prazo sob requerimento fundamentado da autoridade policial ou do Procurador-Geral da República, que deverão indicar as diligências que faltam ser concluídas.

Diante disso, o Ministro concedeu mais 60 dias para que a PF concluísse as investigações que faltavam.
Em novembro de 2017, a PGR fez novo pedido de prorrogação do prazo para as investigações e o Ministro concedeu mais 60 dias.
Em março de 2018, a PGR fez novo pedido de prorrogação do prazo para as investigações e o Ministro concedeu mais 60 dias.
Em junho de 2018, a PGR pediu que os autos fossem remetidos à 1ª instância. Isso porque o STF, em decisão proferida em maio de 2018, restringiu o foro por prerrogativa de funções dizendo o seguinte:
O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018 (Info 900).

Desse modo, a PGR argumentou que o delito investigado teria sido praticado pelo Deputado Federal antes do exercício do cargo. Logo, não seria da competência do STF julgá-lo.
Em outras palavras, a PGR disse o seguinte: agora que houve essa restrição do foro privativo, não será mais o STF que irá julgar originariamente este delito. Isso significa que também não há mais motivo para o inquérito ficar tramitando no STF, razão pela qual ele deve ser enviado para a 1ª instância, onde um Promotor de Justiça e um Juiz de 1ª instância irão atuar.

O que decidiu o Supremo neste caso? O Tribunal acolheu a declinação de competência?
NÃO. O STF afirmou o seguinte: a PGR está certa quando diz que agora há uma restrição do foro por prerrogativa de função. De fato, agora, o STF somente julga, originariamente, os crimes cometidos pelos Deputados Federais e Senadores, se tiverem sido praticados durante o exercício do cargo e se estiverem relacionados com as funções desempenhadas. Foi o que restou decidido na AP 937 QO/RJ.
Então, em princípio, o normal seria deferir o pedido da PGR e declinar a competência para a 1ª instância.
Ocorre, contudo, que aqui temos uma peculiaridade: essa investigação já foi prorrogada mais de uma vez e até o presente momento não foi colhido nenhum indício que aponte que o crime possa realmente ter sido cometido.
No caso, após mais de um ano de investigação, não há nenhuma perspectiva de obtenção de prova suficiente da existência do fato criminoso. A investigação apura a notícia de que o Deputado, em 2010, teria recebido dinheiro em um hotel na zona sul de São Paulo. Sucede que o inquérito sequer conseguiu localizar este suposto hotel onde o pagamento teria sido feito.
Assim, a declinação da competência em investigação fadada ao insucesso representaria apenas protelar o inevitável, violados o direito à duração razoável do processo e a dignidade da pessoa humana.
O que se percebe é que não há indícios de crime e as investigações, por mais que tenham sido prorrogadas, não conseguiram ter qualquer êxito.
Assim, para o Ministro Relator, a declinação de competência para a 1ª instância a fim de que lá sejam continuadas as investigações seria uma medida “fadada ao insucesso” e “representaria apenas protelar o inevitável”.
Diante disso, o STF decidiu, de ofício (ou seja, sem requerimento), arquivar o inquérito, com base no art. 231, § 4º, “e”, do RISTF:
Art. 231 (...)
§ 4º O Relator tem competência para determinar o arquivamento, quando o requerer o Procurador-Geral da República ou quando verificar:
(...)
e) ausência de indícios mínimos de autoria ou materialidade, nos casos em que forem descumpridos os prazos para a instrução do inquérito ou para oferecimento de denúncia.

A pendência de investigação, por prazo irrazoável, sem amparo em suspeita contundente, ofende o direito à razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF/88) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88).
Dessa forma, a 2ª Turma do STF negou o pedido de remessa do inquérito à 1ª instância e, de ofício, determinou seu arquivamento.
Vale ressaltar que, mesmo depois do arquivamento, a autoridade policial poderá fazer novas diligências se surgirem novas provas (art. 18 do CPP).

Resumindo:
O STF pode, de ofício, arquivar inquérito quando verificar que, mesmo após terem sido feitas diligências de investigação e terem sido descumpridos os prazos para a instrução do inquérito, não foram reunidos indícios mínimos de autoria ou materialidade.
STF. 2ª Turma. Inq 4420/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 21/8/2018 (Info 912).

Essa decisão ofende o sistema acusatório e o art. 129, I, da CF, que confere ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública? Ao se arquivar, de ofício, um inquérito policial, viola-se a atribuição conferida pela CF/88 ao Ministério Público de decidir se oferece ou não a denúncia?
NÃO.
“Nessas hipóteses excepcionais, não obstante nosso sistema acusatório consagrar constitucionalmente a titularidade privativa da ação penal ao Ministério Público (CF, art. 129, I), a quem compete decidir pelo oferecimento da denúncia ou solicitação de arquivamento do inquérito ou peças de informação, é dever do Poder Judiciário exercer sua “atividade de supervisão judicial” (STF, Pet. 3825/MT, rel. Min. GILMAR MENDES), fazendo cessar toda e qualquer ilegal coação por parte do Estado-acusador, quando o Parquet insiste em manter procedimento investigatório mesmo ausentes indícios de autoria e materialidade das infrações penais imputadas (...)
A manutenção da investigação criminal sem justa causa, ainda que em fase de inquérito, constitui injusto e grave constrangimento aos investigados (...)” (INQ 4.429, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 13/06/2018).

A decisão que determina o arquivamento de ofício viola o art. 28 do CPP?
NÃO. O art. 28 do CPP não é óbice ao arquivamento de inquérito, de ofício, pelo magistrado.
Nesse sentido, veja a decisão monocrática do Ministro Luís Roberto Barroso, assim ementada:
(...) 1. A mera instauração de um Inquérito pode trazer algum tipo de constrangimento às pessoas com foro por prerrogativa de função. Por outro lado, os órgãos de persecução criminal devem ter a possibilidade de realizar as investigações quando verificado um mínimo de elementos indiciários, como é o caso das informações obtidas por meio de acordos de colaboração premiada. Ponderados esses dois interesses, somente se deve afastar de antemão um notícia-crime quando complemente desprovida de plausibilidade.
2. No entanto, isso não significa que os agentes públicos devam suportar indefinidamente o ônus de figurar como objeto de investigação, de modo que a persecução criminal deve observar prazo razoável para sua conclusão.
3. No caso dos autos, encerrado o prazo para conclusão das investigações, e suas sucessivas prorrogações, o Ministério Público, ciente de que deveria apresentar manifestação conclusiva, limitou-se a requerer a remessa dos autos ao Juízo que considera competente. Isso significa dizer que entende não haver nos autos elementos suficientes ao oferecimento da denúncia, sendo o caso, portanto, de arquivamento do inquérito.
4. O art. 28 do Código de Processo Penal se limita a impedir que, pedido o arquivamento pelo Ministério Público e confirmado este entendimento no âmbito do próprio Ministério Público, possa o juiz se negar a deferi-lo. No entanto, não obriga o Juiz a só proceder ao arquivamento quando este for expressamente requerido pelo Ministério Público, seja porque cabe ao juiz o controle de legalidade do procedimento de investigação; seja porque o Judiciário, no exercício de suas funções típicas, não se submete à autoridade de quem esteja sob sua jurisdição
5. Inquérito arquivado sem prejuízo de que possa ser reaberto no juízo próprio, no caso de surgimento de novas provas.
STF. Decisão monocrática. INQ 4.442, Rel. Min. Roberto Barroso, Dje 12/06/2018.

Transitoriedade do inquérito
Apesar de não ter sido mencionada expressamente, os julgados acima reforçam a ideia de que uma das características do inquérito é a de que se trata de um procedimento temporário. Conforme explica Renato Brasileiro:
“(...) diante da inserção do direito à razoável duração do processo na Constituição Federal (art. 5º, LXXVIII), já não há mais dúvidas de que um inquérito policial não pode ter seu prazo de conclusão prorrogado indefinidamente. As diligências devem ser realizadas pela autoridade policial enquanto houver necessidade. Evidentemente, em situações mais complexas, envolvendo vários acusados, é lógico que o prazo para a conclusão das investigações deverá ser sucessivamente prorrogado. Porém, uma vez verificada a impossibilidade de colheita de elementos que autorizem o oferecimento de denúncia, deve o Promotor de Justiça requerer o arquivamento dos autos.” (Manual de Processo Penal. 4ª ed., Salvador: Juspodivm, 2016, p. 140-141).

Essa possibilidade de arquivamento de ofício existe apenas para o STF? Um magistrado de 1ª instância poderá promover, de ofício, o arquivamento do inquérito policial?
No julgamento do Inq 4420/DF não houve uma resposta expressa a pergunta.
O STJ, contudo, possui precedentes em sentido contrário:

(...) 1. Esta Corte possui entendimento jurisprudencial no sentido de que compete ao Ministério Público, na condição de dominus litis, promover a ação penal pública, avaliando se as provas obtidas na fase pré-processual são suficientes para sua propositura, por ser ele o detentor do jus persequendi. Portanto, não cabe ao magistrado assumir o papel constitucionalmente assegurado ao órgão de acusação e, de ofício, determinar o arquivamento do inquérito policial. (...)
STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1284335/MG, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 01/04/2014.



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