segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Justiça Federal é competente para julgar delito decorrente da venda de cigarro importado


Imagine a seguinte situação hipotética:
João é camelô em Belo Horizonte e na sua barraca foram encontrados diversos pacotes de cigarro, da marca “Fume Bien”, disponíveis para venda.
Os cigarros “Fume Bien” são oriundos do Paraguai e fazem muito sucesso no Brasil em razão de seu preço ser bem mais barato que os nacionais. São normalmente vendidos, clandestinamente, no mercado informal.
Os cigarros da marca “Fume Bien” são aprovados pela ANVISA e, portanto, podem ser importados e comercializados no Brasil, desde que cumpridas as obrigações tributárias.
Vale ressaltar, no entanto, que João não possuía nota fiscal dos cigarros apreendidos em sua posse.
João confessou que adquiriu os cigarros de Pedro, um rapaz que também mora em Belo Horizonte e fornece mercadorias para os camelôs.

Qual foi o crime, em tese, praticado por João?
Descaminho, na figura equiparada prevista no art. 334, § 1º, IV, do CP (descaminho por assimilação):
Art. 334. Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem:
(...)
IV - adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos.

Em que consiste o crime de descaminho?
“Iludir” = “frustrar”. Esse é o sentido utilizado pelo tipo penal. Assim, iludir o pagamento do imposto significa “frustrar o pagamento do imposto”.
O crime pode ocorrer em duas situações:
• quando a pessoa traz para o Brasil (importa) uma mercadoria permitida, mas, ao fazê-lo, engana as autoridades e com isso não paga (ilude) o imposto devido; ou
• quando a pessoa manda para fora do Brasil (exporta) uma mercadoria permitida, mas, ao fazê-lo, engana as autoridades e com isso não paga (ilude) o imposto devido.
Obs: quando o tipo fala em imposto ou direito devido pelo “consumo de mercadoria”, ele está se referindo ao Imposto sobre Produtos Industrializados. O IPI também é conhecido, por razões históricas, como “imposto sobre o consumo”. Um dos fatos geradores do IPI é o desembaraço aduaneiro de produtos industrializados de procedência estrangeira (art. 46, I, do CTN).

Algumas características do descaminho:
• Impostos que o tipo penal visa proteger: imposto de importação (II), imposto de exportação (IE) e imposto sobre produtos industrializados (IPI).
• Sujeito passivo: o Estado (mais especificamente a União, considerando que os impostos devidos nas operações de importação e exportação são federais).
• Elemento subjetivo: dolo (não admite forma culposa).
• Consumação: trata-se de crime formal. Para que seja proposta ação penal por descaminho, não é necessária a prévia constituição definitiva do crédito tributário. Não se aplica a SV 24 (Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo).
• A competência para julgar o delito é da Justiça Federal, considerando que é praticado em detrimento de interesse da União na arrecadação dos impostos.
• Em termos territoriais, a competência será da seção judiciária onde os bens foram apreendidos, não importando o local por onde entraram no país (no caso de importação) ou de onde seguiriam para o exterior (na hipótese de exportação). Tal entendimento está cristalizado em enunciado do STJ:
Súmula 151-STJ: A competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do Juízo Federal do lugar da apreensão dos bens.

Figuras equiparadas
O § 1º do art. 334 prevê condutas equiparadas a descaminho. Em outras palavras, são situações nas quais o agente não é punido por ter importado ou exportado mercadoria iludindo o pagamento de imposto, mas sim por ter praticado uma conduta relacionada com a prática de descaminho.
As figuras previstas no § 1º do art. 334 do CP são chamadas de “descaminho por assimilação”.

Art. 334, § 1º, IV
Trata-se de uma forma específica de receptação (art. 180 do CP).
Se a pessoa aceita adquirir, receber ou ocultar, no exercício de atividade comercial ou industrial, uma mercadoria de procedência estrangeira sem os documentos que atestam que ela foi introduzida regularmente ou com documentos falsos, essa pessoa está fomentando o crime de descaminho.
Este inciso pune a pessoa que pratica atividade comercial ou industrial envolvendo mercadoria de procedência estrangeira, que foi trazida para o Brasil de forma clandestina (sem que as autoridades soubessem) ou fraudulenta (enganando as autoridades).

Voltando ao nosso exemplo: o inciso IV do § 1º do art. 334 fala em “exercício de atividade comercial”. João pode ser acusado deste delito mesmo tendo apenas uma barraca de camelô? Isso é considerado atividade comercial?
SIM. Veja o que diz o § 2º do art. 334 do CP:
Art. 334 (...)
§ 2º Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências.

Assim, não há dúvida de que a mercadoria é estrangeira, que João exercia atividade comercial (ainda que na informalidade) quando foi encontrada em sua posse e que não apresentou a nota fiscal correspondente à sua aquisição.

Por que João não responde pelo caput do art. 334 do CP?
Porque, no caso concreto, não ficou demonstrado nenhum indício de que ele tenha, de alguma maneira, participado da importação dos cigarros.
Ele responderia pelo caput se tivesse importado os cigarros ou, de alguma forma, concorrido para esta importação (ex: fornecido dinheiro para que alguém trouxesse os cigarros do Paraguai).

Por que João não responde por contrabando?
Antes de responder, é necessário relembrar as principais diferenças entre contrabando e descaminho:
CONTRABANDO
DESCAMINHO
Tipificado no art. 334-A do CP.
Tipificado no art. 334 do CP.
Consiste em “importar ou exportar mercadoria proibida”.
Consiste em “iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria”
Corresponde à conduta de importar ou exportar mercadoria PROIBIDA.
Obs: essa proibição pode ser absoluta ou relativa.

Corresponde à entrada ou à saída de produtos PERMITIDOS, todavia elidindo o pagamento do imposto devido.
É a fraude utilizada para iludir o pagamento de impostos relacionados com a importação ou exportação de produtos.
NÃO é uma espécie de crime tributário.
É uma espécie de crime tributário.
Bem jurídico: a moralidade administrativa, a saúde e a segurança pública. O bem juridicamente tutelado vai além do mero valor pecuniário do imposto elidido, alcançando também o interesse estatal de impedir a entrada e a comercialização de produtos proibidos em território nacional.
Bem jurídico protegido: interesse do Estado na arrecadação dos tributos.
Além disso, alguns autores apontam que este crime também protege o controle estatal das importações e das exportações.
É INAPLICÁVEL o princípio da insignificância.
Exceção: contrabando de pequena quantidade de medicamento para uso próprio (STJ EDcl no AgRg no REsp 1708371/PR).
APLICA-SE o princípio da insignificância se o valor do tributo cujo pagamento foi iludido não superar 20 mil reais (posição majoritária).
NÃO admite suspensão condicional do processo (a pena é de 2 a 5 anos).
Admite suspensão condicional do processo (a pena é de 1 a 4 anos).

João não praticou contrabando porque a comercialização do cigarro da marca “Fume Bien” é permitida no Brasil. Logo, não se trata de mercadoria proibida. No entanto, para que essa venda ocorresse, seria necessário que o comerciante recolhesse os tributos devidos. Como não o fez, responde por descaminho por equiparação.
Ressalte-se que, se os cigarros da marca “Fume Bien” fossem de importação proibida no Brasil (não fossem aprovados pela ANVISA), aí a conduta de João configuraria contrabando.

De quem será a competência para processar e julgar este delito?
Justiça Federal.
Compete à Justiça Federal processar e julgar a conduta de expor à venda cigarros de importação permitida pela ANVISA, sem nota fiscal e sem comprovação de pagamento de imposto de importação.
Como o descaminho tutela prioritariamente interesses da União, é de se reconhecer a competência da Justiça Federal para conduzir o inquérito policial e, eventualmente, caso seja oferecida denúncia, julgar a ação penal, aplicando-se o disposto no enunciado 151 do STJ:
Súmula 151-STJ: A competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do Juízo Federal do lugar da apreensão dos bens.

Compete à Justiça Federal a condução do inquérito que investiga o cometimento do delito previsto no art. 334, § 1º, IV, do Código Penal, na hipótese de venda de mercadoria estrangeira, permitida pela ANVISA, desacompanhada de nota fiscal e sem comprovação de pagamento de imposto de importação.
STJ. Plenário. CC 159.680-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 08/08/2018 (Info 631).

Tese declinatória invocada por João
A defesa de João, a fim de afastar a competência da Justiça Federal, alegou que não houve transnacionalidade na conduta do agente.
João argumentou que a mercadoria apreendida já havia sido internalizada e que ele não concorreu de qualquer forma, direta ou indireta, para a efetiva importação desses cigarros.
Ele explicou que comprou os cigarros em Belo Horizonte (MG) e os revendia apenas nesta cidade, de sorte que a sua conduta não envolvia mais de um país, sendo apenas um comércio interno.
Logo, não havendo transnacionalidade da conduta, a competência para julgar os fatos seria da Justiça Estadual (e não da Justiça Federal).

Essa tese de João é aceita pelo STJ? Para que o descaminho seja de competência da Justiça Federal, é necessária a comprovação da transnacionalidade da conduta?
NÃO.
Compete à Justiça Federal o julgamento dos crimes de contrabando e de descaminho, ainda que inexistentes indícios de transnacionalidade na conduta.
STJ. 3ª Seção. CC 160.748-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 26/09/2018 (Info 635).

O simples fato do produto mantido em depósito ter origem estrangeira é suficiente, por si só, para atrair a competência da Justiça Federal.
Os crimes de contrabando e de descaminho tutelam prioritariamente interesse da União porque a ela compete privativamente definir os produtos que não podem ingressar no país, além de exercer a fiscalização aduaneira e de fronteira (arts. 21, XXII e 22, VII, da CF/88).
Além disso, os impostos exigidos para a entrada de mercadorias no país são tributos de competência da União.

Última pergunta: no caso concreto, seria possível aplicar o princípio da insignificância?
SIM. O STJ e a 2ª Turma do STF admitem a aplicação do princípio da insignificância para o descaminho se o valor do tributo cujo pagamento foi iludido não superar 20 mil reais.
Logo, na prática, nos casos concretos envolvendo camelô, geralmente é aplicado o princípio da insignificância, tendo em vista que normalmente não se ultrapassa essa quantia.


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