domingo, 28 de abril de 2019

O fato de o condutor do veículo estar embriagado gera uma presunção de que ele é o culpado pelo acidente de trânsito



Imagine a seguinte situação hipotética:
João conduzia seu veículo quando acertou Laura, pedestre, causando-lhe graves ferimentos que a impediram de trabalhar durante vários dias.
Vale ressaltar que, logo após o acidente, a polícia realizou “teste do bafômetro” em João, tendo sido constatada a presença de 0,97 mg/l (noventa e sete miligramas de álcool por litro de ar).
Alguns meses depois, Laura ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais contra João.

Contestação
Em sua contestação, o réu alegou a culpa exclusiva da vítima pelo acidente de trânsito. Afirmou que a autora estava atravessando a rua em um local que não tinha faixa de pedestre e com iluminação precária, colocando-se em situação de risco que veio a se implementar.
Alegou que o fato de o exame de alcoolemia ter apresentado resultado positivo não é capaz, por si só, de induzir a conclusão por sua responsabilidade, notadamente se considerada a conduta imprudente da vítima.
Argumentou que não existe nexo de causalidade entre a embriaguez e o motivo da colisão, esclarecendo que não foi o fato de estar embriagado que deu causa ao atropelamento e sim a circunstância de a autora estar transitando na beira da rua, em local onde a iluminação desfavorece o trânsito de veículos, impedindo o desvio em tempo de evitar a colisão.

Instrução probatória
Mesmo após a instrução probatória, não ficou devidamente esclarecido se a vítima, no momento em que foi atingida pelo veículo - conduzido pelo réu alcoolizado - encontrava-se na calçada da avenida ou à margem da calçada, na pista de rolamento, ali caminhando ou se preparando para atravessar a rua.

Sentença
O juiz acolheu a tese do réu e disse que, como não foi possível definir se a vítima se encontrava na calçada ou na pista de rolamento (ainda que à margem, próxima da calçada), não se poderia reconhecer a culpa do condutor do veículo, a despeito de ele se encontrar alcoolizado. Logo a autora não teria conseguido comprovar a culpa do réu pelo acidente de trânsito.
Vale ressaltar que, segundo o art. 373, I, do CPC/2015:
Art. 373.  O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;

Agiu corretamente o juiz, segundo o STJ?
NÃO.
Segundo decidiu o STJ:
O fato de o condutor do veículo estar embriagado gera uma presunção de que ele é o culpado pelo acidente de trânsito.
Em uma ação de indenização envolvendo acidente de trânsito, o condutor do veículo que estava embriagado no momento do evento possui, contra si, uma presunção de que é culpado.
Haverá, assim, uma inversão do aHamjd
ônus probatório de forma que caberá a ele (condutor embriagado) demonstrar alguma causa excludente do nexo de causalidade.

Inobservância das normas de trânsito e presunção de culpa
A inobservância das normas  de  trânsito  pode  repercutir na responsabilização civil do infrator,  a  caracterizar  a  culpa  presumida  do infrator, se tal comportamento   representar,  objetivamente,  o  comprometimento  da segurança  do  trânsito  na  produção  do evento danoso em exame; ou seja,  se  tal  conduta,  contrária às regras de trânsito, revela-se idônea  a  causar  o  acidente,  no  caso concreto, hipótese em que, diante   da   inversão   do   ônus  probatório  operado,  caberá  ao transgressor  comprovar a ocorrência de alguma excludente do nexo da causalidade,  tal  como a culpa ou fato exclusivo da vítima, a culpa ou fato exclusivo de terceiro, o caso fortuito ou a força maior.
Aplica-se aqui a tese da culpa da legalidade (ou culpa contra a legalidade).

Tese da culpa contra a legalidade (culpa da legalidade)
Segundo a tese da culpa contra a legalidade (ou culpa da legalidade), deve-se reconhecer a culpa presumida do agente que violar dever jurídico imposto em norma jurídica regulamentar.
Assim, por exemplo, o condutor que tiver descumprido uma norma de trânsito será considerado presumivelmente culpado pelo acidente, devendo indenizar a vítima, salvo se comprovar uma causa excludente do nexo causal.
Vale ressaltar que se trata de uma presunção relativa (presunção iuris tantum). Há, portanto, uma inversão do ônus da prova, considerando que ele (agente que descumpriu a norma) é quem terá que comprovar a causa excludente. Se não conseguir isso, será condenado a indenizar.

Aplicação em especial nos acidentes de trânsito
A teoria da culpa contra legalidade se aplica principalmente nos “casos de acidentes de veículos e encontraria fundamento no fato de as autoridades competentes se basearem na experiência daquilo que normalmente acontece, ao expedirem os regulamentos e instruções de trânsito para segurança do tráfego em geral.
(...)
A jurisprudência pátria tem admitido a presunção de culpa em determinados casos de infração aos regulamentos de trânsito: colisão na traseira de outro veículo, por inobservância da regra que manda o motorista guardar distância de segurança entre o veículo que dirige e o que segue imediatamente à sua frente; invasão de preferencial, em desrespeito à placa ‘Pare’ ou à sinalização do semáforo; invasão da contramão de direção, em local de faixa contínua; velocidade excessiva e inadequada para o local e as condições do terreno; pilotagem em estado de embriaguez etc” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro. Vol. 4. Responsabilidade Civil. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 303-304).

Não é toda infração administrativa que gerará essa presunção
Vale ressaltar que não é todo e qualquer comportamento contrário às normas de trânsito que repercute na apuração da responsabilidade civil, especificamente na caracterização da culpa presumida do agente.
A título de exemplo, pode-se citar o caso do condutor que se envolve em acidente de trânsito, com carteira de habilitação por mais de 30 (trinta) dias. Ainda que, nos termos do art. 162, V, do Código de Trânsito Brasileiro tal conduta configure infração administrativa gravíssima, o condutor não terá, contra si, a presunção de culpa, pois esta circunstância, objetivamente considerada, não se revela idônea a atribuir ao condutor a produção do evento danoso.

Inobservância das normas de trânsito gera a presunção se essa conduta tiver o condão de gerar o acidente
A inobservância das normas de trânsito pode repercutir na responsabilização civil do infrator, a caracterizar a culpa presumida do infrator, se tal comportamento revela-se idôneo a causar o acidente no caso concreto, hipótese em que, diante da inversão do ônus probatório operado, caberá ao transgressor comprovar a ocorrência de alguma excludente do nexo da causalidade, tal como a culpa ou fato exclusivo da vítima, a culpa ou fato exclusivo de terceiro, o caso fortuito ou a força maior.

Voltando ao caso concreto
É indiscutível que a condução de veículo em estado de embriaguez representa, por si só, gravíssimo descumprimento do dever de cuidado e de segurança no trânsito, na medida em que o consumo de álcool compromete as faculdades psicomotoras, com significativa diminuição dos reflexos; enseja a perda de autocrítica, o que faz com que o condutor subestime os riscos ou os ignore completamente; promove alterações na percepção da realidade; enseja déficit de atenção; afeta os processos sensoriais; prejudica o julgamento e o tempo das tomadas de decisão; entre outros efeitos que inviabilizam a condução de veículo automotor de forma segura.
Assim, dirigir embriagado é uma conduta contrária às normas jurídicas de trânsito e que, além disso, revela-se idônea (apta) à produção do acidente.
Em tais circunstâncias, o condutor tem, contra si, a presunção relativa de culpa, a ensejar a inversão do ônus probatório. Cabe, assim, ao motorista embriagado comprovar uma causa excludente do nexo causal. Se não conseguir, terá que indenizar.

Conclusão:
Em ação destinada a apurar a responsabilidade civil decorrente de acidente de trânsito, presume-se culpado o condutor de veículo automotor que se encontra em estado de embriaguez, cabendo-lhe o ônus de comprovar a ocorrência de alguma excludente do nexo de causalidade.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.749.954-RO, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 26/02/2019 (Info 644).


Observação final: vale ressaltar que o tema tratado envolve responsabilidade (aspecto cível) e não a responsabilidade penal. A culpa presumida (culpa in re ipsa) não é aceita, atualmente, no Direito Penal, tendo em vista que se trata de responsabilidade penal objetiva. A culpa não se presume, deve ser provada.

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