sexta-feira, 8 de maio de 2020

EC 106/2020: institui regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento da calamidade pública decorrente do coronavírus



Olá, amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada hoje mais uma emenda constitucional.

A EC 106/2020 institui regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento da calamidade pública nacional decorrente de pandemia.

Antes de explicar a novidade, gostaria de chamar atenção para duas peculiaridades da EC 106/2020:

1) Emenda constitucional avulsa
Trata-se de uma emenda constitucional que não modifica o texto da Constituição Federal de 1988. É uma emenda constitucional avulsa. Assim, a EC 106/2020 é uma norma constitucional não prevista no texto da Constituição Federal de 1988. Integra, contudo, o bloco de constitucionalidade. De forma bem simplificada, bloco de constitucionalidade significa que a Constituição pode ser formada não apenas pelos dispositivos que estão ali expressamente escritos, mas também por outras normas não presentes no texto, como, por exemplo, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (promulgada pelo Decreto 6.949/2009).
Vale ressaltar que não consiste em algo inédito. Isso porque a EC 91/2016, que disciplinou a “janela partidária”, também utilizou a mesma sistemática.

2) Vigência temporária
A EC 106/2020 tem vigência temporária.
O art. 11 da emenda prevê expressamente que a EC 106/2020 “ficará automaticamente revogada na data do encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Congresso Nacional.”

Veja abaixo um resumo da nova emenda:

Regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações (art. 1º da EC)
Durante a vigência do estado de calamidade pública nacional reconhecido pelo Congresso Nacional em razão da pandemia do coronavírus, a União adotará regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades dele decorrentes.
Esse regime extraordinário somente deverá ser adotado naquilo em que, em virtude da urgência, não for possível ser cumprido com o regime regular.
Obs: a situação de calamidade pública em razão da pandemia causada pelo coronavírus foi reconhecida pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 06/2020 e está prevista para durar até 31/12/2020.

Vejamos abaixo em que consiste esse regime extraordinário.

Processos simplificados de contratação (art. 2º da EC)
O Poder Executivo federal, no âmbito de suas competências, fica autorizado a adotar processos simplificados para a:
• contratação de pessoal, em caráter temporário e emergencial; e para a
• contratação de obras, serviços e compras.

Trata-se, portanto, de uma exceção constitucional e temporária da regra da licitação e do concurso público.

Vale ressaltar, no entanto, que esse processo simplificado de contratação deve assegurar, quando possível, competição e igualdade de condições a todos os concorrentes.

Esses processos simplificados somente poderão ser realizados com propósito exclusivo de enfrentamento do contexto da calamidade e de seus efeitos sociais e econômicos, no seu período de duração.

Critérios objetivos para distribuição de equipamentos e insumos de saúde
Quando a União for realizar a distribuição, para Estados e Municípios, dos equipamentos e insumos de saúde imprescindíveis ao enfrentamento da calamidade, deverá adotar critérios objetivos, devidamente publicados (art. 2º, parágrafo único).

A contratação temporária do art. 37, IX não precisará cumprir a exigência do § 1º do art. 169 da CF (art. 2º da EC)
Contratação temporária de excepcional interesse público
A CF/88 instituiu o “princípio do concurso público”, segundo o qual, em regra, a pessoa somente pode ser investida em cargo ou emprego público após ser aprovada em concurso público (art. 37, II).
Esse princípio, que na verdade é uma regra, possui exceções que são estabelecidas no próprio texto constitucional.
Assim, a CF/88 prevê situações em que o indivíduo poderá ser admitido no serviço público mesmo sem concurso. Uma dessas situações está prevista no art. 37, IX, da CF/88 (servidores temporários):
Art. 37 (...)
IX - a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público;

Prévia dotação orçamentária e autorização específica na LDO
O § 1º do art. 169 da CF/88 prevê o seguinte:
Art. 169. (...)
§ 1º A concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções ou alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos e entidades da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, só poderão ser feitas:
I - se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes;
II - se houver autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvadas as empresas públicas e as sociedades de economia mista.
(...)

Assim, qualquer gasto público com pessoal deve obrigatoriamente estar previsto na LDO.
Logo, a contratação por tempo determinado de que trata o art. 37, IX, em regra, também precisa respeitar essa exigência prevista no § 1º do art. 169 e estar prevista na LDO.

A EC 106/2020, contudo, excepciona essa regra e afirma que, durante o regime extraordinário, fica “dispensada a observância do § 1º do art. 169 da Constituição Federal na contratação de que trata o inciso IX do caput do art. 37 da Constituição Federal, limitada a dispensa às situações de que trata o referido inciso, sem prejuízo da tutela dos órgãos de controle.”

Vale ressaltar que essa dispensa somente é válida para contratações cujo propósito exclusivo seja o enfrentamento do contexto da calamidade e de seus efeitos sociais e econômicos, no seu período de duração.

Dispensa das limitações legais ao aumento de despesa e renúncia de receitas
Existem algumas limitações impostas nas leis para a realização de medidas governamentais que:
• gerem aumento de despesa; ou
• concedam incentivos ou benefícios tributários (renúncia de receita).

Durante o regime extraordinário, as proposições legislativas e os atos do Poder Executivo que tenham o propósito exclusivo de enfrentar a calamidade e suas consequências sociais e econômicas ficam dispensados da observância dessas limitações legais, desde que isso não implique em despesas permanentes.

É o que prevê, com uma confusa redação, o caput do art. 3º da EC 106/2020:
Art. 3º Desde que não impliquem despesa permanente, as proposições legislativas e os atos do Poder Executivo com propósito exclusivo de enfrentar a calamidade e suas consequências sociais e econômicas, com vigência e efeitos restritos à sua duração, ficam dispensados da observância das limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa e à concessão ou à ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita.

Permissão para que empresas com débitos na previdência contratem com o poder público ou recebam benefícios e incentivos
O § 3º do art. 195 da CF/88 prevê que a pessoa jurídica que estiver em débito com a Previdência Social:
• não pode celebrar contratos com o Poder Público (logo, também não pode participar de licitações); e
• não pode receber benefícios ou incentivos do Poder Público.

Confira a redação do texto constitucional:
Art. 195 (...) § 3º A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.

A EC 106/2020 trouxe uma exceção temporária para essa exigência e autorizou que, durante o período de calamidade decorrente do coronavírus, as pessoas jurídicas com débitos na previdência possam celebrar contratos com o poder público ou receber benefícios e incentivos:
Art. 3º (...)
Parágrafo único. Durante a vigência da calamidade pública nacional de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, não se aplica o disposto no § 3º do art. 195 da Constituição Federal.

Em 2020 não será necessário cumprir a “regra de ouro” do art. 167, III, da CF/88
O art. 167, III, da CF/88 proíbe que o governo realize operações de crédito (operações que gerem endividamento) em valores maiores do que as despesas de capital, salvo as exceções autorizadas pelo Poder Legislativo por maioria absoluta. Confira o dispositivo:
Art. 167. São vedados:
(...)
III - a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta;

O que são operações de crédito?
Operação de crédito é o “compromisso financeiro assumido em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão e aceite de título, aquisição financiada de bens, recebimento antecipado de valores provenientes da venda a termo de bens e serviços, arrendamento mercantil e outras operações assemelhadas, inclusive com o uso de derivativos financeiros.” (art. 29, III, da LC 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal).

O que são despesas de capital?
Despesas de capital são gastos produtivos da Administração Pública, considerando que são feitos para aquisição ou construção de bens de capital que contribuam para a formação de novos bens. São, portanto, gastos que geram um crescimento do patrimônio público (VIEIRA, Danilo. Direito Financeiro. 2ª ed., Salvador: Juspodivm, 2018, p. 131).
Assim, em palavras mais simples, o art. 167, III, proíbe o governo de realizar operações de crédito (“contrair dívidas”) que excedam o valor de suas despesas de capital.

Regra de ouro
A previsão do art. 167, III, da CF/88 é conhecida pela doutrina como “regra de ouro” da responsabilidade fiscal. Isso porque ela limita os gastos públicos evitando que o poder público se endivide mais do que o valor que ele gasta com despesas produtivas (despesas de capital). Nesse sentido: PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Constituição Federal comentada. São Paulo, p. 701.

Em 2020 não será necessário cumprir a “regra de ouro”
O art. 4º da EC 106/2020 afirma que no exercício financeiro (“ano civil”) da calamidade pública (2020) não será necessário cumprir o inciso III do art. 167 da CF/88. Veja:
Art. 4º Será dispensada, durante a integralidade do exercício financeiro em que vigore a calamidade pública nacional de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, a observância do inciso III do caput do art. 167 da Constituição Federal.
Parágrafo único. O Ministério da Economia publicará, a cada 30 (trinta) dias, relatório com os valores e o custo das operações de crédito realizadas no período de vigência do estado de calamidade pública nacional de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional.

Assim, na prática, esse art. 4º autoriza que o governo gaste mais com despesas de custeio, como despesas de pessoal (exs: médicos, enfermeiros, fisioterapeutas) e materiais de consumo (exs: remédios, soros, EPIs, alimento etc), tendo em vista que são os gastos atualmente necessários nesse período de pandemia.

Programação orçamentária específica e prestação de contas avaliada separadamente
Art. 5º As autorizações de despesas relacionadas ao enfrentamento da calamidade pública nacional de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional e de seus efeitos sociais e econômicos deverão:
I - constar de programações orçamentárias específicas ou contar com marcadores que as identifiquem; e
II - ser separadamente avaliadas na prestação de contas do Presidente da República e evidenciadas, até 30 (trinta) dias após o encerramento de cada bimestre, no relatório a que se refere o § 3º do art. 165 da Constituição Federal.
Parágrafo único. Decreto do Presidente da República, editado até 15 (quinze) dias após a entrada em vigor desta Emenda Constitucional, disporá sobre a forma de identificação das autorizações de que trata o caput deste artigo, incluídas as anteriores à vigência desta Emenda Constitucional.

Recursos das operações de crédito poderão ser utilizados para pagamento dos juros e encargos
Durante a vigência da calamidade pública nacional, os recursos decorrentes de operações de crédito realizadas para o refinanciamento da dívida mobiliária poderão ser utilizados também para o pagamento de seus juros e encargos (art. 6º da EC).

Autorização para o Banco Central comprar e vender títulos de emissão do Tesouro e outros ativos
Art. 7º O Banco Central do Brasil, limitado ao enfrentamento da calamidade pública nacional de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, e com vigência e efeitos restritos ao período de sua duração, fica autorizado a comprar e a vender:
I - títulos de emissão do Tesouro Nacional, nos mercados secundários local e internacional; e
II - os ativos, em mercados secundários nacionais no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos, desde que, no momento da compra, tenham classificação em categoria de risco de crédito no mercado local equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos 1 (uma) das 3 (três) maiores agências internacionais de classificação de risco, e preço de referência publicado por entidade do mercado financeiro acreditada pelo Banco Central do Brasil.
§ 1º Respeitadas as condições previstas no inciso II do caput deste artigo, será dada preferência à aquisição de títulos emitidos por microempresas e por pequenas e médias empresas.
§ 2º O Banco Central do Brasil fará publicar diariamente as operações realizadas, de forma individualizada, com todas as respectivas informações, inclusive as condições financeiras e econômicas das operações, como taxas de juros pactuadas, valores envolvidos e prazos.
§ 3º O Presidente do Banco Central do Brasil prestará contas ao Congresso Nacional, a cada 30 (trinta) dias, do conjunto das operações previstas neste artigo, sem prejuízo do previsto no § 2º deste artigo.
§ 4º A alienação de ativos adquiridos pelo Banco Central do Brasil, na forma deste artigo, poderá dar-se em data posterior à vigência do estado de calamidade pública nacional de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, se assim justificar o interesse público.

Art. 8º Durante a vigência desta Emenda Constitucional, o Banco Central do Brasil editará regulamentação sobre exigências de contrapartidas ao comprar ativos de instituições financeiras em conformidade com a previsão do inciso II do caput do art. 7º desta Emenda Constitucional, em especial a vedação de:
I - pagar juros sobre o capital próprio e dividendos acima do mínimo obrigatório estabelecido em lei ou no estatuto social vigente na data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional;
II - aumentar a remuneração, fixa ou variável, de diretores e membros do conselho de administração, no caso das sociedades anônimas, e dos administradores, no caso de sociedades limitadas.
Parágrafo único. A remuneração variável referida no inciso II do caput deste artigo inclui bônus, participação nos lucros e quaisquer parcelas de remuneração diferidas e outros incentivos remuneratórios associados ao desempenho.

Congresso Nacional pode sustar decisões do Executivo que descumprirem a EC 106/2020
Art. 9º Em caso de irregularidade ou de descumprimento dos limites desta Emenda Constitucional, o Congresso Nacional poderá sustar, por decreto legislativo, qualquer decisão de órgão ou entidade do Poder Executivo relacionada às medidas autorizadas por esta Emenda Constitucional.

Confirmação dos atos já praticados anteriormente pelo Executivo e que sejam compatíveis com a EC 106/2020
Art. 10. Ficam convalidados os atos de gestão praticados a partir de 20 de março de 2020, desde que compatíveis com o teor desta Emenda Constitucional.

Vigência temporária
A EC 106/2020 entrou em vigor na data de sua publicação (08/05/2020) e ficará automaticamente revogada na data do encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Congresso Nacional.
A situação de calamidade pública em razão da pandemia causada pelo coronavírus reconhecida pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo 06/2020) está prevista para durar até 31/12/2020.




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