terça-feira, 22 de setembro de 2020

Não há condenação em honorários advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica

 

Princípio da autonomia patrimonial

As pessoas jurídicas são sujeitos de direitos. Isso significa que possuem personalidade jurídica distinta de seus instituidores. Assim, por exemplo, não é porque o sócio morreu que, obrigatoriamente, a pessoa jurídica será extinta.

De igual modo, o patrimônio da pessoa jurídica é diferente do patrimônio de seus sócios.

Ex.1: se uma sociedade empresária possui um veículo, esse automóvel não pertence aos sócios, mas sim à própria pessoa jurídica.

Ex.2: se uma sociedade empresária possui uma dívida, este débito deverá ser pago com os bens da própria sociedade, não podendo, para isso, em regra, ser utilizado o patrimônio pessoal dos sócios.

Vigora, portanto, o princípio da autonomia patrimonial entre os bens do sócio e da pessoa jurídica.

 

Desconsideração da personalidade jurídica

O ordenamento jurídico prevê algumas situações em que essa autonomia patrimonial pode ser afastada.

Tais hipóteses são chamadas de “desconsideração da personalidade jurídica” (disregard of legal entity ou teoria do superamento da personalidade jurídica).

Quando se aplica a desconsideração da personalidade jurídica, os bens particulares dos administradores ou sócios são utilizados para pagar dívidas da pessoa jurídica.

 

Desconsideração da personalidade jurídica no CC-2002

A desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito das relações civis gerais, está disciplinada no art. 50 do CC.

 

Regras processuais sobre a desconsideração da personalidade jurídica

O CPC/2015, de forma inovadora, trouxe regras para disciplinar o procedimento para a decretação ou não da desconsideração da personalidade jurídica no processo.

O Código previu que essa desconsideração poderá ser postulada de duas formas:

a) em caráter principal, quando o pedido é formulado já na petição inicial;

b) em caráter incidental, quando o pedido é feito no curso do processo.

 

Desconsideração requerida na inicial

Desconsideração pedida na petição inicial

O autor, ao ingressar com a ação contra o réu, já requer, na petição inicial, a desconsideração da personalidade jurídica.

Neste caso, não será necessária a instauração de um incidente.

 

Se o pedido for para desconsideração direta

Isso significa que a ação é proposta contra a “empresa” (pessoa jurídica), mas o autor já pede, desde logo, que seja afastada a autonomia patrimonial e se atinjam os bens dos sócios.

Logo, a ação é proposta contra a pessoa jurídica e contra os sócios.

O autor pedirá a citação:

• da pessoa jurídica, afirmando que ela é a devedora (a pessoa jurídica é que é a devedora “originária”); e

• dos sócios, argumentando que eles, apesar de não serem devedores da obrigação (não participaram da relação obrigacional), são responsáveis pelo pagamento do débito, ou seja, pede-se para atingir o patrimônio pessoal dos sócios, mesmo eles não tendo participado da relação obrigacional (ex: quem assinou o contrato foi a pessoa jurídica – e não as pessoas físicas).

Veja algumas importantes observações da doutrina:

“A inicial deve deixar claro que o débito é da empresa e que a pretensão de cobrança está direcionada contra ela. O que se pretende em relação ao sócio não é a sua condenação ao pagamento do débito, mas o reconhecimento de que ele é responsável patrimonial, uma vez que estão preenchidos os requisitos do direito material para a desconsideração da personalidade jurídica. Serão dois os pedidos formulados na inicial: o condenatório, de cobrança, dirigido contra o devedor; e o de extensão da responsabilidade patrimonial, direcionado contra o sócio e fundado no preenchimento dos requisitos do art. 50 do Código Civil ou do art. 28 do CDC.

(...)

O sócio será citado, na condição de corréu, para oferecer resposta no prazo de 15 dias (observado o art. 229, do CPC). Em sua contestação, deverá defender-se do pedido contra ele direcionado, isto é, o de extensão da responsabilidade patrimonial pelo débito da empresa.” (GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Direito Processual Civil Esquematizado. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 257).

 

Se o pedido na Inicial for para desconsideração “inversa”

Isso significa que a ação é proposta contra um(uns) do(s) sócio(s), mas o autor já pede, desde logo, que seja afastada a autonomia patrimonial e se atinjam os bens da pessoa jurídica.

Logo, a ação é proposta contra o sócio e contra a pessoa jurídica.

O autor pedirá a citação:

• do sócio (que era o devedor “originário”); e

• da pessoa jurídica, sob o argumento de que ela, mesmo não tendo participado da relação de direito material, deverá responder pelo débito.

 

Não é necessária intervenção de terceiros

Vale esclarecer que o sócio (no caso de desconsideração direta) ou a pessoa jurídica (desconsideração inversa) não serão considerados “terceiros”, mas sim réus, tendo sido citados desde o início.

Logo, a desconsideração da personalidade jurídica pedida na petição inicial não acarreta a intervenção de terceiros.

 

O que se alega na contestação?

Enunciado 248-FPPC: Quando a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, incumbe ao sócio ou à pessoa jurídica, na contestação, impugnar não somente a própria desconsideração, mas também os demais pontos da causa.

 

Pedido decidido na sentença

As pessoas citadas deverão apresentar contestação refutando os argumentos do autor e, ao final, na própria sentença, o juiz decidirá se é procedente ou não o pedido de desconsideração.

Trata-se, portanto, de um dos pedidos da ação.

Se o juiz acolher, significa que, além de condenar a pessoa jurídica reconhecendo que ela é devedora da relação jurídica de direito material, também condenará o(s) sócio(s) como responsável(eis) pelo débito da pessoa jurídica.

Vale ressaltar que o pedido de desconsideração formulado na petição inicial não acarreta a suspensão do processo.

 

Recurso

O sócio ou pessoa jurídica atingidos pela desconsideração, caso não se conformem com a decisão, deverá interpor apelação.

Enunciado 390 FPPC: Resolvida a desconsideração da personalidade jurídica na sentença, caberá apelação.

 

Previsão no CPC/2015

O Código dedicou um único dispositivo para tratar sobre o tema:

Art. 134 (...)

§ 2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.

 

þ (Analista Judiciário TRF2 2019 FCC) Renato ajuizou ação de cobrança contra ZWXY Construções Ltda., requerendo, na própria petição inicial, a desconsideração da sua personalidade jurídica, com a demonstração preliminar do preenchimento dos pressupostos legais específicos. Nesse caso, de acordo com o Código de Processo Civil, dispensa-se a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e o processo não será suspenso. (certo)

 

Incidente de desconsideração da personalidade da pessoa jurídica

Processo em curso

Algumas vezes, o processo já está em curso quando, então, o credor percebe que não irá conseguir receber o valor pretendido do devedor e que estão presentes os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica.

Neste caso, o pedido de desconsideração será formulado como um incidente do processo.

Haverá uma intervenção de terceiros provocada, considerando que o credor pedirá para trazer à lide uma pessoa que originalmente não figurava no polo passivo.

 

Quem pode iniciar o incidente

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será sempre instaurado a pedido.

Este pedido poderá ser feito:

• pela parte; ou

• pelo Ministério Público (quando lhe couber intervir no processo).

Obs: o juiz não pode instaurar de ofício.

 

Pressupostos

O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.

Esses pressupostos estão previstos no “direito material” (art. 50 do Código Civil, art. 28 do CDC, art. 34 da Lei nº 12.529/2011 etc.).

þ (Analista Judiciário TRF4 2019 FCC) Tereza ajuizou ação de indenização contra a empresa “XPTO Comércio de Produtos de Informática Ltda”. Ainda na fase instrutória do processo, requereu a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Nesse caso, o juiz deverá deferir o pedido, suspendendo o processo, desde que o requerimento tenha demonstrado o preenchimento dos pressupostos legais específicos para a desconsideração da personalidade jurídica. (certo)

 

Admitido em todas as espécies de processo

O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

ý (Analista Ministerial MPC/PA 2019 CEBRASPE) Com vistas a suspender episodicamente a eficácia do ato constitutivo de determinada empresa, João, credor de um dos sócios do empreendimento, ajuizou incidente de desconsideração da personalidade jurídica para tentar atingir a cota-parte do sócio devedor. Caso a ação de cobrança de João esteja em fase de cumprimento de sentença, o juiz deverá inadmitir o incidente. (errado)

Importante destacar que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se também a processos de competência dos juizados especiais (art. 1.062 do CPC/2015)

Enunciado 247 FPPC: Aplica-se o incidente de desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar.

 

Incidente instaurado originariamente perante o Tribunal

Vale ressaltar que o incidente de desconsideração pode ser pedido tanto em processos que tramitam na 1ª instância como também pode ser requerido originalmente no Tribunal.

Se a desconsideração for pedida em processo que está tramitando no Tribunal, ela será decidida monocraticamente pelo Relator:

Art. 932.  Incumbe ao relator:

(...)

VI - decidir o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, quando este for instaurado originariamente perante o tribunal;

 

Suspensão do processo

A instauração do incidente suspenderá o processo.

Assim, com o pedido de instauração, suspende-se o processo, suspensão que perdurará até a decisão que resolver o incidente.

 

Procedimento

1) A instauração do incidente é pedida pela parte ou pelo Ministério Público.

2) O juiz admite a instauração e determina a suspensão do processo.

3) No caso de desconsideração direta, será realizada a citação do sócio. Em se tratando de desconsideração inversa, será determinada a citação da pessoa jurídica.

4) Depois da citação, o sócio ou a pessoa jurídica terão 15 dias para se manifestar e requerer as provas que entender necessárias.

5) Havendo necessidade, será realizada instrução probatória (oitiva de testemunhas, perícia etc.).

6) Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

 

A instauração do incidente de desconsideração gera, por si só, a necessidade de oitiva do MP?

NÃO. É desnecessária a intervenção do Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica, no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, salvo nos casos em que deva intervir obrigatoriamente, previstos no art. 178 do CPC/2015 (Enunciado 123 do FPPC).

 

Recurso

• Se o incidente tramitou em 1ª instância (pedido foi decidido pelo juiz de 1º grau): a parte prejudicada poderá interpor agravo de instrumento (art. 1.015, IV).

• Se o incidente tramitou originalmente no Tribunal (pedido foi decidido monocraticamente pelo Relator): cabe agravo interno (art. 136, parágrafo único).

 

Acolhimento da desconsideração e alienação ou oneração de bens

Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens ocorrida em fraude de execução será ineficaz em relação ao requerente (art. 137).

 

Incidente de desconsideração e honorários advocatícios

Imagine a seguinte situação hipotética:

João ajuizou ação de cobrança contra a empresa FS Ltda.

A sentença julgou o pedido procedente, condenando a ré a pagar R$ 100 mil.

Em cumprimento de sentença, não foram localizados bens penhoráveis da empresa.

Diante disso, João requereu a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica a fim de que fossem alcançados os bens pessoais dos sócios da empresa Fernando e Sandra.

Os sócios foram citados e se manifestaram.

Foram ouvidas testemunhas.

Concluída a instrução, o juiz entendeu que as alegações de João não foram provadas e rejeitou o pedido de desconsideração.

 

Fernando e Sandra tiveram que contratar advogado para se defenderem no incidente. Indaga-se: João, que foi sucumbente no incidente, será condenado a pagar honorários advocatícios?

NÃO. Isso porque não há condenação em honorários advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Vamos entender.

O art. 85 do CPC/2015, ao tratar sobre os honorários advocatícios, afirma:

Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor.

 

O caput do art. 136 do CPC, por sua vez, prevê expressamente que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica é resolvido por decisão interlocutória, e não sentença:

Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.

 

No § 1º do art. 85, o legislador excepcionou alguns casos em que são devidos honorários, embora não se trate de sentença. Assim, quando o legislador quis, previu honorários para algumas decisões interlocutórias:

Art. 85 (...)

§ 1º São devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente.

 

Nesse rol não está incluído o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Logo, não cabe a condenação em honorários advocatícios.

 

Em suma:

Não há condenação em honorários advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Em regra, não é cabível a condenação em honorários advocatícios em qualquer incidente processual, ressalvados os casos excepcionais.

Tratando-se de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, não cabe a condenação nos ônus sucumbenciais em razão da ausência de previsão legal. Logo, é irrelevante apurar quem deu causa ou foi sucumbente no julgamento final do incidente.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.845.536-SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. Acd. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 26/05/2020 (Info 673). 




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