segunda-feira, 24 de maio de 2021

Entenda a decisão do STF que anulou os processos criminais envolvendo o ex-Presidente Lula na 13ª Vara Federal de Curitiba

 

O ex-Presidente Lula responde a quatro ações penais que se iniciaram na 13ª Vara Federal de Curitiba:

· caso “Triplex do Guarujá”;

· caso “Sítio de Atibaia”;

· caso “sede do Instituto Lula”; e

· caso “doações ao Instituto Lula”.

Vale ressaltar que, no primeiro processo, o ex-Presidente havia sido condenado pelo então Juiz Sérgio Moro, em julho de 2017, sentença mantida pelo TRF4 e pelo STJ. A condenação ainda não havia transitado em julgado porque se aguardava o julgamento de recurso extraordinário pelo STF.

Quanto ao segundo processo, a denúncia foi recebida pelo então Juiz Federal Sérgio Moro, em 2017. No entanto, depois de pedir exoneração para ocupar o cargo de Ministro da Justiça, quem assumiu a condução do feito foi a Juíza Federal Gabriela Hardt, que proferiu sentença condenatória em 2019. Essa sentença foi mantida pelo TRF4 e ainda aguardava o julgamento dos recursos especial e extraordinário.

As duas outras ações penais ainda estavam em 1ª instância e não tinham sido sentenciadas.

Desse modo, ainda não havia nenhuma condenação transitada em julgado.

Vale ressaltar que há também outras quatro ações penais que tramitam na Justiça Federal do Distrito Federal e de São Paulo, no entanto, elas não interessam para a presente explicação.

 

HC 193726

Este habeas corpus foi impetrado pela defesa do ex-Presidente Lula no STF alegando que os quatro processos acima não poderiam estar tramitando ou terem tramitado na 13ª Vara Federal de Curitiba porque este juízo seria incompetente para julgá-los.

A 13ª Vara Federal de Curitiba seria competente para julgar os processos da chamada “Operação Lava Jato”, no entanto, os fatos acima apurados não teriam relação direta com a mencionada operação policial.

No dia 08/03/2021, o Min. Relator Edson Fachin, monocraticamente, concedeu a ordem de habeas corpus para:

· declarar a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o processo e julgamento das quatro ações penais acima;

· afirmar que a competência para julgar essas ações penais é da Seção Judiciária do Distrito Federal;

· declarar a nulidade dos atos decisórios praticados nas respectivas ações penais, inclusive os recebimentos das denúncias, devendo o juízo competente (Juízo da Seção Judiciária do DF) decidir acerca da possibilidade da convalidação dos atos instrutórios.

Vale ressaltar um ponto importante: havia outros habeas corpus que tramitavam na 2ª Turma do STF nos quais a defesa de Lula alegava a nulidade da condenação sob o argumento de que Sérgio Moro teria revelado suspeição na condução dos processos (ex: HC 164.493). Na decisão monocrática, o Min. Fachin afirmou que o julgamento desses habeas corpus ficaria prejudicado porque, já que os atos decisórios teriam sido anulados por incompetência absoluta, não haveria mais utilidade em se perquirir eventual suspeição do então magistrado.

 

Julgamento do HC 164493

No dia 23/03/2021, ou seja, depois da decisão monocrática do Min. Fachin, a 2ª Turma do STF se reuniu para concluir o julgamento do HC 164.493 e decidiu que:

· mesmo com a decisão monocrática que reconheceu a incompetência da 13ª Vara Federal, era necessário examinar a arguição de suspeição do ex-Juiz Sérgio Moro. Logo, a decisão monocrática não teria o condão de prejudicar a análise do HC 164.493;

· quanto ao mérito, a 2ª Turma reconheceu a suspeição de Sérgio Moro.

Na proclamação do resultado, ficou assim consignado:

“No mérito, a Turma, por maioria, concedeu a ordem em habeas corpus, determinando a anulação de todos os atos decisórios praticados pelo magistrado no âmbito da Ação Penal n. 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, incluindo os atos praticados na fase pré-processual, nos termos do voto do Ministro Gilmar Mendes, redator para acórdão, vencidos os Ministros Edson Fachin (Relator) e Nunes Marques.”

 

Agravos regimentais

O Ministério Público e a defesa de Lula interpuseram recurso contra a decisão monocrática de Fachin, proferida em 08/03/2021.

O PGR sustentou que a 13ª Vara Federal de Curitiba teria, sim, competência para julgar os processos.

A defesa alegou que o Ministro não deveria ter declarado a prejudicialidade dos habeas corpus nos quais se discutia a suspeição de Moro. Em outras palavras, a defesa afirmou que, mesmo com a decisão de incompetência, deveria ser reconhecida a suspeição do ex-magistrado, o que estava sendo discutido nos outros writs.

 

Afetação para o Plenário

O HC 193726, no qual o Min. Fachin declarou a incompetência da 13ª Vara, estava tramitando na 2ª Turma do STF. Assim, como ele proferiu uma decisão monocrática e as partes recorreram, em regra, tais recursos deveriam ser apreciados pela 2ª Turma do STF.

Ocorre que o Ministro Fachin decidiu afetar o julgamento desses recursos para o Plenário. Esse ponto também é importante porque a defesa questionou essa afetação e veremos o que o STF decidiu.

Depois desse longo, mas simplificado, relatório do caso, vejamos o que o Pleno do STF decidiu ao julgar os recursos interpostos pelo PGR e pela defesa de Lula.

 

Primeira pergunta: o Min. Fachin poderia ter afetado esse julgamento ao Plenário?

SIM.

A afetação de feitos a julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal é atribuição discricionária do relator.

STF. Plenário. HC 193726 AgR-AgR/PR e HC 193726 AgR/PR, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em 14/4/2021 (Info 1014).

 

Essa afetação é autorizada pelo Regimento Interno do STF:

Art. 6º Também compete ao Plenário:

(...)

II - julgar:

(...)

c) os habeas corpus remetidos ao seu julgamento pelo Relator;

 

Art. 21. São atribuições do Relator:

(...)

XI - remeter habeas corpus ou recurso de habeas corpus ao julgamento do Plenário;

 

Art. 22. O Relator submeterá o feito ao julgamento do Plenário, quando houver relevante arguição de inconstitucionalidade ainda não decidida.

Parágrafo único. Poderá o Relator proceder na forma deste artigo:

a) quando houver matérias em que divirjam as Turmas entre si ou alguma delas em relação ao Plenário.

b) quando em razão da relevância da questão jurídica ou da necessidade de prevenir divergência entre as Turmas, convier pronunciamento do Plenário.

 

Vale ressaltar, inclusive, que essa decisão de afetação é irrecorrível:

Art. 305. Não caberá recurso da deliberação da Turma ou do Relator que remeter o processo ao julgamento do Plenário, ou que determinar, em agravo de instrumento, o processamento de recurso denegado ou procrastinado.

 

Com a afetação, um julgamento que seria feito pela Turma passa à deliberação do Tribunal Pleno.

A Constituição Federal atribui legitimidade ao Plenário para julgamento de quaisquer causas inseridas na competência do STF.

 

Um outro aspecto interessante discutido foi quanto à legitimidade para o MPF recorrer. Isso porque a decisão foi proferida em um habeas corpus no qual o Parquet atuou como custos legis. Mesmo assim, ele tinha legitimidade para interpor o agravo regimental?

SIM.

O Ministério Público Federal, quando atua perante o STF, por intermédio da Procuradoria-Geral da República, mesmo na qualidade de “custos legis”, detém legitimidade para a interposição de agravo regimental contra decisões monocráticas proferidas pelos ministros relatores.

STF. Plenário. HC 193726 AgR-AgR/PR e HC 193726 AgR/PR, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em 14/4/2021 (Info 1014).

 

A legitimidade para o MP recorrer mesmo quando atua como custos legis está prevista expressamente no art. 179, II, do CPC:

Art. 179.  Nos casos de intervenção como fiscal da ordem jurídica, o Ministério Público:

(...)

II - poderá produzir provas, requerer as medidas processuais pertinentes e recorrer.

 

Essa legitimidade é reforçada no art. 996 do mesmo diploma legal:

Art. 996.  O recurso pode ser interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público, como parte ou como fiscal da ordem jurídica.

 

Mas se trata de processo penal... pode-se invocar o CPC para o presente caso? Sim, por força da norma integrativa que se extrai do art. 3º do CPP:

Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.

 

O Regimento Interno do STF, ao tratar sobre o agravo regimental, prevê que este recurso é cabível na hipótese de a decisão monocrática “causar prejuízo ao direito da parte”. Apesar de falar somente em “parte”, existem inúmeros julgados do STF que admitem, em sede de habeas corpus, que o Ministério Público possa interpor agravo regimental contra decisões monocráticas.

 

Para o Plenário do STF, foi correta a decisão do Min. Fachin que reconheceu a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgamento das ações penais envolvendo Lula?

SIM.

No âmbito da “Operação Lava Jato”, a competência da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba é restrita aos crimes praticados de forma direta em detrimento apenas da Petrobras S/A.

STF. Plenário. HC 193726 AgR-AgR/PR e HC 193726 AgR/PR, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em 14/4/2021 (Info 1014).

 

Vale ressaltar que, mesmo antes desse caso, o STF já estava decidindo dessa maneira:

(...)

12. Os ilícitos em apuração nos procedimentos encaminhados pelo juízo da 13ª Vara da Seção Judiciária do Paraná se referem, dentre outros fatos, a repasses de valores por empresa prestadora de serviços de informática na gestão de empréstimos consignados de servidores federais, no âmbito do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, com a utilização, em tese, de notas fiscais falsas e de empresas de fachada.

13. Não há relação de dependência entre a apuração desses fatos e a investigação de fraudes e desvios de recursos no âmbito da Petrobras, a afastar a existência de conexão (art. 76, CPP) e de continência (art. 77, CPP) que pudessem ensejar o simultaneus processus, ainda que os esquemas fraudulentos possam eventualmente ter um operador comum e destinação semelhante (repasse de recursos a partido político ou candidato a cargo eletivo).

14. O fato de a polícia judiciária ou o Ministério Público Federal denominarem de “fases da operação Lava-jato” uma sequência de investigações sobre crimes diversos - ainda que sua gênese seja a obtenção de recursos escusos para a obtenção de vantagens pessoais e financiamento de partidos políticos ou candidaturas - não se sobrepõe às normas disciplinadoras da competência.

15. Nenhum órgão jurisdicional pode-se arvorar de juízo universal de todo e qualquer crime relacionado a desvio de verbas para fins político-partidários, à revelia das regras de competência.

(...)

STF. Plenário. Inq 4130 QO, Rel. Dias Toffoli, julgado em 23/09/2015.

 

Para o STF, no caso concreto, ficou demonstrado que as condutas atribuídas ao ex-Presidente Lula não foram diretamente direcionadas a contratos específicos celebrados entre o Grupo OAS e a Petrobras S/A. Logo, não há conexão que autorize a modificação da competência jurisdicional.

Desse modo, as condutas apuradas não têm relação direta com os ilícitos praticados em detrimento da Petrobras S/A, razão pela qual não há que se falar em competência da 13ª Vara Federal de Curitiba.

Essa mesma constatação se observa nos quatro processos que tramitaram contra Lula na 13ª Vara.

 

Teoria do juízo aparente

Um dos argumentos do Ministério Público foi o de que no momento em que as decisões foram proferidas no processo (decretação de medidas cautelares, recebimento da denúncia, sentença condenatória etc.), haveria o entendimento majoritário no sentido de que o juízo da 13ª Vara seria competente. Logo, com base na teoria do juízo aparente, seria possível convalidar todos os atos judiciais praticados.

Esse argumento foi acolhido pelo STF?

Vamos entender isso com calma.

Esse argumento, em tese, poderia ter sido acolhido. Isso porque o STF entende que:

A superveniência de circunstâncias fáticas aptas a alterar a competência da autoridade judicial, até então desconhecidas, autoriza a preservação dos atos praticados por juízo aparentemente competente em razão do quadro fático subjacente no momento em que requerida a prestação jurisdicional.

STF. Plenário. HC 193726 AgR-AgR/PR e HC 193726 AgR/PR, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em 14/4/2021 (Info 1014).

 

No entanto, no caso concreto, o STF afirmou que, tanto o MP como o juízo, desde o início do processo, já sabiam, com base nas outras decisões da Corte, que a 13ª Vara Federal não seria competente para julgar a causa.

Em 14/09/2016, foi proposta a denúncia referente ao primeiro processo (caso “Triplex do Guarujá”). Nessa época, segundo o STF, já era do conhecimento do Ministério Público Federal, bem como do Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, que os fatos denunciados não diziam respeito a delitos praticados direta e exclusivamente em detrimento da Petrobras S/A, sendo certo que o primeiro precedente a reduzir a competência daquele juízo foi proferido em 23.9.2015 (Inq 4.130 QO), motivo pelo qual a “teoria do juízo aparente” não se aplica à hipótese.

 

Aplicação do art. 64, § 4º do CPC

A Procuradoria-Geral da República pediu a aplicação, ao caso, da norma prevista no art. 64, § 4º, do CPC:

Art. 64.  A incompetência, absoluta ou relativa, será alegada como questão preliminar de contestação.

(...)

§ 4º Salvo decisão judicial em sentido contrário, conservar-se-ão os efeitos de decisão proferida pelo juízo incompetente até que outra seja proferida, se for o caso, pelo juízo competente.

 

O STF não concordou. Isso porque o CPP possui regra própria e específica no art. 567 do CPP, que estabelece a sanção de nulidade aos atos decisórios praticados por juízo incompetente:

Art. 567.  A incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente.

 

Dispositivo

Com base nesse entendimento, o Plenário do STF, por maioria, negou provimento aos agravos regimentais interpostos pela defesa e pelo Ministério Público.

 

No fim das contas, o que aconteceu com esses quatro processos criminais?

Eles foram remetidos para a Justiça Federal do Distrito Federal e lá o Juiz Federal irá decidir se recebe a denúncia e, em caso positivo, poderá convalidar os atos instrutórios já realizados na 13ª Vara Federal de Curitiba, devendo, ao final da instrução proferir nova sentença, que não está vinculada ao que já havia sido decidido anteriormente.


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