Dizer o Direito

domingo, 16 de novembro de 2025

Para analisar se o ANPP é possível, deve-se considerar a pena mínima prevista em lei, usando a menor fração das causas de aumento e a maior das atenuantes; não se pode usar estimativas de pena futura, e a continuidade delitiva não impede o acordo se esse cálculo ficar abaixo de 4 anos

Imagine a seguinte situação hipotética:

João era servidor público e, no exercício de sua função, exigiu vantagem indevida de um comerciante para não aplicar uma multa.

A conduta se repetiu em outra ocasião, com o mesmo comerciante e pelo mesmo motivo.

A situação foi descoberta e foi instaurado inquérito policial para investigar João pela prática do crime de corrupção passiva majorada (art. 317, §1º, do CP), por duas vezes, em continuidade delitiva (art. 71 do CP):

Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

§ 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

(...)

 

Crime continuado

Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

Parágrafo único - Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.

 

A defesa pleiteou a celebração de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) argumentando que o delito, embora praticado em continuidade delitiva, possuía pena mínima em abstrato inferior a 4 anos, o que atenderia ao requisito objetivo do art. 28-A do CPP:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.

(...)

 

O Promotor de Justiça se manifestou pelo não cabimento do ANPP, sob o argumento de que a continuidade delitiva e a majorante do §1º do art. 317 elevariam a pena mínima acima do limite legal exigido para o ANPP. Para o MP, a soma das frações levaria a uma pena hipotética superior a 4 anos, o que tornaria João inelegível ao acordo.

Em outras palavras, o MP disse que a incidência das majorantes (corrupção passiva majorada – art. 317, § 1º e continuidade delitiva – art. 71) elevava a pena mínima para além do limite legal exigido pelo art. 28-A do CPP, tornando inviável o acordo.

A defesa contra-argumentou sustentando que a negativa do Promotor foi baseada em projeções de dosimetria (“pena hipotética”), o que seria incompatível com a interpretação correta do art. 28-A do CPP.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa ou do MP?

Da defesa.

Houve empate na votação da 5ª Turma do STJ e, portanto, prevaleceu o entendimento mais favorável ao acusado.

O caput do art. 28-A do CPP exige “pena mínima inferior a 4 (quatro) anos”. Como isso deve ser entendido? A expressão diz respeito à pena mínima prevista em abstrato para o tipo penal, ou seja, à pena mínima legalmente cominada.

A pena mínima em abstrato, utilizada para aferir se o crime permite o ANPP, deve ser calculada levando em conta as frações mínimas das causas de aumento (majorantes) e as frações máximas das causas de diminuição (atenuantes). Isso significa que, para verificar se a pena mínima é inferior a 4 anos (requisito objetivo do acordo) deve-se adotar o menor patamar possível dentro dos limites legais.

O objetivo é garantir previsibilidade, segurança jurídica e coerência com a finalidade despenalizadora do instituto. Essa interpretação evita que a análise de elegibilidade se transforme numa simulação de dosimetria concreta, o que seria incompatível com a fase pré-processual.

Se se admitisse o cálculo “em perspectiva”, como sustentou o Ministério Público, isso equivaleria a reviver a extinta “prescrição em perspectiva”, rejeitada de forma categórica pela jurisprudência consolidada na Súmula 438 do STJ:

Súmula 438-STJ: É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal.

 

A interpretação pretendida pelo MP permitiria que penas hipotéticas servissem de parâmetro decisório, o que fragiliza a segurança jurídica e abre margem para excessiva discricionariedade.

Portanto, a interpretação que melhor se coaduna com o texto legal e com a lógica do sistema penal é aquela que exige que a elegibilidade ao ANPP seja analisada com base na pena mínima em abstrato, resguardando-se, para a fase de julgamento, a liberdade do juiz para dosimetria concreta da pena e valoração dos elementos do caso.

O STJ também reconheceu que a continuidade delitiva não impede a celebração do ANPP, desde que, mesmo somadas as penas mínimas com o acréscimo de um sexto (fração mínima prevista para a continuidade), o resultado não ultrapasse o limite de 4 anos.

 

A continuidade delitiva não está prevista como impedimento para o ANPP no art. 28-A, §2º, II, do CPP, que menciona apenas condutas habituais, reiteradas ou profissionais:

Art. 28-A (...) § 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses: (...) II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas.

A inclusão da continuidade delitiva como óbice ao ANPP extrapola os limites da norma, violando o princípio da legalidade.

STJ. 5ª Turma. AREsp 2.406.856-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 8/10/2024 (Info 829).

 

Mas e o § 1º do art. 28-A do CPP?

O § 1º do art. 28-A do CPP afirma que: “para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e de diminuição aplicáveis ao caso concreto.”

Esse dispositivo, no entanto, requer interpretação sistemática e teleológica.

Por se tratar de um requisito objetivo de admissibilidade, a norma não autoriza que o exame preliminar se transforme em antecipação da dosimetria da pena. Ao contrário, deve-se adotar como parâmetro inicial a pena mínima em abstrato, aplicando-se, no que tange às majorantes, a fração mínima legal pertinente. Essa interpretação resguarda a delimitação normativa do critério de admissibilidade e preserva a separação de funções entre a fase de seleção do instrumento despenalizador e a fase de individualização da pena.

A jurisprudência relativa ao sursis processual consagrou raciocínio análogo. Embora a Lei nº 9.099/1995 seja omissa quanto à continuidade delitiva, consolidou-se o entendimento de que, para a aferição da elegibilidade ao benefício, procede-se à soma da pena mínima da infração mais grave com o acréscimo de 1/6. Nesse sentido, veja-se:

Súmula 243-STJ: O benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de um (01) ano.

 

Súmula 723-STF: Não se admite a suspensão condicional do processo por crime continuado, se a soma da pena mínima da infração mais grave com o aumento mínimo de um sexto for superior a um ano.

 

Assim, por analogia in bonam partem, aplica-se ao ANPP o mesmo raciocínio já consolidado no âmbito do sursis, reforçando o caráter de mínima intervenção penal e a coerência do sistema jurídico.

Por fim, à luz do texto e da finalidade do § 1º do art. 28-A do CPP, que determina considerar causas de aumento e diminuição para a aferição da pena mínima, a interpretação mais adequada é aquela que, nos casos concretos, utiliza a fração mínima das majorantes e a fração máxima das atenuantes. Isso porque o objetivo do legislador foi justamente permitir a verificação da menor pena possível em abstrato, e não sua projeção em patamar máximo. Em suma: busca-se a pena mais baixa em abstrato, não sua estimativa em uma dosimetria potencial.

 

Voltando ao caso concreto:

No caso concreto, o Promotor de Justiça, em análise preliminar, concluiu pela ausência do requisito objetivo previsto no caput do art. 28-A do CPP. Segundo sua avaliação, o réu teria incorrido no tipo penal do art. 317 do CP, cuja pena varia entre 2 (dois) e 12 (doze) anos de reclusão, e, considerando as majorantes aplicáveis ao caso, o mínimo em abstrato ultrapassaria o teto legal para a celebração do ANPP.

Contudo, essa conclusão não se sustenta.

A tipificação expressamente indicada, tanto na denúncia quanto na sentença, restringe-se ao art. 317, § 1º, c/c o art. 71, ambos do CP, sem menção ao art. 327, § 2º, do CP.

A pena mínima do art. 317 do CP é de 2 (dois) anos de reclusão. A aplicação da causa de aumento prevista no § 1º do mesmo artigo eleva essa pena para 2 (dois) anos e 8 (oito) meses. Acrescida da fração de 1/6 relativa à continuidade delitiva, chega-se a uma pena de 3 (três) anos, 1 (um) mês e 10 (dez) dias de reclusão, valor inferior ao patamar de 4 (quatro) anos.

Essa constatação demonstra, de forma inequívoca, que o requisito objetivo referente ao quantum mínimo da pena, exigido pelo caput do art. 28-A do CPP, está presente, afastando, por conseguinte, a objeção ministerial baseada em suposta extrapolação do limite legal.

 

Em suma:

1. A pena mínima em abstrato, considerando as frações mínimas das majorantes e máximas das atenuantes, deve ser utilizada como critério para aferição da elegibilidade ao ANPP.

2. A continuidade delitiva não impede a celebração do acordo de não persecução penal, desde que a pena mínima resultante não ultrapasse o limite de quatro anos.

3. É indevido utilizar projeções de "pena hipotética" para afastar, em sede de admissibilidade, o exame do ANPP, em coerência com a vedação sumulada à prescrição em perspectiva (Súmula n. 438/STJ).

STJ. 5ª Turma. REsp 2.135.834-PR, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Rel. para acórdão Min. Ribeiro Dantas, julgado em 7/10/2025 (Info 867).


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