sábado, 27 de setembro de 2014

Competência para julgar civil que usa documento falso junto à Marinha


Olá amigos do Dizer o Direito,

Hoje é sábado, mas também é dia de estudos. Até que consigam passar, o lazer ficará um pouco comprometido.

Aliás, descanso de concurseiro é respondendo provas de concursos anteriores :)

Brincadeiras a parte, hoje o tema tratado envolve direito penal militar e será objeto da prova de vocês da DPU cujo edital está prestes a sair.

Imagine a seguinte situação adaptada:
João (civil) trabalhava como despachante naval e, em determinado dia, apresentou, perante a Marinha do Brasil, um documento falso, com o objetivo de regularizar uma embarcação.
O Ministério Público militar entendeu que estava caracterizado crime militar e denunciou João pela prática do delito previsto no art. 315 do Código Penal Militar:

Uso de documento falso
Art. 315. Fazer uso de qualquer dos documentos falsificados ou alterados por outrem, a que se referem os artigos anteriores:
Pena - a cominada à falsificação ou à alteração.

O Conselho Permanente de Justiça para a Marinha condenou o réu, decisão mantida pelo Superior Tribunal Militar. Por meio de habeas corpus a questão chegou até o STF.

A conduta narrada configura realmente crime militar?
NÃO.

Compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes militares, assim definidos em lei (art. 124 da CF/88).
A lei que prevê os crimes militares é o Código Penal Militar (Decreto-Lei 1.001/1969) que, em seu art. 9º, define os crimes militares, em tempo de paz, e no art. 10 os crimes militares em tempo de guerra.

Em regra, os crimes militares em tempo de paz são praticados somente por militares. No entanto, excepcionalmente, é possível que civis também cometam crimes militares.

Assim, o art. 9º, III, define os crimes militares impróprios, ou seja, aqueles em que a Justiça Militar irá julgar condutas ilícitas praticadas por civis, ainda que em tempo de paz.

Veja a redação do dispositivo:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
(...)
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle fim, ou em obediência a determinação legal superior.

Segundo observa, com precisão, a Min. Rosa Weber, o STF confere intepretação restritiva às hipóteses do inciso III do art. 9º do CPM. Assim, para a Corte, as condutas praticadas por civis somente devem ser enquadradas como crimes militares em caráter excepcional, apenas nos casos em que a ofensa ao bem jurídico tutelado recair sobre a função de natureza militar, a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais, da Lei e da ordem etc. Nesse sentido: HC 86.216/MG, Rel. Min. Ayres Britto, 1ª Turma, DJe 24/10/2008.

Na situação analisada, a 1ª Turma do STF entendeu que a conduta do réu (civil) não afrontou a ordem militar, de modo a ensejar a fixação da competência da Justiça Castrense para processamento e julgamento do feito.

A atividade desempenhada pelo condenado (despachante naval) não se qualifica ou se insere em função eminentemente militar.

Além disso, o documento falsificado e a finalidade da falsificação atingem apenas bens e serviços de cunho administrativo (e não militares).

Desse modo, a competência para julgar o delito é da Justiça Federal comum (e não da Justiça Militar).

Vale ressaltar que o STF já tinha outros precedentes no sentido de que é da Justiça Federal comum a competência para processar e julgar civil denunciado pelos crimes de falsificação de documento ou uso de documento falso (arts. 311 e 315, do CPM), junto à Marinha do Brasil. Ex: falsificação da Carteira de Habilitação Naval de Amador expedida pela Marinha do Brasil. Confira:

(...) 1. O delito militar praticado por civil, em tempo de paz, tem caráter excepcional. A Justiça Militar somente terá competência para julgar condutas de civis quando ofenderem os bens jurídicos tipicamente associados à função castrense, tais como a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem.
2. Compete à Justiça Federal analisar e decidir as ações penais contra civil denunciado pelo crime de falsificação de Caderneta de Inscrição e Registro (CIR) ou Habilitação de Arrais-Amador, ambas expedidas pela Marinha do Brasil. Precedentes.
3. Ordem concedida.
STF. 1ª Turma. HC 104619, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 08/02/2011.

E por que a competência é da Justiça Federal comum?
Porque o crime foi cometido contra um serviço fiscalizado pela Marinha, que é um órgão da União. Logo, amolda-se na hipótese prevista no art. 109, IV, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;

No caso concreto, o réu já havia sido condenado quando, então, foi reconhecida a incompetência absoluta da Justiça Militar para julgar a causa. O que acontece com os atos processuais praticados?
A maioria dos Ministros, seguindo voto do Min. Luis Roberto Barroso, entendeu que, ao reconhecer a incompetência da justiça militar, caberia ao STF somente anular a decisão condenatória e remeter o processo para ser analisado pela Justiça Federal de 1ª instância. Lá, o juiz federal irá decidir se anula, ou não, os demais atos do processo. Reputou-se que, se o próprio STF já anulasse todo o processo haveria um “salto jurisdicional”. Logo, caberá ao juiz federal decidir acerca da subsistência, ou não, dos atos já praticados.
O Ministro Luiz Fux acrescentou que a jurisdição é una e que, diante da declaração de incompetência, deverão os autos ser remetidos ao juízo competente que irá, então, decidir sobre a validade dos atos. Trata-se de uma tendência já adotada até pela Corte de Cassação da Itália e que é chamada de translatio judicii, ou seja, o juiz que foi reputado competente, ao receber o processo, absorve a causa e poderá, se entender necessário, renovar os atos processuais.
Vale ressaltar, no entanto, que esse é um tema ainda polêmico.


RESUMINDO:
Compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes militares, assim definidos em lei (art. 124 da CF/88).
A lei que prevê os crimes militares é o Código Penal Militar (Decreto-Lei 1.001/1969) que, em seu art. 9º, define os crimes militares, em tempo de paz, e no art. 10 os crimes militares em tempo de guerra.
Em regra, os crimes militares em tempo de paz são praticados somente por militares. No entanto, excepcionalmente, é possível que civis também cometam crimes militares.
O art. 9º, III, do CPM define os crimes militares impróprios, ou seja, aqueles em que a Justiça Militar irá julgar condutas ilícitas praticadas por civis, ainda que em tempo de paz.
O delito militar praticado por civil, em tempo de paz, deve ser encarado de forma excepcional e interpretado restritivamente. Assim, a Justiça Militar somente terá competência para julgar condutas de civis quando ofenderem os bens jurídicos tipicamente associados à função castrense, tais como a defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem.
Compete à Justiça Federal comum jugar o civil que falsifica ou utiliza documento falso perante à Marinha do Brasil.
STF. 1ª Turma. HC 121189/PR, rel. orig. Min. Rosa Weber, red. p/ o acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 19/8/2014 (Info 755).



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