quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Lei estadual pode obrigar plano de saúde a apresentar justificativa por escrita ao consumidor quando recusar algum tratamento?



A situação concreta foi a seguinte:
O Mato Grosso do Sul editou uma lei estadual (Lei 3.885/2010) prevendo que, se o plano de saúde recusar algum procedimento, tratamento ou internação, ele deverá fornecer, por escrito, ao usuário, um comprovante fundamentado expondo as razões da negativa. Veja o art. 1º da referida Lei:
Art. 1º As operadoras de planos e seguros privados de assistência à saúde obrigam-se a fornecer ao consumidor informações e documentos, nos termos desta Lei, em caso de negativa de cobertura parcial ou total de procedimento médico, cirúrgico ou de diagnóstico, bem como de tratamento e internação.
Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, entende-se por negativa de cobertura a recusa em custear a assistência à saúde, de qualquer natureza, ainda que fundamentada em lei ou cláusula contratual.

Em caso de descumprimento da norma, o fornecedor estará sujeito às sanções administrativas previstas no art. 56 do CDC.

ADI
Foi proposta uma ADI contra essa Lei sob o argumento de que ela tratou sobre direito civil, comercial e política de seguros, matérias que são de competência privativa da União, nos termos do art. 22, I e VII, da CF/88:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
(...)
VII - política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores;

Além disso, a autora afirmou que a lei estadual interfere nos contratos em vigor e viola a livre iniciativa (art. 170 da CF/88).

O que o STF decidiu? A referida lei é inconstitucional? Viola competência privativa da União?
NÃO.
É constitucional lei estadual que obrigue os planos de saúde a fornecerem aos consumidores informações e documentos justificando as razões pelas quais houve recusa de algum procedimento, tratamento ou internação.
STF. Plenário. ADI 4512/MS, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 7/2/2018 (Info 890).

Proteção do consumidor e acesso à informação
Essa lei estadual tratou sobre proteção do consumidor, matéria que está dentro da competência legislativa concorrente, nos termos do art. 24, V, da CF/88:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(...)
V - produção e consumo;
(...)
§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

Assim, a lei impugnada não disciplinou assuntos de direito civil, comercial ou política securitária.
O CDC é a norma geral editada pela União na defesa do consumidor e tal diploma reconhece como direito básico do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem (art. 6º, III).
A lei estadual está, portanto, em harmonia com o CDC, respeitando assim as regras do art. 24 da CF/88.
Além disso, essa lei atende ao comando do inciso XXXII do art. 5º da Constituição:
Art. 5º (...)
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

Sem interferência nos contratos
A lei atacada cumpre a função estatal de proteção ao consumo, não havendo interferência nos contratos firmados entre as operadoras e os usuários nem representando equilíbrio atuarial das operadoras de planos e seguros privados de assistência à saúde. Conforme explicou a Min. Cármen Lúcia:
“A entrega do documento informativo expondo as razões pelo qual um determinado tratamento ou procedimento foi negado não amplia o rol de obrigações contratuais entre a operadora e o usuário. Pelo contrário, o que se tem é apenas uma transparência maior para cumprimento dos termos legislados” (Min. Cármen Lúcia).
Em outras palavras, as operadoras já tinham esse dever por força do próprio CDC e a lei estadual apenas explicitou o comando.

Sem violação à livre iniciativa
A lei estadual impugnada não limita a livre iniciativa. Ao contrário, fomenta o desenvolvimento de um mercado mais sustentável.
Além disso, conforme preconiza o inciso V do art. 170, a livre iniciativa deverá ser exercida observando-se como um dos seus princípios a defesa do consumidor.



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