sexta-feira, 3 de julho de 2020

É inconstitucional lei municipal que proíba a divulgação de material com referência a “ideologia de gênero” nas escolas municipais



A situação concreta foi a seguinte:
Em Novo Gama (GO), foi editada a Lei Municipal 1.516/2015, proibindo a utilização em escolas públicas municipais de material didático que contenha “ideologia de gênero”:
Art. 1º Fica proibida a divulgação de material com referência a ideologia de gênero nas escolas municipais de Novo Gama-GO.
Art. 2º Todos os materiais didáticos deverão ser analisados antes de serem distribuídos nas escolas municipais de Novo Gama-GO.
Art. 3º Não poderão fazer parte do material didático nas escolas em Novo Gama-GO materiais que fazem menção ou influenciem ao aluno sobre a ideologia de gênero.
Art. 4º Materiais que foram recebidos mesmo que por doação com referência a ideologia de gênero deverão ser substituídos por materiais sem referência a mesma.

Essa lei é constitucional?
NÃO. O STF entendeu que existe inconstitucionalidade tanto sob o aspecto formal como material.

Inconstitucionalidade formal: Municípios não possuem competência para legislar sobre conteúdo programático e outros aspectos pedagógicos
O art. 22, XXIV, da C/88 estabelece que a União possui competência privativa para fixar as diretrizes e bases da educação nacional:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
(...)
XXIV - diretrizes e bases da educação nacional;
(...)
Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.

Em complemento, a Constituição também conferiu primazia à União ao imputar-lhe a competência para estabelecer normas gerais sobre educação e ensino, reservando aos Estados e ao Distrito Federal um espaço de competência suplementar:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(...)
IX - educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;

Art. 30. Compete aos Municípios:
(...)
II - suplementar a legislação federal e estadual no que couber;

No exercício dessa competência legislativa, a União editou a Lei nº 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
A LDB não traz qualquer proibição quanto à divulgação de material com referência a “ideologia de gênero” nas escolas públicas.
A Lei municipal que proíbe determinados conteúdos nas escolas públicas representa ingerência explícita do Poder Legislativo municipal no currículo pedagógico ministrado por instituições de ensino vinculadas ao Sistema Nacional de Educação (art. 214, CF/88 c/c Lei Federal nº 13.005/2014) e, consequentemente, submetidas à disciplina da Lei Federal nº 9.394/96 (LDB).
Esse é um assunto que necessita de tratamento uniforme em todo o país, devendo, portanto, ser tratado pela União (art. 22, XXIV, da CF/88).
A eventual necessidade de suplementação da legislação federal, com vistas à regulamentação de interesse local, jamais justificaria a edição de proibição à conteúdo pedagógico, não correspondente às diretrizes fixadas na LDB.
Desse modo, os Municípios não dispõem de competência legislativa para a edição de normas que tratem de currículos, conteúdos programáticos, metodologias de ensino ou modos de exercício da atividade docente.

Municípios não possuem competência para editar lei proibindo a divulgação de material com referência a “ideologia de gênero” nas escolas municipais.
STF. Plenário. ADPF 457, Rel. Alexandre de Moraes, julgado em 27/04/2020.

Inconstitucionalidade material
O STF entendeu também que essa lei municipal é materialmente inconstitucional porque viola dois princípios relacionados com o ensino:
• a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, CF/88); e
• o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, III, CF/88).

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
(...)
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;

Censura prévia
A Lei municipal que proíbe a divulgação de material com referência a “ideologia de gênero” nas escolas municipais configura censura prévia.
A lei pretende proibir determinados conteúdos que entende supostamente prejudiciais.

Dignidade da pessoa humana
O reconhecimento da identidade de gênero é constitutivo da dignidade humana. O Estado, para garantir o gozo pleno dos direitos humanos, não pode vedar aos estudantes o acesso a conhecimento a respeito de seus direitos de personalidade e de identidade.

Resumindo:
Compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV, da CF), de modo que os Municípios não têm competência para editar lei proibindo a divulgação de material com referência a “ideologia de gênero” nas escolas municipais. Existe inconstitucionalidade formal.
Há também inconstitucionalidade material nessa lei.
Lei municipal proibindo essa divulgação viola:
• a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206, II, CF/88); e
• o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, III).
Essa lei contraria ainda um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que é a promoção do bem de todos sem preconceitos (art. 3º, IV, CF/88).
Por fim, essa lei não cumpre com o dever estatal de promover políticas de inclusão e de igualdade, contribuindo para a manutenção da discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero.
STF. Plenário. ADPF 457, Rel. Alexandre de Moraes, julgado em 27/04/2020.

“Ideologia de gênero”
Vale ressaltar que a expressão “ideologia de gênero” não é tecnicamente correta.
O mais adequado é falar em identidade de gênero.
Identidade de gênero significa a maneira como alguém se sente e a maneira como deseja ser reconhecida pelas demais pessoas, independentemente do seu sexo biológico.
“A identidade de gênero se refere à experiência de uma pessoa com o seu próprio gênero. Pessoas transgênero possuem uma identidade de gênero que é diferente do sexo que lhes foi designado no momento de seu nascimento.
Uma pessoa transgênero ou trans pode identificar-se como homem, mulher, trans-homem, trans-mulher, como pessoa não-binária ou com outros termos, tais como hijra, terceiro gênero, dois-espíritos, travesti, fa’afafine, gênero queer, transpinoy, muxe, waria e meti Identidade de gênero é diferente de orientação sexual. Pessoas trans podem ter qualquer orientação sexual, incluindo heterossexual, homossexual, bissexual e assexual.” (Nota Informativa das Nações Unidas. Disponível em https://unfe.org/system/unfe-91-Portugese_TransFact_FINAL.pdf?platform=hootsuite)
Nas palavras do Min. Edson Fachin:

“O reconhecimento da identidade de gênero é, portanto, constitutivo da dignidade humana. O Estado, para garantir o gozo pleno dos direitos humanos, não pode vedar aos estudantes o acesso a conhecimento a respeito de seus direitos de personalidade e de identidade.”



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