quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Resolução 221/2020-CNMP: dispõe sobre a atuação do membro do Ministério Público nas audiências de custódia

 

Olá, amigos do Dizer o Direito, 

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) editou a Resolução nº 221/2020, dispondo sobre a atuação do Ministério Público nas audiências de custódia.

Irei resumir os principais pontos da Resolução. No entanto, penso que antes seja necessário relembrar em que consiste a audiência de custódia.

 

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

Audiência de custódia

Audiência de custódia consiste...

- no direito que a pessoa presa possui

- de ser conduzida (levada),

- sem demora (em até 24h),

- à presença de uma autoridade judicial (magistrado)

- que irá analisar se os direitos fundamentais dessa pessoa foram respeitados (ex: se não houve tortura)

- se a prisão em flagrante foi legal ou se deve ser relaxada (art. 310, I, do CPP)

- e se a prisão cautelar (antes do trânsito em julgado) deve ser decretada (art. 310, II) ou se o preso poderá receber a liberdade provisória (art. 310, III) ou medida cautelar diversa da prisão (art. 319).

 

Previsão

A audiência de custódia é prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que ficou conhecida como “Pacto de San Jose da Costa Rica”, promulgada no Brasil pelo Decreto 678/92.

Veja o que diz o artigo 7º, item 5, da Convenção:

Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal

(...)

5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (...)

 

Regulamentação

Até o final de 2019, não havia uma lei (em sentido estrito) no Brasil disciplinando a audiência de custódia.

Diante desse cenário e a fim de dar concretude à previsão da CADH, o STF, em 09/09/2015, deferiu medida cautelar na ADPF 347/DF e determinou que, no prazo de até 90 dias, os Juízes e Tribunais viabilizassem “o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas, contado do momento da prisão” (Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 19/02/2016)

Em 15/12/2015, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 213, disciplinando a audiência de custódia.

No fim de 2019, foi editada a Lei nº 13.964/2019 (chamada de Pacote Anticrime) inserindo no CPP a previsão expressa da audiência de custódia.

 

A audiência de custódia deve ser realizada apenas em casos de prisão em flagrante ou também nas demais espécies de prisão (exs: prisão preventiva, prisão temporária etc)?

Também nas demais espécies. Nesse sentido, veja o que diz o art. 13 da Resolução 213/2015 do CNJ:

Art. 13. A apresentação à autoridade judicial no prazo de 24 horas também será assegurada às pessoas presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, aplicando-se, no que couber, os procedimentos previstos nesta Resolução.

Parágrafo único. Todos os mandados de prisão deverão conter, expressamente, a determinação para que, no momento de seu cumprimento, a pessoa presa seja imediatamente apresentada à autoridade judicial que determinou a expedição da ordem de custódia ou, nos casos em que forem cumpridos fora da jurisdição do juiz processante, à autoridade judicial competente, conforme lei de organização judiciária local.

 

A nova redação o art. 287 do CPP, dada pela Lei nº 13.964/2019, também indica que não apenas a prisão em flagrante, mas também as prisões decorrentes de mandado (ex: prisão preventiva) ensejam a realização de audiência de custódia. Veja:

Art. 287. Se a infração for inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará a prisão, e o preso, em tal caso, será imediatamente apresentado ao juiz que tiver expedido o mandado, para a realização de audiência de custódia.

 

RESOLUÇÃO 221/2020-CNMP

Participação obrigatória do MP

A participação do membro do Ministério Público na audiência de custódia é obrigatória.

Essa participação é uma atribuição que decorre do papel constitucional que o MP possui de:

• ser o titular da ação penal; e

• de exercer o controle externo da atividade policial.

 

Mesmo que a audiência seja realizada fora do fórum, o MP deverá comparecer

O membro do Ministério Público deverá deslocar-se ao local assinalado para assegurar a realização do ato judicial nos casos em que a autoridade judicial designe audiência de custódia no local onde se encontre a pessoa presa, fora das dependências do juízo, por motivo de grave enfermidade, aqui incluídos casos de sofrimento psíquico grave ou outra circunstância excepcional.

 

Membro do MP precisa buscar elementos para poder se manifestar na audiência

O membro do Ministério Público diligenciará para reunir elementos que subsidiarão sua manifestação na audiência de custódia.

Em outras palavras, ele deverá buscar informações, certidões e eventualmente documentos sobre o caso a fim de poder ter elementos para se manifestar sobre a legalidade da prisão e, em especial, sobre a necessidade ou não da prisão.

 

Exemplos de elementos que o membro deve buscar

O membro do Ministério Público adotará providências para ter prévio acesso:

I – aos assentamentos anteriores da pessoa presa, com o objetivo de amparar a manifestação sobre seu perfil pessoal;

II – a eventuais atos de encaminhamento da pessoa presa a serviços de proteção social, de assistência à saúde e de atenção psicossocial;

III – aos resultados de exame de corpo de delito já realizados na pessoa presa;

IV – às ordens de medidas protetivas de urgência eventualmente decretadas em face da pessoa presa, se o motivo da prisão for crime que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência.

 

O membro do MP deve obter os documentos diretamente, só requerendo ao Poder Judiciário se não for possível obtê-los diretamente.

Assim, somente na impossibilidade de ter prévio acesso aos documentos é que o membro do Ministério Público diligenciará perante o juízo para obtê-los, a qualquer momento.

 

MP deve se certificar que os agentes de Estado não estão participando da audiência de custódia

O art. 4º, parágrafo único, da Resolução nº 213/2015, do CNJ, afirma que

Art. 4º (...) Parágrafo único. É vedada a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação durante a audiência de custódia.

 

O objetivo é permitir que o preso possa se sentir à vontade para relatar caso tenha sofrido alguma forma de violência física ou psicológica por parte dos agentes estatais.

A Resolução nº 221/2020, do CNMP, prevê que o membro do MP deverá fiscalizar para essa garantia seja respeitada. Confira o que diz o art. 3º da Resolução do CNMP:

Art. 3º O membro do Ministério Público adotará providências para assegurar que os agentes de Estado responsáveis pela prisão ou investigação do fato determinante da prisão não estejam presentes na audiência de custódia.

 

O que o juiz deverá perguntar e fazer durante a audiência:

De acordo com o art. 8º da Resolução nº 213/2015, do CNJ, na audiência de custódia, o juiz entrevistará a pessoa presa em flagrante, devendo:

1) esclarecer o que é a audiência de custódia, ressaltando as questões a serem analisadas pela autoridade judicial;

2) assegurar que a pessoa presa não esteja algemada, salvo em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, devendo a excepcionalidade ser justificada por escrito;

3) dar ciência sobre seu direito de permanecer em silêncio;

4) questionar se lhe foi dada ciência e efetiva oportunidade de exercício dos direitos constitucionais inerentes à sua condição, particularmente o direito de consultar-se com advogado ou defensor público, o de ser atendido por médico e o de comunicar-se com seus familiares;

5) indagar sobre as circunstâncias de sua prisão ou apreensão;

6) perguntar sobre o tratamento recebido em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência, questionando sobre a ocorrência de tortura e maus tratos e adotando as providências cabíveis;

7) verificar se houve a realização de exame de corpo de delito, determinando sua realização nos casos em que:

a) não tiver sido realizado;

b) os registros se mostrarem insuficientes;

c) a alegação de tortura e maus tratos referir-se a momento posterior ao exame realizado;

d) o exame tiver sido realizado na presença de agente policial;

 

8) abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante;

9) adotar as providências a seu cargo para sanar possíveis irregularidades;

10) averiguar, por perguntas e visualmente, hipóteses de gravidez, existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante delito, histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a dependência química, para analisar o cabimento de encaminhamento assistencial e da concessão da liberdade provisória, sem ou com a imposição de medida cautelar.

 

Perguntas do MP e depois da defesa

Após o juiz ouvir a pessoa presa, deverá conceder a palavra ao Ministério Público e depois à defesa técnica, para que estes façam reperguntas compatíveis com a natureza do ato, devendo indeferir as perguntas relativas ao mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação.

 

Consentimento esclarecido e outras salvaguardas

Seguindo as diretrizes do Protocolo de Instambul, também denominado de “Manual para a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, deve-se assegurar que a alegada vítima seja informada, sempre que possível, da natureza do procedimento, das razões pelas quais é solicitado seu depoimento e da utilização a ser eventualmente dada às provas apresentadas.

Deve-se explicar à pessoa quais os elementos do inquérito que serão tornados públicos e quais permanecerão em sigilo.

Uma informação muito importante: a vítima tem o direito de se recusar a cooperar na totalidade ou em parte da investigação.

 

Contexto do depoimento

Deverá ser concedido tempo suficiente para a oitiva da presumível vítima de tortura.

Deve-se demonstrar sensibilidade no tom, na formulação e na sequência das perguntas, dado eventual efeito traumático que a prestação de depoimento tem para a vítima de tortura.

A pessoa deverá ser informada de seu direito de interromper o interrogatório a qualquer momento, para fazer uma pausa se assim o desejar, ou de recusar responder a qualquer questão.

As pessoas não devem ser forçadas a falar sobre qualquer forma de tortura se não se sentirem à vontade para o fazer.

 

O que o MP deverá perguntar?

O art. 4º da Resolução nº 221/2020, do CNMP, prevê que:

Art. 4º Após a inquirição pelo juiz, o membro do Ministério Público deverá formular, suplementarmente, questionamentos que se dirijam ao esclarecimento das circunstâncias da prisão, da realização do exame de corpo de delito e de eventual notícia de maus-tratos ou de tortura sofridos pela pessoa presa.

 

Havendo notícia de maus-tratos ou de tortura sofridos pela pessoa presa, os questionamentos do Ministério Público deverão se dirigir à descrição dos fatos e suas circunstâncias, à identificação e qualificação dos autores das agressões, bem como de eventuais testemunhas, da forma mais completa possível, respeitando-se a vontade da vítima.

 

Informações a obter da presumível vítima

Os questionamentos devem dirigir-se à obtenção do máximo de elementos possíveis quanto aos aspectos indicados a seguir:

a) circunstâncias da detenção e dos atos de tortura ou de maus-tratos: incluem a indicação de data e hora, duração da detenção, frequência e duração das ações noticiadas de maus-tratos, agressões ou tortura, bem como identificação das pessoas participantes da captura, detenção e prática desses atos, assim como de possíveis testemunhas.

b) local e condições da detenção: é possível inquirir sobre a descrição do local onde aconteceu cada uma das ações, com vista ao detalhamento das instalações possíveis de ocorrência dos fatos. Incluem-se aqui questões relativas ao acesso da pessoa à alimentação e a instalações sanitárias. Recomenda-se que se obtenha a descrição dos alimentos e bebidas disponíveis, das instalações sanitárias e das condições de iluminação, temperatura e ventilação.

c) métodos de tortura e maus-tratos: pode-se pedir a descrição dos atos de tortura e maus-tratos, incluindo os métodos utilizados, lesões físicas provocadas pela tortura e descrição de armas ou outros instrumentos utilizados.

 

Questões de gênero

Os questionamentos deverão considerar o gênero da pessoa custodiada, dos agentes responsáveis pelos fatos noticiados de tortura e maus-tratos, bem assim as distintas qualidades de relatos produzidos em face do gênero do próprio membro do Ministério Público com atribuição para a audiência de custódia. A adequação da linguagem e do tom do entrevistador, bem como a presença de pessoas do mesmo gênero ou de gênero diverso, podem ser necessárias nesse contexto.

 

Requisições do MP

O membro do Ministério Público requisitará a realização de exame de corpo de delito nos casos em que:

I – essa modalidade de prova não tenha sido realizada;

II – os registros se mostrem insuficientes;

III – a alegação de maus-tratos ou tortura refira-se a momento posterior ao exame realizado;

IV – o exame tenha-se realizado na presença do agente policial de quem se noticia a prática de maus-tratos ou de tortura ou de quaisquer ilegalidades no curso da prisão.

 

O Ministério Público poderá também requerer a realização de registro fotográfico e audiovisual sempre que a pessoa custodiada apresentar relatos ou sinais de tortura ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

 

Verificar se pessoa presa está grávida ou se tem filhos ou dependentes sob seus cuidados

O membro do Ministério Público deverá averiguar, por perguntas e visualmente, hipóteses de gravidez, existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante delito, histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a dependência química, para analisar a hipótese de requerer encaminhamento assistencial e a concessão da liberdade provisória, com a imposição de medida cautelar, ou encaminhar o caso para o órgão do Ministério Público com atribuição para a curadoria de saúde.

 

Requerimentos do MP após a oitiva

Após os esclarecimentos, o membro do Ministério Público deverá requerer, conforme o caso:

I – o relaxamento da prisão em flagrante;

II – a concessão da liberdade provisória com aplicação de medida cautelar diversa da prisão;

III – a conversão da prisão em prisão preventiva;

IV – a adoção de outras medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa.

 

O pedido de aplicação de medida cautelar diversa da prisão (art. 319 do CPP) deverá ser fundamentado na necessidade e na adequação da medida eleita para o caso concreto.

 

Crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência

Nos crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, o membro do Ministério Público:

I – diligenciará para assegurar que, caso a vítima tenha formulado pedido de medidas protetivas de urgência quando do registro da ocorrência, tais pedidos sejam apreciados pelo juiz da audiência de custódia quando da eventual concessão de liberdade provisória ao autuado;

II – avaliará a conveniência de requerer medidas protetivas de urgência para condicionarem a liberdade do autuado, mesmo que a vítima não tenha formulado requerimentos de tal natureza;

III – requererá ao juízo, no caso de concessão e liberdade provisória ao autuado, para que se realize a intimação da vítima, nos termos do art. 21 da Lei Maria da Penha.

IV – analisará a presença de fatores de risco próprios do contexto dessa forma de criminalidade para avaliar a necessidade de requerimento de decretação da prisão preventiva, especialmente em casos de desobediência à ordem de medida protetiva de urgência.

 

Se houver indícios de que a pessoa presa sofreu maus-tratos ou tortura

Havendo notícia da prática de maus-tratos ou de tortura, o membro do Ministério Público avaliará a necessidade de requerer a concessão da medida de proteção cabível, primordialmente para assegurar a integridade pessoal do denunciante, das testemunhas, do servidor que constatou a ocorrência da prática abusiva e de seus familiares. Se conveniente, avaliará ainda a formulação de pedido de sigilo das informações.

Além disso, o membro do Ministério Público que participou da audiência deverá, imediatamente, requisitar a instauração de investigação dos fatos noticiados ou determinar a abertura de procedimento de investigação criminal, sem prejuízo da atribuição do membro do Ministério Público com atuação perante o juízo competente para eventual e futura ação penal.

O Ministério Público diligenciará para que o registro das declarações prestadas pelo preso na audiência de custódia, em mídia ou em qualquer outro tipo de documentação, instrua os autos da apuração da notícia de maus-tratos ou de tortura.

 

 

 

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