quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Escusa de consciência e concursos públicos

 

Noções gerais sobre escusa de consciência

Escusa de consciência

Escusa de consciência é o direito que a pessoa possui de se recusar a cumprir determinada obrigação ou a praticar certo ato por ser ele contrário às suas crenças religiosas ou à sua convicção filosófica ou política.

Trata-se de um direito fundamental assegurado pelo art. 5º, VIII, da CF/88.

Vale ressaltar, no entanto, que a CF determina que, se o indivíduo se recusar a cumprir a obrigação legal imposta, ele deverá, em contrapartida, realizar uma prestação alternativa fixada em lei.

Caso se recuse a cumprir a obrigação originária e também a alternativa, o indivíduo poderá ter seus direitos políticos suspensos, nos termos do art. 15, IV, da CF/88:

Veja a redação do texto constitucional:

Art. 5º (...)

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

 

Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:

(...)

IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;

 

A escusa de consciência é também chamada de “objeção de consciência” ou “alegação de imperativo de consciência”.

 

Exemplo típico: participar de guerra

O exemplo mais comum de alegação de imperativo de consciência é o alistamento militar.

Imagine que determinado indivíduo, por convicções filosóficas, mostre-se contrário ao serviço militar. Neste caso, a CF/88 prevê que ele ficar dispensado de praticar atividades essencialmente militares (ex: treino de tiro, simulação de batalhas etc.), mas terá que cumprir o serviço alternativo. Trata-se da redação do art. 143, § 1º da CF/88:

Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.

§ 1º Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar.

(...)

 

No caso do serviço militar obrigatório, o serviço alternativo é disciplinado pela Lei nº 8.239/91:

Art. 3º (...)

§ 1º Ao Estado-Maior das Forças Armadas compete, na forma da lei e em coordenação com os Ministérios Militares, atribuir Serviço Alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência decorrente de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar.

§ 2º Entende-se por Serviço Alternativo o exercício de atividades de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, em substituição às atividades de caráter essencialmente militar.

(...)

 

Outro exemplo: participação como jurado

Em regra, a participação como jurado, no Tribunal do Júri, é obrigatória (art. 436 do CPP).

É possível, no entanto, que a pessoa sorteada alegue que a função de jurado contraria sua convicção religiosa, filosófica ou política. Em outras palavras, ela invoca a escusa de consciência. Neste caso, ela poderá ser dispensada do serviço do júri, mas terá o dever de prestar um serviço alternativo. É o que determina o art. 438 do CPP:

Art. 438. A recusa ao serviço do júri fundada em convicção religiosa, filosófica ou política importará no dever de prestar serviço alternativo, sob pena de suspensão dos direitos políticos, enquanto não prestar o serviço imposto.

§ 1º Entende-se por serviço alternativo o exercício de atividades de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, no Poder Judiciário, na Defensoria Pública, no Ministério Público ou em entidade conveniada para esses fins.

§ 2º O juiz fixará o serviço alternativo atendendo aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

 

Terceiro exemplo: atividades escolares em dia de guarda religiosa

A Lei nº 13.796/2019 acrescentou na Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) o art. 7º-A prevendo a possibilidade de alteração das datas de provas e de aulas caso estejam marcadas em “dias de guarda religiosa”.

Em linhas gerais, o que estabelece esse art. 7º-A da LDB:

- O aluno de instituição de ensino pública ou privada,

- de qualquer nível (ou seja, mesmo ensino superior),

- possui o direito de

- se ausentar de aula ou mesmo de prova

- caso essa aula ou prova esteja marcada em um dia no qual,

- segundo os preceitos da religião desse aluno,

- ele não puder exercer tais atividades,

- ou seja, se a atividade estiver designada para um “dia de guarda religiosa”.

 

Escusa de consciência por motivo de crença religiosa e fixação de horário alternativo para realização de concurso público

Feita a breve revisão acima, imagine a seguinte situação hipotética:

João se inscreveu no concurso de agente de segurança de um órgão público.

Após ser aprovado na prova objetiva, ele foi convocado para o teste físico.

Como eram muitos candidatos, os testes físicos foram marcados para dois dias: sábado e domingo.

João foi sorteado para fazer a prova no sábado. Ocorre que ele é membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Segundo a crença religiosa propugnada por esta congregação, o sábado é “dia de guarda religiosa”, de forma que não é recomendável que os membros da Igreja estudem ou trabalhem aos sábados. O sábado é dedicado a orações e outras atividades não seculares (não mundanas).

Diante disso, João pediu para realizar a prova no domingo, o que foi indeferido pela Administração Pública.

O candidato impetrou, então, mandado de segurança pedindo para que o seu teste físico fosse realizado no domingo em razão da sua crença religiosa.

 

O pedido de João pode ser acolhido? O que o STF entende a respeito do tema?

SIM. O pedido pode ser acolhido.

O STF, apreciando o tema, fixou a seguinte tese:

Nos termos do art. 5º, VIII, da Constituição Federal é possível a realização de etapas de concurso público em datas e horários distintos dos previstos em edital, por candidato que invoca escusa de consciência por motivo de crença religiosa, desde que presentes a razoabilidade da alteração, a preservação da igualdade entre todos os candidatos e que não acarrete ônus desproporcional à Administração Pública, que deverá decidir de maneira fundamentada.

STF. Plenário. RE 611874/DF, rel. orig. Min. Dias Toffoli, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgado em 19/11, 25/11 e 26/11/2020 (Repercussão Geral – Tema 386) (Info 1000).

 

É possível a fixação de obrigações alternativas a candidatos em concursos públicos, que se escusem de cumprir as obrigações legais originalmente fixadas por motivos de crença religiosa, desde que presentes a razoabilidade da alteração, a preservação da igualdade entre todos os candidatos e que não acarrete ônus desproporcional à Administração Pública, que deverá decidir de maneira fundamentada.

A fixação de obrigações alternativas para a realização de certame público ou para aprovação em estágio probatório, em razão de convicções religiosas, não significa privilégio, mas sim permissão ao exercício da liberdade de crença sem indevida interferência estatal nos cultos e nos ritos, nos termos do art. 5º, VI, da CF/88.

 

Mas o Estado é laico. A administração pública não poderia indeferir o pedido alegando esse argumento?

NÃO.

O Estado brasileiro é laico (secular ou não-confessional), ou seja, aquele no qual não se tem uma religião oficial. Isso está consagrado no art. 19, I, da CF/88:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

 

Assim, por força deste princípio, o Estado não pode estar associado a nenhuma religião, nem sob a forma de proteção, nem de perseguição. Há, portanto, uma separação formal entre Igreja e Estado.

No entanto, ao mesmo tempo, a CF/88 também assegura a liberdade religiosa, nos seguintes termos:

Art. 5º (...)

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; 

 

O fato de o Estado ser laico (art. 19, I, da CF/88), não lhe impõe uma conduta negativa diante da proteção religiosa.

A separação entre o Estado brasileiro e a religião não é absoluta.

O Estado deve proteger a diversidade em sua mais ampla dimensão, dentre as quais se inclua a liberdade religiosa e o direito de culto.

Nesse sentido, o papel da autoridade estatal não é o de remover a tensão por meio da exclusão ou limitação do pluralismo, mas sim assegurar que os grupos se tolerem mutuamente, principalmente quando em jogo interesses individuais ou coletivos de um grupo minoritário.

A separação entre religião e Estado, portanto, não pode implicar o isolamento daqueles que guardam uma religião à sua esfera privada. O princípio da laicidade não se confunde com laicismo. O princípio da laicidade, em verdade, veda que o Estado assuma como válida apenas uma crença religiosa.

Nessa medida, ninguém deve ser privado de seus direitos em razão de sua crença ou descrença religiosa, salvo se a invocar para se eximir de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa (art. 5º, VIII, da CF/88).

 

Escusa de consciência por motivo de crença religiosa e fixação de horário alternativo para o exercício de deveres funcionais inerentes ao cargo público

Imagine outra situação hipotética:

Regina é professora concursada da rede pública de ensino.

No planejamento para o ano letivo, a coordenadora pedagógica realizar o cronograma das aulas e Regina percebeu que teria que dar aulas segundas, quartas e sextas no período de 18h às 20h.

Ocorre que Regina é membro ativo da Igreja Adventista do Sétimo Dia e, conforme sua crença religiosa, ela se sente impossibilitada de realizar atividades profissionais ou acadêmicas no período entre o por do Sol de sexta-feira ao por do Sol de sábado.

Diante disso, apresentou pedido à administração pública para que a sua carga horária semanal não abrangesse aulas noturnas às sextas-feiras.

 

O pedido de Regina pode ser atendido?

SIM. Aplicam-se os mesmos argumentos já expostos acima para o caso do concurso público.

A tese fixada pelo STF é, inclusive, semelhante:

Nos termos do art. 5º, VIII, da Constituição Federal é possível à Administração Pública, inclusive durante o estágio probatório, estabelecer critérios alternativos para o regular exercício dos deveres funcionais inerentes aos cargos públicos, em face de servidores que invocam escusa de consciência por motivos de crença religiosa, desde que presentes a razoabilidade da alteração, não se caracterize o desvirtuamento do exercício de suas funções e não acarrete ônus desproporcional à Administração Pública, que deverá decidir de maneira fundamentada.

STF. Plenário. RE 611874/DF, rel. orig. Min. Dias Toffoli, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgado em 19/11, 25/11 e 26/11/2020 (Repercussão Geral – Tema 386) (Info 1021).

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