domingo, 7 de janeiro de 2024

A inspeção de segurança nas bagagens dos passageiros de ônibus, em fiscalização de rotina realizada pela Polícia Rodoviária Federal, tem natureza administrativa e não precisa de fundada suspeita

Imagine a seguinte situação hipotética:

Durante fiscalização de rotina, policiais rodoviários federais abordaram o passageiro João da Silva no interior de um ônibus de transporte público interestadual, que fazia o trajeto de Dourados (MS) para São Paulo (SP).

O passageiro estava sentado no último banco do veículo e, segundo os policiais, demonstrou nervosismo ao avistá-los. Por esse motivo, foi selecionado para inspeção da bagagem.

Durante a busca pessoal, os policiais encontraram entre as pernas de João uma bolsa de viagem com 20 tabletes de maconha, totalizando 20kg.

João foi preso em flagrante.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João imputando-lhe a prática do crime de tráfico de drogas.

Em alegações finais, a Defensoria Pública requereu a absolvição do réu alegando que a busca pessoal realizada foi nula em razão da ausência de fundada suspeita.

O juiz afastou a tese defensiva e condenou o réu, sentença mantida pelo Tribunal de Justiça.

A Defensoria Pública impetrou, então, habeas corpus no STJ insistindo que:

- o art. 244 do CPP afirma que a busca pessoal somente poderá ocorrer, sem mandado judicial, quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

- a mera alegação genérica de “atitude suspeita” é insuficiente para a licitude da busca pessoal;

- como, no caso concreto, não havia fundada suspeita, deve-se reconhecer a nulidade da prova colhida.

 

No caso concreto, o STJ concordou com os argumentos da defesa?

NÃO.

 

Requisitos da busca pessoal do art. 244 do CPP

Confira o que diz o art. 244 do CPP sobre a busca pessoal:

Art. 244.  A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

 

A partir da leitura desse dispositivo, é possível extrair três hipóteses de busca pessoal sem mandado:

a) no caso de prisão (ex: o indivíduo é preso em flagrante, o que autoriza a realização de busca pessoal);

b) quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito; ou

c) quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

 

A Sexta Turma do STJ, no julgamento do RHC 158.580/BA, aprofundou a compreensão acerca do instituto da busca pessoal, analisando de forma exaustiva os requisitos do art. 244 do CPP.

Veja abaixo um resumo deste importante precedente:

Para a busca pessoal ou veicular sem mandado judicial exige-se, em termos de standard probatório, a existência de fundada suspeita (justa causa) baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto – de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência.

Entretanto, o art. 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à “posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.

O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata.

Desse modo, a busca pessoal não pode ser realizada com base unicamente em:

a) informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas); ou

b) intuições e impressões subjetivas, intangíveis, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio (experiência) policial.

Assim, não é possível a busca pessoal unicamente pelo fato de o policial, a partir de uma classificação subjetiva, ter considerado que a pessoa:

• apresentou uma atitude ou aparência suspeita; ou

• teve uma reação ou expressão corporal tida como “nervosa”.

Essas circunstâncias não preenchem o standard probatório de “fundada suspeita” exigido pelo art. 244 do CPP.

O fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos após a revista não convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento “fundada suspeita de posse de corpo de delito” seja aferido com base no que se tinha antes da diligência. Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida, droga ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida.

A violação dessas regras e condições legais para busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.

Há três razões principais para que se exijam elementos sólidos, objetivos e concretos para a realização de busca pessoal – vulgarmente conhecida como “dura”, “geral”, “revista”, “enquadro” ou “baculejo” –, além da intuição baseada no tirocínio policial:

a) evitar o uso excessivo desse expediente e, por consequência, a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade (art. 5º, caput, e X, da Constituição), porquanto, além de se tratar de conduta invasiva e constrangedora – mesmo se realizada com urbanidade, o que infelizmente nem sempre ocorre –, também implica a detenção do indivíduo, ainda que por breves instantes;

b) garantir a sindicabilidade da abordagem, isto é, permitir que tanto possa ser contrastada e questionada pelas partes, quanto ter sua validade controlada a posteriori por um terceiro imparcial (Poder Judiciário), o que se inviabiliza quando a medida tem por base apenas aspectos subjetivos, intangíveis e não demonstráveis;

c) evitar a repetição – ainda que nem sempre consciente – de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural.

STJ. 6ª Turma. RHC 158.580-BA, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 19/04/2022 (Info 735).

 

É necessário diferenciar a busca pessoal prevista no CPP da busca pessoa por razões de segurança (inspeção de segurança)

A “busca pessoal” prevista no art. 244 do CPP não pode ser confundida com a busca realizada como inspeção de segurança em procedimentos que não possuem natureza processual penal.

Confira o que Renato Brasileiro ensina sobre o tema (LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 689):

a) Busca pessoal por razões de segurança

b) Busca pessoal de natureza processual penal

É aquela realizada em festas, boates, aeroportos, rodoviárias etc.

Essa espécie de busca pessoal não está regulamentada pelo CPP, devendo ser executada de maneira razoável e sem expor as pessoas a constrangimento ou à humilhação.

Sua execução tem natureza contratual, ou seja, caso a pessoa não se submeta à medida, não poderá se valer do serviço ofertado nem tampouco frequentar o estabelecimento.

Regulamentada pelo art. 244 do CPP.

Deve ser determinada quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo coisas achadas ou obtidas por meios criminosos, instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos, armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso, objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu, apreender cartas abertas destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato, assim como qualquer outro elemento de convicção.

Não exige fundada suspeita.

Exige fundada suspeita.

 

Rosmar Rodrigues Alencar e Nestor Távora também diferenciam as duas espécies:

“Por sua vez, a busca pessoal realizada em festas, boates, aeroportos, não têm tratamento pelo CPP, devendo atender à razoabilidade e respeitar a intimidade. Estão afetas ao lado contratual. Aquele que não desejar se submeter à medida, tem a opção de não se valer do serviço ofertado ou simplesmente não frequentar o estabelecimento.” (ALENCAR, Rosmar Rodrigues; TÁVORA, Nestor Távora. Curso de direito processual penal. 12. ed. Salvador: Ed. JusPodivm. 2017, p. 753)”

 

Desse modo, a denominada “busca pessoal por razões de segurança” ou “inspeção de segurança”, ocorre rotineiramente em aeroportos, rodoviárias, prédios públicos, eventos festivos, ou seja, locais em que há grande circulação de pessoas e, em consequência, necessidade de zelar pela integridade física dos usuários, bem como pela segurança dos serviços e instalações.

Embora a inspeção de segurança também envolva restrição a direito fundamental e possa ser alvo de controle judicial a posteriori, a fim de averiguar a proporcionalidade da medida e a sua realização sem exposição vexatória, o principal ponto de distinção em relação à busca de natureza penal é a faculdade que o indivíduo tem de se sujeitar a ela ou não.

Na busca pessoal por razões de segurança, há um aspecto de contratualidade, pois a recusa a se submeter à inspeção apenas irá obstar o acesso ao serviço ou transporte coletivo, funcionando como uma medida de segurança dissuasória da prática de ilícitos.

A título exemplificativo, destaca-se que a inspeção de segurança em aeroportos decorre de cumprimento de diretriz internacional, prevista no Anexo 17 da Convenção da Organização Internacional de Aviação Civil (OACI), da qual o Brasil é signatário. O Decreto nº 11.195/2022 regulamenta a questão e prevê expressamente que a inspeção de passageiros e bagagens é de responsabilidade do operador de aeródromo, sob supervisão da Polícia Federal (art. 81). Ou seja, delega-se essa possibilidade ao agente privado, sendo a atuação policial também prevista, de forma subsidiária e complementar.

Nesse contexto, se a busca ou inspeção de segurança - em espaços e transporte coletivos - pode ser realizada por agentes privados incumbidos da segurança, com mais razão pode - e deve - ser realizada por agentes públicos que estejam atuando no mesmo contexto, sem prejuízo do controle judicial a posteriori acerca da proporcionalidade da medida, em ambos os casos.

O contexto que legitima a inspeção de segurança em espaços e meios de transporte de uso coletivo é absolutamente distinto daquele que ampara a realização da busca pessoal para fins penais, na qual há que se observar a necessária referibilidade da medida (fundada suspeita de posse de objetos ilícitos), conforme já muito bem tratado no referido RHC 158.580/BA, da relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz.

No caso concreto, policiais rodoviários federais, em fiscalização na Rodovia Castelo Branco, abordaram ônibus que fazia o trajeto de Dourados (MS) para São Paulo (SP). Os agentes públicos narraram que a seleção se deu a partir de análise comportamental (nervosimo visível e troca de olhares entre um adolescente viajando sozinho e outro passageiro que afirmou não conhecer). Afirmaram ainda que informaram ao acusado quanto ao direito de permanecer em silêncio e, em seguida, iniciaram a vistoria das bagagens, localizando cerca de 20kg de maconha, divididos em tabletes nos pertences do acusado.

Assim, forçoso concluir que a inspeção de segurança nas bagagens dos passageiros do ônibus, em fiscalização de rotina realizada pela Polícia Rodoviária Federal, teve natureza administrativa, ou seja, não se deu como busca pessoal de natureza processual penal e, portanto, não precisava de fundada suspeita.

Ademais, se a bagagem dos passageiros poderia ser submetida à inspeção aleatória na rodoviária ou em um aeroporto, passando por um raio-X ou inspeção manual detalhada, sem qualquer prévia indicação de suspeita, por exemplo, não há razão para questionar a legalidade da vistoria feita pelos policiais rodoviários federais, que atuaram no contexto fático de típica inspeção de segurança em transporte coletivo.

 

Em suma:

A inspeção de segurança nas bagagens dos passageiros de ônibus, em fiscalização de rotina realizada pela Polícia Rodoviária Federal, tem natureza administrativa e prescinde de fundada suspeita. 

STJ. 6ª Turma. HC 625.274-SP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 17/10/2023 (Info 796).


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