terça-feira, 2 de janeiro de 2024

As decisões definitivas de Juizados Especiais podem ser invalidadas quando se fundamentarem em norma, aplicação ou interpretação jurídicas declaradas inconstitucionais pelo Plenário do STF (em controle difuso ou concentrado) (antes ou depois do trânsito em julgado)

Imagine a seguinte situação hipotética:

João é aposentado pelo regime geral de previdência social (RGPS), administrado pelo INSS.

Depois que ele já estava recebendo a aposentadoria, foi editada a Lei XXX, que alterou a forma de calcular a aposentadoria.

João ingressou com ação contra o INSS, no Juizado Especial Federal, pedindo a revisão de sua aposentadoria. Ele argumentou que, se o seu benefício fosse recalculado com base na Lei XXX, ele passaria a receber R$ 3 mil de aposentadoria (e não mais R$ 2 mil como lhe foi assegurado).

O Juiz Federal julgou o pedido procedente, determinando que o INSS fizesse a revisão do benefício nos termos requeridos pelo autor.

O INSS perdeu o prazo para interpor recurso inominado e houve o trânsito em julgado.

Logo em seguida, João deu início ao cumprimento de sentença para receber as parcelas atrasadas, conforme previsto na sentença transitada em julgado (título executivo).

O INSS impugnou o cumprimento de sentença alegando que o título executivo (sentença) seria inexigível, considerando que o STF declarou a Lei inconstitucional. Requereu que fosse declarada a inexigibilidade do título, com fundamento no art. 535, § 5º, do CPC/2015 (art. 741, parágrafo único, do CPC/1973):

CPC 1973

CPC 2015

Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre:

(...)

II - inexigibilidade do título;

(...)

Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.

Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico, para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios autos, impugnar a execução, podendo arguir:

(...)

III - inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação;

(...)

§ 5º Para efeito do disposto no inciso III do caput deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.

 

O Juiz Federal do JEF indeferiu o pedido e determinou o prosseguimento do cumprimento de sentença.

Inconformado, o INSS impetrou mandado de segurança perante a Turma Recursal.

A Turma Recursal negou a segurança, sob o fundamento de que o art. 535, § 5º, do CPC/2015 (art. 741, parágrafo único, do CPC/1973) não seria aplicável aos Juizados Especiais Federais.

Segundo o acórdão, o CPC não seria, em regra, aplicável aos Juizados Especiais, salvo nos casos em que houver omissão nas Leis específicas dos Juizados.

No caso, há regra específica tratando sobre as hipóteses de cabimento dos embargos à execução no âmbito dos Juizados. Trata-se do art. 52, IX, da Lei nº 9.099/95:

Art. 52. A execução da sentença processar-se-á no próprio Juizado, aplicando-se, no que couber, o disposto no Código de Processo Civil, com as seguintes alterações:

(...)

IX - o devedor poderá oferecer embargos, nos autos da execução, versando sobre:

a) falta ou nulidade da citação no processo, se ele correu à revelia;

b) manifesto excesso de execução;

c) erro de cálculo;

d) causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, superveniente à sentença.

 

Logo, não se afigura possível adotar subsidiariamente as disposições do CPC.

A Turma Recursal argumentou ainda que, se fosse aplicado o art. 535, § 5º, do CPC/2015 (art. 741, parágrafo único, do CPC/1973), na prática, isso significaria admitir, nos Juizados Especiais, a rescisão da sentença transitada em julgado. Ocorre que não cabe ação rescisória nos juizados especiais, conforme previsão expressa contida no art. 59 da Lei 9.099/95:

Art. 59. Não se admitirá ação rescisória nas causas sujeitas ao procedimento instituído por esta Lei.

 

O INSS não concordou e interpôs recurso extraordinário.

 

O STF concordou com os argumentos da Turma Recursal?

NÃO.

 

O que acontece se uma sentença transitada em julgado estiver em sentido contrário ao posicionamento do STF?

1) Se a decisão do STF for anterior ao trânsito em julgado:

Basta que a parte prejudicada, no cumprimento de sentença, alegue a inexigibilidade do título judicial.

É o que prevê o art. 741 do CPC/1973 (art. 525, § 1º, III e §§ 12 e 14; e art. 535, § 5º, do CPC/2015).

Esses dispositivos foram julgados constitucionais pelo Plenário do STF na ADI 2418/DF, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 4/5/2016 (Info 824).

Vale ressaltar que, para a aplicação do art. 741 do CPC/1973 (art. 525, § 1º, III e §§ 12 e 14; e art. 535, § 5º, do CPC/2015), é indispensável que a decisão do STF tenha sido proferida antes do título executivo.

Tais dispositivos somente podem ser aplicados quando o órgão julgador, mesmo já havendo decisão do STF sobre o tema, decide em sentido contrário ao que o Supremo havia deliberado.

A sentença já deve ter nascido sendo contrária ao entendimento do STF. O vício na sentença deve ser um “defeito genético”, ou seja, já nasceu com ela (nesse sentido: Fredie Didier, Leonardo Cunha, Luiz Guilherme Marinoni).

Ex: em 2012, o STF decidiu que a lei X é inconstitucional; em 2013, o juiz julga a causa aplicando a lei X; mesmo se esta decisão transitar em julgado, o título executivo será inexigível porque aplicou lei já considerada inconstitucional pelo STF.

Essa exigência passou a ser prevista de forma expressa no art. 525, § 14 do CPC 2015:

Art. 525 (...)

§ 14. A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda.

 

2) Se a decisão do STF for posterior ao trânsito em julgado:

Cabe ação rescisória.

Se a sentença transitou em julgado aplicando a Lei X e, somente depois de algum tempo, o STF declarou que essa lei é inconstitucional, a única solução será a propositura de ação rescisória.

Foi o que decidiu o STF no RE 730.462:

A decisão do STF que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo não produz a automática reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado entendimento diferente; para que tal ocorra, será indispensável a interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria, nos termos do art. 485, V, do CPC 1973, observado o respectivo prazo decadencial. Ressalva-se desse entendimento, quanto à indispensabilidade da ação rescisória, a questão relacionada à execução de efeitos futuros da sentença proferida em caso concreto sobre relações jurídicas de trato continuado.

STF. Plenário RE 730462, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 28/05/2015 (Repercussão Geral – Tema 733).

 

O CPC/2015 previu expressamente que, se a decisão do STF declarando inconstitucional a norma foi superveniente (posterior) ao trânsito em julgado da sentença exequenda, caberá ação rescisória, com prazo contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF. Veja:

Art. 525 (...)

§ 15.  Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

 

Os dispositivos acima se aplicam também nos Juizados Especiais mesmo com a previsão de que não cabe ação rescisória (art. 59 da Lei nº 9.099/95)?

SIM.

O art. 59 da Lei nº 9.099/95 veda expressamente a propositura de ação rescisória nos processos dos Juizados Especiais. Confira:

Art. 59. Não se admitirá ação rescisória nas causas sujeitas ao procedimento instituído por esta Lei.

 

Acontece, no entanto, que, os pronunciamentos jurisdicionais da Suprema Corte são decisões de caráter nacional, cujos efeitos se irradiam às demais instâncias jurisdicionais.

Não é possível se permitir que a decisão contrária ao posicionamento do STF continue prevalecendo sob pena de se vulnerar o papel de guardião da Lei Maior atribuído ao STF.

Logo, é possível construir duas conclusões:

1) Se a decisão transitada em julgado descumpriu claramente o precedente do STF a respeito da questão constitucional, o Juízo ou o Tribunal: cabe a alegação de inexigibilidade do título executivo judicial;

2) Por outro lado, nos casos em que, à época da decisão transitada em julgado, não havia ainda pronunciamento do Plenário do STF, é de se permitir que o título em desconformidade seja rescindindo, visando a trazer segurança jurídica e harmonia à interpretação constitucional, impondo-se a salvaguarda da ordem jurídica e a proteção à força normativa da Lei Maior, cuja interpretação constitucional destoava daquela conferida pelo STF. Sendo assim, em relação aos processos transitados em julgado, sob o rito sumaríssimo, antes da decisão do STF nos processos paradigmas, deve-se assentar o cabimento de ação rescisória, sob pena de inexistir saída no ordenamento jurídico para sustar a sangria dos cofres públicos, o que é inadmissível frente à crescente preocupação fiscal e orçamentária.

O postulado protetivo da coisa julgada (art. 5º XXXVI) não é absoluto, podendo sua incidência ser diminuída quando presente outro princípio constitucional de igual ou maior envergadura.

Nas exatas palavras do Min. Gilmar Mendes, “deve-se excluir da vedação legal do art. 59 da Lei 9.099/95 as demandas do procedimento sumaríssimo nas quais os títulos executivos tiverem transitado em julgado e cujos conteúdos estejam em desconformidade com qualquer aplicação ou interpretação, anterior ou posterior, contrária ao decidido pelo plenário do STF, em controle concentrado ou difuso de constitucionalidade”.

 

Teses firmadas:

O STF firmou as seguintes teses de repercussão geral:

1) É possível aplicar o art. 741, parágrafo único, do CPC/1973 (atual art. 535, § 5º, do CPC/2015), aos feitos submetidos ao procedimento sumaríssimo, desde que o trânsito em julgado da fase de conhecimento seja posterior a 27/8/2001 (data da MP 2180-35/2001, que incluiu o parágrafo único no art. 741 do CPC/1973);

2) É admissível a invocação como fundamento da inexigibilidade de ser o título judicial fundado em “aplicação ou interpretação tida como incompatível com a Constituição” quando houver pronunciamento jurisdicional, contrário ao decidido pelo Plenário do STF, seja no controle difuso, seja no controle concentrado de constitucionalidade;

3) O art. 59 da Lei nº 9.099/95 não impede a desconstituição da coisa julgada quando o título executivo judicial se amparar em contrariedade à interpretação ou sentido da norma conferida pela Suprema Corte, anterior ou posterior ao trânsito em julgado, admitindo, respectivamente, o manejo:

(i) de impugnação ao cumprimento de sentença ou

(ii) de simples petição, a ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória.

STF. Plenário. RE 586.068/PR, Rel. Min. Rosa Weber, redator para o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 9/11/2023 (Repercussão Geral – Tema 100) (Info 1116).

 

Em suma:

As decisões definitivas de Juizados Especiais podem ser invalidadas quando se fundamentarem em norma, aplicação ou interpretação jurídicas declaradas inconstitucionais pelo Plenário do STF — em controle difuso ou concentrado de constitucionalidade — antes ou depois do trânsito em julgado.

STF. Plenário. RE 586.068/PR, Rel. Min. Rosa Weber, redator para o acórdão Min. Gilmar Mendes, julgado em 9/11/2023 (Repercussão Geral – Tema 100) (Info 1116).


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