domingo, 28 de abril de 2024

A ausência de prova técnica para a comprovação do efetivo dano ambiental não inviabiliza o reconhecimento do dever de reparação ambiental, no caso de despejo irregular de esgoto

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

O Pernambuco Iate Clube é uma associação privada que ocupa uma localização privilegiada na confluência do rio Capibaribe com o Oceano Atlântico, em Recife (PE). O local para a ocupação desse clube foi cedido pelo Porto do Recife. O objetivo principal do clube é fomentar a prática de esportes náuticos e similares.

Um dos sócios do clube, discordando da forma como a associação estava sendo conduzida, denunciou ao Ministério Público que um restaurante, aberto ao público, teria sido instalado nas dependências do Iate Clube. Esse sócio narrou que os responsáveis pelo bar, além de estarem instalados indevidamente em área de propriedade da União, estariam descartando dejetos sanitários (esgoto) diretamente nos arrecifes que separam o rio do mar.

 

Ação civil pública

O Ministério Público Federal instaurou inquérito civil na qual foram realizadas diversas diligências.

Em seguida, o Procurador da República ajuizou ação civil pública contra o Pernambuco Iate Clube. Na inicial, o membro do Parquet descreveu que “evidenciou-se, de forma persistente, a poluição hídrica causada por fossa instalada ao nível da maré e pelo despejo de águas servidas diretamente no estuário do rio Capibaribe”. Requereu, ao final, o pagamento de indenização ambiental (R$ 90.000,00) e de danos morais coletivos (R$ 60.000,00), além de demolição ou, ao menos, adequação do estabelecimento às normas ambientais.

O restaurante cessou as atividades alguns meses após o ajuizamento da ação.

Logo na primeira oportunidade de se manifestar nos autos, o Pernambuco Iate Clube defendeu a necessidade de realização de perícia para apurar se realmente existiram danos ambientais; requereu, assim, “a expedição de ofício para a Universidade Federal de Pernambuco, requisitando a designação de profissional técnico qualificado para realizar a análise da qualidade da água”.

O Juízo de 1ª Instância determinou a realização da perícia, nomeando, para tanto, especialista em Engenharia Ambiental, que apresentou proposta de R$ 42.260,00.

O Ministério Público Federal se insurgiu contra essa decisão. Argumentou que “o dano ambiental é ínsito à constatação da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Recife de que o restaurante despejava esgoto (mantinha fossa) na margem do rio, sem licença ambiental”. Ele também argumentou que, em razão do grande tempo transcorrido e do fato de o restaurante já ter encerrado suas atividades, seria inviável verificar qualquer dano pretérito no local.

O clube réu, por sua vez, informou que não tinha recursos para custear os honorários periciais propostos.

 

Sentença julgou parcialmente procedente

Diante desse cenário, o Juízo Federal dispensou a perícia e julgou parcialmente procedentes os pedidos feitos na ACP, condenando o clube réu a pagar “indenização a título de dano ambiental no valor de R$ 20.000,00 (vinte) mil reais, e dano moral coletivo no valor de R$ 15.000,00 (quinze) mil reais”. O juiz entendeu que a falta de perícia de constatação do dano em nada prejudica, no caso, o arbitramento:

“26. Dito isto, estou convicto quanto à existência de nexo causal entre a conduta dos réus, ao lançamento irregular de esgoto e a degradação ambiental, haja vista a impossibilidade de retorno ao status quo ante, e diante da degradação ao meio ambiente resultante do lançamento do esgoto clandestino proveniente do Restaurante Casa de Banho.

27. Acrescento que a ausência de laudo pericial em nada prejudica a cognição deste Juízo, pois é de fácil saber que o lançamento de esgoto sob a influência de marés causa poluição hídrica, a perícia serviria, apenas, para mesurar o impacto ambiental causado. Isto posto, reconheço o dano ambiental causado, mas o fixo em quantia menor, posto que cessada a agressão ao meio ambiente e a ausência de laudo pericial apto a caracterizar o impacto ambiental.”

 

A associação demandada interpôs recurso de apelação insistindo que a perícia era indispensável para se concluir pela ocorrência de dano ambiental efetivo e concreto.

 

TRF5 afastou a condenação

O TRF5 deu provimento ao recurso do clube e afastou a condenação argumentando que ficou caracterizada a infração ambiental, mas não ficou provado o dano ambiental.

“7. É certo que houve o vertimento de esgoto, caracterizando-se isso como infração ambiental, passível da aplicação de sanções como a multa administrativa. Todavia, a demanda de reparação civil daí decorrente exige não apenas a ocorrência de infração, senão que a demonstração do dano, assim entendido como efetiva e sensível agressão sofrida pelo meio ambiente. Vale dizer, nem toda infração necessariamente acarreta dano, pois esse deve ser compreendido sob a ideia não de "mera" violação a norma jurídica (para reprimi-la servem as sanções administrativas), senão que de lesão concreta a um patrimônio jurídico, seja ele personificado ou não, como no caso do meio ambiente.

8. No caso presente, não houve a comprovação do dano, embora seja certo ter havido a infração. Com efeito, em momento algum a inicial cuidou de especificar qual marca deletéria o despejo do esgoto impactou no ambiente de entorno (...)”

 

Recurso especial

O Ministério Público interpôs recurso especial argumentando que o TRF negou vigência ao art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81 que prevê a obrigação do poluidor de indenizar:

Art. 14 (...)

§ 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

 

Para o MPF, o dano causado pelo derramamento de esgoto é consequência natural da infração cometida, não sendo necessária perícia para atestar isso. “Não é razoável concluir que o lançamento de esgoto em área estuarina, realizada por um empreendimento comercial que ali se instaurou durante anos, seja inepta para provocar dano ambiental.”

 

O STJ concordou com os argumentos do MPF? O recurso especial foi provido?

SIM.

Existe responsabilidade ambiental decorrente do lançamento irregular de esgoto próximo a uma área de arrecifes mesmo sem que tenha sido realizada prova técnica pericial para comprovar esses danos.

Embora não haja um conceito singular positivado de dano ambiental, o “bem ambiental” é tutelado diretamente pela CF/88, que, em seu art. 225, estabelece a obrigação específica de manutenção da qualidade ambiental, não apenas para o poder público, mas, em igual medida, também a toda a coletividade.

O Pnama (Lei nº 6938/81), por sua vez, trata de degradação da qualidade ambiental e da poluição, respectivamente, em seu art. 3º, incisos II e IV, definindo como poluidor aquele que causa degradação da qualidade ambiental, assim conceituada como uma alteração adversa das características do meio ambiente. Veja:

Art. 3º Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:

(...)

II - degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente;

(...)

IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental;

 

O art. 14, § 1º, da Lei estabelece que os poluidores, ou seja, todos aqueles que, direta ou indiretamente, causem uma alteração adversa das características do meio ambiente, são responsáveis pela reparação do dano ambiental, independentemente da existência de culpa:

Art. 14 (...)

§ 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

 

Observa-se, portanto, que a responsabilidade civil por danos ambientais decorre do princípio do poluidor-pagador, em que o poluidor, que internaliza os lucros, não pode socializar a degradação, devendo, assim, responder por ela.

O Superior Tribunal de Justiça entende ainda que o princípio da precaução pressupõe a inversão do ônus probatório, competindo a quem supostamente promoveu o dano ambiental, comprovar que não o causou ou que a substância lançada ao meio ambiente não lhe era potencialmente lesiva (REsp n. 1.060.753/SP, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 1/12/2009, DJe de 14/12/2009).

Desse modo, existindo uma desconfiança, ou seja, um risco de que determinada atividade possa gerar um dano ao meio ambiente ou à saúde humana, deve-se considerar que esta atividade acarreta sim este dano. Nesse sentido: STJ. 2ª Turma. REsp 1.454.281/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 16/8/2016, DJe de 9/9/2016; e STJ. 1ª Turma. REsp 1.049.822/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 23/4/2009, DJe de 18/5/2009.

Sobre o tema, vale lembrar ainda a súmula 618 do STJ:

Súmula 618-STJ: A inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental.

 

Voltando ao caso concreto

Na hipótese dos autos, ficou constatado, sem dúvidas, que houve o lançamento irregular de esgoto e seus dejetos, sem qualquer tratamento, em área situada sobre a muralha de arrecifes, que guarnece o estuário de um rio.

Dessa forma, diante dos princípios da precaução e da prevenção e dado o alto grau de risco que a atividade de despejo de dejetos, por meio do lançamento irregular de esgoto - sem qualquer tratamento e em área próxima a localização de arrecifes - representa para o meio ambiente, a ausência de prova técnica pela parte autora não inviabilizada o reconhecimento do dever de reparação ambiental.

 

Em suma:

A ausência de prova técnica para a comprovação do efetivo dano ambiental não inviabiliza o reconhecimento do dever de reparação ambiental, no caso de despejo irregular de esgoto. 

STJ. 2ª Turma. REsp 2.065.347-PE, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 27/2/2024 (Info 805).

 

Qual o prazo que o MPF tinha para pleitear a reparação dos danos causados?

Não havia prazo. Trata-se de pretensão imprescritível:

É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental.

STF. Plenário. RE 654833, Rel. Alexandre de Moraes, julgado em 20/04/2020 (Repercussão Geral – Tema 999) (Info 983 ).


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