quinta-feira, 11 de abril de 2024

O CPC prevê que os recursos do fundo partidário são impenhoráveis. O partido político pode renunciar a essa impenhorabilidade?

OS VALORES DO FUNDO PARTIDÁRIO SÃO IMPENHORÁVEIS

Imagine a seguinte situação hipotética:

A empresa de publicidade Alfa ajuizou ação de cobrança contra o Partido Beta em virtude do não pagamento pela prestação de serviços de marketing eleitoral realizados na campanha.

O pedido foi julgado procedente, determinando o pagamento de R$ 3 milhões.

Como não houve pagamento voluntário após a condenação, iniciou-se a fase de cumprimento de sentença.

O juiz determinou a busca pelo Sisbajud e a quantia devida foi penhorada em uma conta bancária em nome do partido político.

Após a penhora, o partido apresentou impugnação alegando que a conta bancária onde os valores foram penhorados é utilizada exclusivamente para o recebimento de repasse oriundo do Fundo Partidário e, portanto, trata-se de verba impenhorável.

 

Está correta a tese do partido?

SIM. O CPC estabelece um rol de bens que não podem ser objeto de penhora. Dentre esses bens impenhoráveis, encontram-se previstos os “recursos do fundo partidário”. Veja o que diz o art. 833, XI, do CPC/2015:

Art. 833. São impenhoráveis:

(...)

XI - os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei;

 

O que é o fundo partidário?

O Fundo Partidário é um valor pago aos partidos políticos para que estes se mantenham. Esse valor provém de várias fontes. A maior parte desses recursos é oriunda do orçamento da União (isso mesmo: a União dá dinheiro aos partidos políticos) e o restante vem de multas, penalidades, doações e outros recursos financeiros previstos na lei.

 

Para que serve o dinheiro do fundo partidário?

Segundo o art. 44 da Lei nº 9.096/95, os recursos oriundos do Fundo Partidário serão utilizados pelos partidos políticos para:

I - na manutenção das sedes e serviços do partido, permitido o pagamento de pessoal, a qualquer título, observado, do total recebido, os seguintes limites:

a) 50% (cinquenta por cento) para o órgão nacional;

b) 60% (sessenta por cento) para cada órgão estadual e municipal;

II - na propaganda doutrinária e política;

III - no alistamento e campanhas eleitorais;

IV - na criação e manutenção de instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, sendo esta aplicação de, no mínimo, vinte por cento do total recebido.

V - na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e executados pela Secretaria da Mulher ou, a critério da agremiação, por instituto com personalidade jurídica própria presidido pela Secretária da Mulher, em nível nacional, conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% (cinco por cento) do total;

VI - no pagamento de mensalidades, anuidades e congêneres devidos a organismos partidários internacionais que se destinem ao apoio à pesquisa, ao estudo e à doutrinação política, aos quais seja o partido político regularmente filiado;

VII - no pagamento de despesas com alimentação, incluindo restaurantes e lanchonetes;

VIII - na contratação de serviços de consultoria contábil e advocatícia e de serviços para atuação jurisdicional em ações de controle de constitucionalidade e em demais processos judiciais e administrativos de interesse partidário, bem como nos litígios que envolvam candidatos do partido, eleitos ou não, relacionados exclusivamente ao processo eleitoral;

IX - (VETADO);

X - na compra ou locação de bens móveis e imóveis, bem como na edificação ou construção de sedes e afins, e na realização de reformas e outras adaptações nesses bens;

XI - no custeio de impulsionamento, para conteúdos contratados diretamente com provedor de aplicação de internet com sede e foro no País, incluída a priorização paga de conteúdos resultantes de aplicações de busca na internet, inclusive plataforma de compartilhamento de vídeos e redes sociais, mediante o pagamento por meio de boleto bancário, de depósito identificado ou de transferência eletrônica diretamente para conta do provedor, proibido, nos anos de eleição, no período desde o início do prazo das convenções partidárias até a data do pleito.

 

Voltando ao exemplo hipotético:

A dívida contraída pelo Partido foi oriunda de despesas realizadas com a campanha eleitoral. De acordo com o art. 44, III, os recursos do Fundo Partidário são destinados ao pagamento de gastos com a campanha eleitoral.

Diante disso, a empresa de publicidade alegou o seguinte: ora, se a própria Lei afirma que os recursos do Fundo Partidário são utilizados para pagamento de despesas eleitorais isso significa que, se a execução estiver cobrando o pagamento de despesas eleitorais, então, neste caso, seria possível a penhora das verbas do Fundo Partidário.

 

Essa tese da empresa de publicidade foi aceita pelo STJ? É possível a penhora dos recursos do Fundo Partidário se a execução estiver cobrando alguma das despesas do art. 44 da Lei n 9.096/95?

NÃO. A tese não foi aceita. O STJ decidiu que:

Os recursos do Fundo Partidário são impenhoráveis, inclusive na hipótese em que a origem do débito esteja relacionada às atividades previstas no art. 44 da Lei nº 9.096/95.

O CPC não faz essa distinção, não sendo permitido que seja realizada pelo intérprete.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.474.605-MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 7/4/2015 (Info 562).

STJ. 4ª Turma. REsp 1891644/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 06/10/2020.

 

O Tribunal Superior Eleitoral, em precedentes recentes, admitiu a mitigação da regra da impenhorabilidade do fundo partidário nas situações em que a Justiça Eleitoral constata a malversação dos recursos de mesma natureza, a fim de garantir a efetividade de suas decisões (TSE, EDcl no REspe 060021630, DJE de 04/10/2023; TSE, REspe 060021630, DJe de 30/03/2023).

 

O PARTIDO POLÍTICO PODE RENUNCIAR À IMPENHORABILIDADE DO FUNDO PARTIDÁRIO, DESDE QUE PARA O PAGAMENTO DE DÍVIDA DO ART. 44 DA LEI 9.096/95

Imagine outra situação hipotética:

A empresa de publicidade Alfa ajuizou ação de cobrança contra o Partido em virtude do não pagamento pela prestação de serviços de marketing eleitoral realizados na campanha.

Houve acordo entre as partes. O partido político reconheceu a dívida e se obrigou a pagar a quantia faltante em 30 parcelas mensais, mediante o repasse de parte do fundo partidário recebido mensalmente pelo Diretório Estadual.

 

Previsão no acordo de que o partido renunciava a impenhorabilidade do fundo partidário

Ficou consignado no acordo que, em caso de inadimplemento, além do vencimento antecipado e da incidência de multa, o partido devedor renunciava a impenhorabilidade do fundo partidário. Assim, no acordo ficou expressamente previsto que, havendo inadimplemento, seria possível a penhora dos recursos recebidos pelo partido do fundo partidário.

As partes pediram a homologação do acordo pelo juiz.

O magistrado recusou-se a homologar o acordo alegando que os recursos do fundo partidário possuem natureza pública e que não é possível que o partido renunciasse à garantia de sua impenhorabilidade.

 

Agiu corretamente o juiz?

NÃO.

Na primeira parte da explicação, vimos que os recursos do fundo partidário têm natureza pública, razão pela qual são impenhoráveis (art. 833, XI, do CPC). Além disso, eles somente podem ser destinados para as despesas previstas no art. 44 da Lei nº 9.096/95. Em outras palavras, são verbas com vinculação específica.

Vale ressaltar, contudo, que a natureza pública dos recursos do fundo partidário não os torna indisponíveis, já que os partidos podem dispor dessas verbas em conformidade com aquilo que é previsto na lei.

Assim, o partido político pode renunciar à proteção da impenhorabilidade dos recursos do fundo partidário, desde que o faça para viabilizar o pagamento de dívida contraída para os fins previstos no art. 44 da Lei nº 9.096/95.

No caso concreto, no curso da ação de cobrança, as partes celebraram acordo, no qual o partido renunciou à impenhorabilidade dos recursos do fundo partidário na hipótese de descumprimento da avença. Considerando que a dívida se enquadra no disposto no art. 44, II, da Lei nº 9.096/95 (“propaganda doutrinária e política”), a renúncia é válida.

 

Em suma:

O partido político pode renunciar à impenhorabilidade dos recursos do fundo partidário, desde que o faça para viabilizar o pagamento de dívida contraída, conforme art. 44 da Lei nº 9.096/95. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.101.596-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 12/3/2024 (Info 804).


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