quarta-feira, 18 de março de 2015

A Lei 13.106/2015 e o art. 243 do ECA: passa a ser crime fornecer bebida alcoólica para crianças e adolescentes



Lei 13.106/2015 e o art. 243 do ECA
Foi publicada hoje a Lei n.° 13.106/2015, que altera o ECA para tornar crime vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar bebida alcoólica a criança ou a adolescente.

A Lei n.° 13.106/2015 modificou o art. 243 do ECA, que passa a ter a seguinte redação:

Art. 243. Vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar, ainda que gratuitamente, de qualquer forma, a criança ou a adolescente, bebida alcoólica ou, sem justa causa, outros produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica:
Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave.

Redação anterior
Compare a redação anterior com a atual:
ANTERIOR
ATUAL
Art. 243. Vender, fornecer ainda que gratuitamente, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por utilização indevida:
Pena – detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave.
Art. 243. Vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar, ainda que gratuitamente, de qualquer forma, a criança ou a adolescente, bebida alcoólica ou, sem justa causa, outros produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica:

Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave.


A punição penal da conduta de fornecer bebida alcoólica a crianças e adolescentes

Antes da Lei n.° 13.106/2015, quem vendia bebida alcoólica a criança ou adolescente cometia crime do art. 243 do ECA?
NÃO. O STJ entendia que o art. 243 do ECA, ao falar em “produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica” não abrangia as bebidas alcoólicas. Isso porque, na visão do STJ, o ECA, quando quis se referir às bebidas alcoólicas, o fez expressamente, como no caso do art. 81, II e III, onde prevê punições administrativas para essa venda:
Art. 81. É proibida a venda à criança ou ao adolescente de:
II - bebidas alcoólicas;
III - produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica ainda que por utilização indevida;

E o agente ficava sem nenhuma punição penal?
O sujeito que “servia” bebida alcoólica para crianças e adolescentes não cometia crime, mas respondia pela contravenção penal prevista no art. 63, I do Decreto-lei n.° 3.688/41:
Art. 63. Servir bebidas alcoólicas:
I – a menor de dezoito anos;
(...)
Pena – prisão simples, de dois meses a um ano, ou multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis.

Assim, por mais absurdo que pareça, a conduta de fornecer bebidas alcoólicas para crianças e adolescentes, apesar de gravíssima, não era crime. O agente respondia apenas por contravenção penal.

Veja um precedente recente do STJ espelhando esse entendimento:
(...) A entrega a consumo de bebida alcoólica a menores é comportamento deveras reprovável. No entanto, é imperioso, para o escorreito enquadramento típico, que se respeite a pedra angular do Direito Penal, o princípio da legalidade. Nesse cenário, em prestígio à interpretação sistemática, levando em conta os arts. 243 e 81 do ECA, e o art. 63 da Lei de Contravenções Penais, de rigor é o reconhecimento de que neste último comando enquadra-se o comportamento em foco. (...)
(STJ. 6ª Turma. HC 167.659/MS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 07/02/2013)

O que fez a Lei n.° 13.106/2015?
• Passou a prever, expressamente, que é crime vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar bebida alcoólica a criança ou a adolescente.
• Revogou a contravenção penal prevista no art. 63, I, considerando que esta conduta agora é punida no art. 243 do ECA.

Não sou entusiasta da criminalização desenfreada de novas condutas, mas esta era uma mudança necessária, considerando que havia uma proteção deficiente a este bem jurídico tão importante e protegido constitucionalmente (art. 227). Era inadmissível que o fornecimento de bebida alcoólica a crianças e adolescentes continuasse sendo punido apenas como contravenção penal, especialmente se considerarmos os malefícios do consumo precoce de álcool por pessoas que ainda estão com seu organismo em formação, causando dependência física ou psíquica, além de efeitos deletérios à saúde.

Vamos aproveitar que estamos estudando o tema para revermos os principais aspectos do crime previsto no art. 243 do ECA:

Em que consiste o delito:
- Vender (comércio formal ou informal),
- fornecer (expressão ampla que significar dar),
- servir (por na mesa, no copo etc.),
- ministrar (aplicar em alguém) ou
- entregar (deixar à disposição de alguém),
- ainda que gratuitamente,
- de qualquer forma,
- a criança (pessoa que tem até 12 anos de idade incompletos);
- ou a adolescente (pessoa que tem entre 12 e 18 anos de idade),
- bebida alcoólica (líquido que contenha álcool etílico em sua composição),
- ou outros produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica (ex.1: remédio de venda controlada; ex.2: cola de sapateiro).

Bem jurídico: saúde física e psíquica das crianças e adolescentes.

Sujeito ativo: pode ser praticado por qualquer pessoa (crime comum).

Sujeito passivo: a vítima deve ser pessoa menor de 18 anos (criança ou adolescente).

Elemento subjetivo: dolo (direto ou eventual).
Obs.1: não se exige elemento subjetivo especial (“dolo específico”).
Obs.2: não haverá crime se o sujeito agiu apenas com culpa.

A questão do dolo eventual:
O tipo penal do art. 243 do ECA não admite a forma culposa. No entanto, importante ressaltar que o sujeito poderá responder pelo delito caso tenha agido com dolo eventual. Ex: jovem de 15 anos, com aparência infantil, pede ao dono do bar que lhe venda uma vodka; o proprietário pergunta a idade do rapaz e ele responde que tem 18 anos; o dono do estabelecimento não acredita na afirmação, mas pensa “tanto faz, não me importo”, e vende a bebida; o agente responderá pelo crime do art. 243 do ECA, tendo atuado com dolo eventual porque não tinha certeza da idade, mas pensava concretamente que poderia ser adolescente e, apesar disso, demonstrou total desprezo pelo bem jurídico tutelado pela norma penal.
A punição do crime por dolo eventual reforça a necessidade de que os proprietários e funcionários de estabelecimentos onde se venda bebidas alcoólicas exijam documento de identidade dos compradores, prática usual em outros países do mundo onde se pune com rigor a comercialização de tais produtos a crianças e jovens.

A questão do erro de tipo:
É possível também que se reconheça, no caso concreto, a ocorrência de erro de tipo quanto à condição de adolescente da vítima. Imaginemos que o adolescente tenha conseguido ingressar em uma boate exclusiva para adultos, onde há rígida exigência de apresentação do documento de identidade na portaria a fim de que só adentrem maiores de 18 anos. Esse jovem, que tem estrutura e fisionomia de adulto, chega ao bar da boate e pede um whisky. O barman serve a bebida. Obviamente, que o sujeito não responderá pelo crime porque agiu desconhecendo que o cliente era um adolescente, ou seja, desconhecia a elementar do tipo descrita no art. 243 do ECA. As peculiaridades envolvendo o caso concreto faziam com que ele acreditasse que o adquirente fosse maior de 18 anos. Trata-se de um erro sobre elemento constitutivo do tipo legal, que exclui o dolo, na forma do art. 20, caput, do CP.

Tipo misto alternativo:
Repare que o tipo penal descreveu várias condutas (verbos). Se o sujeito praticar mais de um verbo, no mesmo contexto fático e com relação à mesma vítima, responderá por um único delito, não havendo concurso de crimes nesse caso. Ex.: o dono do bar vende a ficha da cerveja, serve no copo do adolescente parte do líquido e entrega a garrafa com o restante que lá ficou. Praticou vários verbos, mas responderá por um único crime.

Fornecimento de mais de uma bebida no mesmo contexto fático:
Se o agente vende, fornece, entrega mais de uma bebida alcoólica para a mesma vítima, no mesmo contexto fático, responderá por um só crime. Ex.: durante a festa, o barman vende tequila, depois vodka, whisky e, por fim, cachaça para uma adolescente de 17 anos. Este sujeito não praticou quatro delitos diferentes, mas sim um único crime do art. 243. Obviamente que essa reiteração de conduta e com fornecimento de bebidas diferentes, o que potencializa os danos à saúde da vítima, será considerada como circunstância judicial negativa no momento da dosimetria da pena.

“Sem justa causa”
Se você ler o tipo novamente irá verificar que o legislador exigiu um “elemento normativo” para que haja a punição do sujeito: o agente deverá ter fornecido a substância “sem justa causa” (sem um justo motivo) para isso. Se estiver presente a justa causa, não haverá o crime.
Ex: se um médico psiquiatra diagnostica que determinada criança sofre de doença mental e a ela ministra um remédio de uso controlado, este profissional não responderá pelo crime porque não estará presente o elemento normativo do tipo, já que o médico possui uma justa causa para fornecer o medicamento. Trata-se de fato atípico.
Importante destacar, contudo, que esse elemento normativo do tipo não é exigido para o caso de fornecimento de bebidas alcoólicas. Em outras palavras, o legislador não cogitou que exista algum caso em que o agente possa fornecer, com justa causa, bebida alcoólica para criança e adolescente. Contudo, se for possível imaginar alguma situação nesse sentido, a solução penal terá que ser dada, a depender do caso concreto, utilizando-se das causas excludentes de antijuridicidade ou de culpabilidade.

Tipo penal aberto X norma penal em branco
Cuidado para não confundir. O delito do art. 243 do ECA não é uma norma penal em branco. Isso porque ele não depende de complemento normativo. Não existe uma lei, decreto, portaria etc. que diga o que são bebidas alcoólicas ou produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica.
O delito do art. 243 do ECA é um tipo penal aberto e qualquer produto poderá ser enquadrado no conceito fornecido, desde que possua, em sua composição, substâncias que possam causar dependência física ou psíquica.
Repare, portanto, que, neste ponto, difere bastante do tipo penal do art. 33 da Lei de Drogas, um exemplo clássico de norma penal em branco.

“Se o fato não constitui crime mais grave”
O agente só responderá pelo crime do art. 243 do ECA se essa mesma conduta que ele praticou não constituir crime mais grave. Desse modo, o delito em questão é expressamente subsidiário. Ex: se um traficante fornece maconha para um adolescente, responderá pelo crime do art. 33 c/c art. 40, VI, da Lei n.° 11.343/2006 (e não pelo art. 243 do ECA, que é menos grave).

Consumação:
O delito é formal (não depende, para a sua consumação, da ocorrência de um resultado naturalístico). Assim, tendo havido a venda, fornecimento, entrega etc. o crime já se consumou, mesmo que a criança ou adolescente não ingira a bebida ou use o produto. Repetindo: não se exige o efetivo consumo para que o delito se consuma. Também não é necessário que a vítima tenha algum problema de saúde por conta da substância. O delito é formal, basta a conduta, não se exigindo resultado. Trata-se de crime de perigo.

Tentativa: é possível.

Duas questões finais interessantes:

1) Se o agente fornecer bebida alcoólica que não será consumida pela criança ou adolescente, haverá o crime? Ex: Joãozinho, 15 anos, vai até a mercearia do bairro comprar cerveja para seu pai. Se houver a venda, mesmo que fique provado que a bebida não era para o jovem, haverá o delito?
SIM. O delito é formal, ou seja, não depende, para a sua consumação, da ocorrência de um resultado naturalístico. Assim, tendo havido a venda, fornecimento, entrega etc., o crime já se consumou, mesmo que a criança ou adolescente não ingira a bebida ou use o produto. O tipo penal não exige que a criança ou o adolescente seja o destinatário final da bebida ou produto. O legislador quer antecipar a proteção e evitar que a criança ou adolescente tenha acesso a tais mercadorias.

2) Se o pai, a título de brincadeira, permite que o filho, criança ou adolescente, dê um gole em sua bebida alcoólica, haverá crime?
Em tese, sim. A referida conduta preenche formalmente os requisitos típicos do art. 243 do ECA. O fato de ser pai ou mãe da criança ou do adolescente não confere ao genitor(a) livre disponibilidade sobre a saúde do(a) filho(a). Segundo a literatura médica, não existem níveis seguros de ingestão de álcool para pessoas menores de 18 anos. Em outras palavras, por menor que seja o consumo, ele já tem o potencial de causar danos à saúde física e/ou psíquica da criança ou adolescente.
Poder-se-ia iniciar um debate quanto à eventual aplicação do princípio da insignificância neste caso, mas em se tratando de um bem jurídico tão relevante, os critérios para sua incidência deverão ser ainda mais rigorosos.

Classificação doutrinária do delito: crime comum, de forma livre, comissivo, doloso, anormal, de perigo, unissubjetivo, plurissubistente, instantâneo e que admite tentativa.

Infração administrativa
O ECA, em sua redação original, já previa como proibida a comercialização de bebidas alcoólicas para menores de 18 anos. Veja:
Art. 81. É proibida a venda à criança ou ao adolescente de:
II - bebidas alcoólicas;

Não havia, contudo, uma punição administrativa expressa para quem descumprisse essa vedação. Pensando nisso, a Lei n.° 13.106/2015 acrescentou artigo ao ECA estipulando uma multa para quem desatende a regra:
Art. 258-C. Descumprir a proibição estabelecida no inciso II do art. 81:
Pena – multa de R$ 3.000,00 (três mil reais) a R$ 10.000,00 (dez mil reais);

Assim, por exemplo, se um dono de bar vende cerveja para um jovem de 17 anos, ele responderá agora pelo crime do art. 243 do ECA e também, como sanção administrativa, pela multa do art. 258-C.


Resumindo:
O QUE FEZ A LEI N.° 13.106/2015:

• Passou a prever, expressamente, que é crime vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar bebida alcoólica a criança ou a adolescente.

• Revogou a contravenção penal prevista no art. 63, I, do Decreto-lei 3.688/41, considerando que esta conduta agora é punida no art. 243 do ECA.

• Fixou multa administrativa de R$ 3 mil a R$ 10 mil para quem vender bebidas alcoólicas para crianças ou adolescentes (essa multa é independente da sanção criminal).



Márcio André Lopes Cavalcante
Professor. Juiz Federal. 
Foi Defensor Público, Promotor de Justiça e Procurador do Estado.




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