quarta-feira, 25 de julho de 2018

Depositário judicial que vende os bens não pratica peculato



Imagine a seguinte situação hipotética:
A Fazenda Pública estadual ingressou com execução fiscal contra a empresa JC Calçados.
Foram penhorados 200 pares de sapatos, avaliados em R$ 10 mil.
O juiz da execução determinou que João (sócio da empresa) deveria ficar como depositário judicial desses sapatos.
Alguns meses depois o juiz expediu mandado de constatação e reavaliação dos bens (sapatos).
O oficial de justiça certificou ser inviável o cumprimento da determinação judicial porque o estabelecimento comercial encontrava-se fechado.
Houve, então, determinação judicial para que João apresentasse os bens penhorados ou o dinheiro correspondente. Ele informou que os havia vendido.
Interrogado no inquérito policial, João declarou que vendeu os pares de calçados porque ele necessitava de dinheiro para pagar seus funcionários.
Diante disso, o Ministério Público denunciou João pela prática do crime de peculato (art. 312 do CP):
Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

Segundo o MP, João, na condição de depositário judicial, é um “auxiliar do juízo” (art. 149 do CPC/2015), devendo, portanto, ser considerado como funcionário público para os fins penais, nos termos do art. 327 do CP:
Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

A tese do MP foi acolhida pelo STJ?
NÃO.
O depositário judicial que vende os bens sob sua guarda não comete o crime de peculato.
STJ. 6ª Turma. HC 402.949-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 13/03/2018 (Info 623).

Comete peculato o funcionário público que se apropria de bem móvel de que tem a posse em razão do cargo.
A definição legal de cargo público é fornecida pela Lei nº 8.112/90:
Art. 3º Cargo público é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional que devem ser cometidas a um servidor.

Cargo, segundo Nucci, “é o posto criado por lei na estrutura hierárquica da Administração Pública, com denominação e padrão de vencimentos próprios, ocupado por servidor com vínculo estatutário (ex.: cargo de delegado de polícia, de oficial de justiça, de auditor da receita etc.)”. (Código penal comentado. 13ª ed., São Paulo: RTJ, 2013, p. 1.203).

O depositário judicial não ocupa cargo criado por lei, não recebe vencimento nem tem vínculo estatutário.
Trata-se de uma pessoa que, embora tenha que exercer uma função no interesse público do processo judicial, é estranha aos quadros da justiça e, pois, sem ocupar qualquer cargo público, exerce um encargo por designação do juiz (munus público).
Não ocupa, de igual modo, emprego público nem função pública. É, na verdade, um auxiliar do juízo que fica com o encargo de cuidar de bem litigioso.
Desse modo, a conduta não se enquadra na figura típica do art. 312 do CP, porque não há funcionário público, para fins penais, nos termos do art. 327 do CP, em razão da ausência da ocupação de cargo público.

Observação
Vale ressaltar que o STJ decidiu apenas que a conduta do depositário judicial que vende os bens sob sua guarda não comete o crime de peculato, pois não é funcionário público e não ocupa cargo público. No entanto, a depender das peculiaridades do caso concreto, a conduta pode configurar, em tese, os tipos penais dos arts. 168, § 1º, II, 171 ou 179 do Código Penal:
Apropriação indébita
Art. 168. Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Aumento de pena
§ 1º - A pena é aumentada de um terço, quando o agente recebeu a coisa:
(...)
II - na qualidade de tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante, testamenteiro ou depositário judicial;

Estelionato
Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.


Fraude à execução
Art. 179. Fraudar execução, alienando, desviando, destruindo ou danificando bens, ou simulando dívidas:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.



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