segunda-feira, 30 de julho de 2018

O Poder Judiciário pode determinar que o Poder Público forneça remédios que não estão previstos na lista do SUS?



Imagine a seguinte situação hipotética:
João foi diagnosticado com glaucoma e o oftalmologista prescreveu determinado colírio que, no entanto, não está especificado na lista de medicamentos de fornecimento gratuito pelo SUS (Portaria 2.982/2009 do Ministério da Saúde).

O juiz pode obrigar que o Estado forneça esse medicamento? O Poder Judiciário pode determinar que o Poder Público forneça remédios que não estão previstos na lista do SUS?
SIM, mas desde que cumpridos três requisitos fixados pelo STJ.
A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:
1) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
2) Incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e
3) Existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
STJ. 1ª Seção. REsp 1657156-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 25/04/2018 (recurso repetitivo).

Vejamos abaixo alguns dos argumentos jurídicos debatidos pelo STJ.

Inexistência de violação ao princípio da separação dos Poderes
O entendimento acima não viola o princípio da separação dos Poderes. Isso porque uma das tarefas primordiais do Poder Judiciário é atuar para a efetivação dos direitos fundamentais, especialmente aqueles que se encontram previstos na Constituição Federal.
Assim, não há que se falar em violação ao princípio da separação dos Poderes, quando o Poder Judiciário intervém no intuito de garantir a implementação de políticas públicas, notadamente, como no caso em análise, em que se busca a tutela do direito à saúde.
“Seria distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente relevantes.” (STJ. 2ª Turma. REsp 1.488.639/SE, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 16/12/2014).
É a posição também do STF:
(...) É firme o entendimento deste Tribunal de que o Poder Judiciário pode, sem que fique configurada violação ao princípio da separação dos Poderes, determinar a implementação de políticas públicas nas questões relativas ao direito constitucional à saúde. (...)
STF. 1ª Turma. ARE 947.823 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 28/6/2016.

Fundamento constitucional
O direito à saúde foi consagrado pela Constituição Federal de 1988 como direito fundamental do cidadão, corolário do direito à vida, bem maior do ser humano.
O art. 196 do Texto Constitucional estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
A propósito do tema, o STF, ao interpretar os arts. 5º, caput, e 196 da CF/88, consagrou o direito à saúde como consequência indissociável do direito à vida, assegurado a todas as pessoas (STF. 2ª Turma. ARE 685.230 AgR/MS, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 25/03/2013).
Para alcançar esse objetivo, a Carta Constitucional determinou a criação de um sistema único de saúde (SUS), que tenha como uma de suas diretrizes o “atendimento integral” da população (art. 198, II, da CF/88).

Fundamento infraconstitucional
A fim de dar concretude ao SUS, foi editada a Lei nº 8.080/90, que prevê que o Poder Público deverá fornecer assistência integral, inclusive farmacêutica:
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
(...)
Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).
(...)
Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):
I - a execução de ações:
(...)
d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica;

Em 2011, foi editada a Lei nº 12.401/2011 que incluiu diversos dispositivos na Lei nº 8.080/90 tratando sobre a assistência terapêutica e prevendo o fornecimento de medicamentos. Veja o que diz o art. 19-M, um dos dispositivos acrescentados:
Art. 19-M. A assistência terapêutica integral a que se refere a alínea d do inciso I do art. 6º consiste em:
I - dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, na falta do protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P;
(...)

O art. 19-P afirma que a dispensação (fornecimento) de medicamentos será feita com base no protocolo clínico ou de diretriz terapêutica e, na falta disso, com base nas relações de medicamentos do SUS:
Art. 19-P.  Na falta de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, a dispensação será realizada:
I - com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal do SUS, observadas as competências estabelecidas nesta Lei, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite;
II - no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, de forma suplementar, com base nas relações de medicamentos instituídas pelos gestores estaduais do SUS, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Bipartite;
III - no âmbito de cada Município, de forma suplementar, com base nas relações de medicamentos instituídas pelos gestores municipais do SUS, e a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada no Conselho Municipal de Saúde.

O art. 19-Q trata sobre o procedimento para incorporação, exclusão ou alteração, pelo SUS, de novos medicamentos:
Art. 19-Q. A incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, são atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.
(...)

O STJ entende que o fato de o medicamento não integrar a lista básica do SUS não tem o condão de eximir os entes federados do dever imposto pela ordem constitucional, porquanto não se pode admitir que regras burocráticas, previstas em portarias ou normas de inferior hierarquia, prevaleçam sobre direitos fundamentais (STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 405.126/DF, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe 26/10/2016).

Vamos agora fazer algumas observações sobre os três requisitos impostos pelo STJ:

PRIMEIRO requisito
O primeiro requisito exigido pelo STJ foi o seguinte:
“Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;”

Sobre esse primeiro requisito, é importante que sejam feitas três observações:

Primeira observação. Na I Jornada de Direito da Saúde, organizada pelo CNJ, foi aprovado o enunciado 15 dizendo que como deve ser este laudo médico. O STJ acolhe esse enunciado. Veja a sua redação:
Enunciado 15: As prescrições médicas devem consignar o tratamento necessário ou o medicamento indicado, contendo a sua Denominação Comum Brasileira (DCB) ou, na sua falta, a Denominação Comum Internacional (DCI), o seu princípio ativo, seguido, quando pertinente, do nome de referência da substância, posologia, modo de administração e período de tempo do tratamento e, em caso de prescrição diversa daquela expressamente informada por seu fabricante, a justificativa técnica.

Desse modo, a parte, quando for fazer o pedido do medicamento junto ao Poder Judiciário deverá ficar atenta a isso.

Segunda observação. Este laudo médico não precisa ser assinado por médico vinculado ao SUS:
“(...) Ressalte-se, ainda, que não há no ordenamento, jurídico brasileiro qualquer exigência que condicione o fornecimento de medicamento à prescrição exclusivamente por médico da rede pública. (...)” (STJ. AgInt no REsp 1.309.793/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 07/04/2017).

Assim, o laudo deve ser emitido pelo médico que assiste o paciente, seja ele público ou privado.
Terceira observação. O laudo médico deverá comprovar duas circunstâncias:
1ª) Imprescindibilidade ou necessidade do medicamento pleiteado para o tratamento da doença; e
2ª) Ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS.

Em outras palavras, o remédio pedido judicialmente deve ser imprescindível ou necessário e aqueles que existem no SUS não podem substitui-lo.

(...) O Supremo Tribunal Federal tem se orientado no sentido de ser possível ao Judiciário a determinação de fornecimento de medicamento não incluído na lista padronizada fornecida pelo SUS, desde que reste comprovação de que não haja nela opção de tratamento eficaz para a enfermidade. (...)
STF. 1ª Turma. RE 831.385 AgR/RS, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 06/04/2015.

(...) A alegada circunstância de que o medicamento Lantus não consta da lista de medicamentos do SUS deve ceder lugar às afirmações do médico que a acompanha, quando afiança que todos os tratamentos disponibilizados pela rede pública e já ministrados à menor mostraram-se ineficazes no combate aos vários episódios de hipoglicemias graves, com perda de consciência e crises convulsivas por ela sofridas. (...)
STJ. 1ª Turma. AgRg no REsp 1.068.105/RS, Rel. Min. Sérgio Kukina, DJe de 30/06/2016.

No mesmo sentido é o enunciado 14 da I Jornada de Direito da Saúde do CNJ: Não comprovada a inefetividade ou impropriedade dos medicamentos e tratamentos fornecidos pela rede pública de saúde, deve ser indeferido o pedido não constante das políticas públicas do Sistema Único de Saúde.

SEGUNDO requisito
Vamos relembrar o segundo requisito exigido pelo STJ: “incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito”.
Desse modo, o segundo requisito consiste na devida comprovação da hipossuficiência daquele que requer o medicamento, ou seja, que a sua aquisição implique o comprometimento da sua própria subsistência e/ou de seu grupo familiar.
Atenção! Não se exige comprovação de pobreza ou miserabilidade, mas, tão somente, a demonstração da incapacidade de arcar com os custos referentes à aquisição do medicamento prescrito.
Ex: a pessoa pode ser servidora pública, concursada, recebendo R$ 5 mil por mês; neste caso, não se trata de pessoa pobre; o remédio, contudo, custa R$ 100 mil cada dose. Ela não terá condições de adquiri-lo, preenchendo, portanto, o presente requisito.

TERCEIRO requisito
O terceiro requisito exigido pelo STJ diz respeito a “existência de registro na ANVISA do medicamento”.
Assim, exige-se que o medicamento pretendido já tenha sido aprovado pela ANVISA.
Esta exigência decorre de imposição legal, tendo em vista o disposto no artigo 19-T, II, da Lei nº 8.080/90:
Art. 19-T.  São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:
I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA;
II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.

Esta diretriz está em conformidade com o entendimento do Ministro Marco Aurélio, que em seu voto no julgamento do RE 657.718/MG, que trata precisamente da questão do fornecimento de medicamentos não aprovados pela ANVISA, consigna a seguinte tese: “o registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa é condição inafastável, visando concluir pela obrigação do Estado ao fornecimento”.
Fazendo uma interpretação teleológica do art. 19-T, verifica-se a intenção do legislador foi a de proteger o cidadão dos medicamentos experimentais, sem comprovação científica sobre a eficácia, a efetividade e a segurança do medicamento, a fim de assegurar o direito à saúde e à vida das pessoas.

Modulação dos efeitos
O STJ decidiu modular os efeitos dessa decisão e afirmou que “os critérios e requisitos estipulados somente serão exigidos para os processos que forem distribuídos a partir da conclusão do presente julgamento”.
A modulação tem por base o art. 927, § 3º, do CPC:
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

Dessa forma, a tese fixada neste julgamento não vai afetar os processos que ficaram sobrestados aguardando a definição do tema.

E a oferta de procedimentos terapêuticos não previstos na lista do SUS (inciso II do art. 19-M da Lei nº 8.080/90)?
O julgado acima comentado não abarca essa hipótese. O STJ e o STF ainda terão que se debruçar sobre essa discussão. A “tendência”, contudo, na minha opinião, será adotar os mesmos critérios acima explicados.






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