Dizer o Direito

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Cláusula penal moratória pode ser cumulada com indenização por lucros cessantes?



Imagine a seguinte situação hipotética:
João celebrou contrato de promessa de compra e venda de um apartamento com a construtora MRT Engenharia.
A cláusula quinta do pacto previa que a construtora entregaria o apartamento no dia 31/03/2012, podendo prorrogar a entrega para 30/09/2012 (prazo de tolerância).
Ocorre que a construtora, por mora imputável unicamente a ela, somente entregou o imóvel em 11/01/2013.
Diante disso, João ajuizou ação pedindo a condenação da construtora ao pagamento:
• da multa de 1% ao mês prevista no contrato (multa contratual); e
• dos lucros cessantes, correspondente à quantia que o adquirente poderia obter se estivesse alugando o imóvel (valor do aluguel do imóvel atrasado).

O pedido era para que, tanto o valor da multa como dos lucros cessantes fossem pagos no período de 01/10/2012 até 11/01/2013 (quando ocorreu a efetiva entrega das chaves).

Em que consiste essa multa contratual? Qual é a sua natureza jurídica?
Trata-se de uma cláusula penal moratória.

O que é cláusula penal?
Cláusula penal é...
- uma cláusula do contrato
- ou um contrato acessório ao principal
- em que se estipula, previamente, o valor da indenização que deverá ser paga
- pela parte contratante que não cumprir, culposamente, a obrigação.

A cláusula penal também pode ser chamada de multa convencional, multa contratual ou pena convencional.
A cláusula penal é uma obrigação acessória, referente a uma obrigação principal.
Pode estar inserida dentro do contrato (como uma cláusula) ou prevista em instrumento separado.

Espécies de cláusula penal
Existem duas espécies de cláusula penal:
MORATÓRIA
(compulsória):
COMPENSATÓRIA
(compensar o inadimplemento)
Estipulada para desestimular o devedor a incorrer em mora ou para evitar que deixe de cumprir determinada cláusula especial da obrigação principal. É a cominação contratual de uma multa para o caso de mora.
Estipulada para servir como indenização no caso de total inadimplemento da obrigação principal.
Finalidade: para uns, funciona como punição pelo atraso no cumprimento da obrigação. Para outros autores, teria uma função apenas de inibir o descumprimento e indenizar os prejuízos (não teria finalidade punitiva).
Funciona como uma prefixação das perdas e danos.
Aplicada para o caso de inadimplemento relativo.
Aplicada para o caso de inadimplemento absoluto.
Ex: em uma promessa de compra e venda de um apartamento, é estipulada multa para o caso de atraso na entrega.
Ex: em um contrato para que um cantor faça um show no réveillon, é estipulada uma multa de 100 mil reais caso ele não se apresente.
Art. 411. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de mora, ou em segurança especial de outra cláusula determinada, terá o credor o arbítrio de exigir a satisfação da pena cominada, juntamente com o desempenho da obrigação principal.
Art. 410. Quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor.

Multa moratória = obrigação principal + multa
Multa compensatória = obrigação principal ou multa

Em caso de atraso na entrega do imóvel, é possível a cumulação da indenização por lucros cessantes com a cláusula penal moratória? Em nosso exemplo, será possível condenar a construtora ao pagamento da multa e mais os lucros cessantes?
NÃO.
Para o Min. Luis Felipe Salomão, a natureza da cláusula penal moratória é eminentemente reparatória (indenizatória), possuindo também, reflexamente, uma função dissuasória (ou seja, de desestímulo ao descumprimento).
Tanto isso é verdade que a maioria dos contratos de promessa de compra e venda prevê uma multa contratual por atraso (cláusula penal moratória) que varia de 0,5% a 1% ao mês sobre o valor total do imóvel. Esse valor é escolhido porque representa justamente a quantia que imóvel alugado, normalmente, produziria ao locador.
Assim, como a cláusula penal moratória já serve para indenizar/ressarcir os prejuízos que a parte sofreu, não se pode fazer a sua cumulação com lucros cessantes (que também consiste em uma forma de ressarcimento).
Diante desse cenário, havendo cláusula penal no sentido de prefixar, em patamar razoável, a indenização, não cabe a sua cumulação com lucros cessantes.

Em suma:
A cláusula penal moratória tem a finalidade de indenizar pelo adimplemento tardio da obrigação, e, em regra, estabelecida em valor equivalente ao locativo, afasta-se sua cumulação com lucros cessantes.
STJ. 2ª Seção. REsp 1.498.484-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 22/05/2019 (recurso repetitivo) (Info 651).

Mudança de entendimento
Vale ressaltar que a decisão acima explicada representa uma alteração de entendimento. Isso porque o STJ entendia que:
A cláusula penal moratória não era estipulada para compensar o inadimplemento nem para substituir o adimplemento. Assim, a cominação contratual de uma multa para o caso de mora não interferia com a responsabilidade civil. Logo, não havia óbice a que se exija a cláusula penal moratória juntamente com o valor referente aos lucros cessantes.
Desse modo, no caso de mora, existindo cláusula penal moratória, concedia-se ao credor a faculdade de requerer, cumulativamente: a) o cumprimento da obrigação; b) a multa contratualmente estipulada; e ainda c) indenização correspondente às perdas e danos decorrentes da mora.
Nesse sentido: STJ. 3ª Turma. REsp 1355554-RJ, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 6/12/2012 (Info 513).

Se não houver cláusula penal, continua sendo possível a condenação por lucros cessantes
Nem sempre os contratos de promessa de compra e venda possuem cláusula penal estipulando multa para a construtora em caso de atraso na entrega do imóvel. Assim, se não existir cláusula penal e se houve efetivamente o atraso, será possível condenar a construtora ao pagamento de lucros cessantes.
O atraso na entrega do imóvel enseja pagamento de indenização por lucros cessantes durante o período de mora do promitente vendedor, sendo presumido o prejuízo do promitente comprador.
Os lucros cessantes serão devidos ainda que não fique demonstrado que o promitente comprador tinha finalidade negocial na transação.
STJ. 2ª Seção. EREsp 1.341.138-SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 09/05/2018 (Info 626).

Ampliando um pouco o debate: em um contrato no qual foi estipulada uma cláusula penal COMPENSATÓRIA, caso haja o inadimplemento, é possível que o credor exija o valor desta cláusula penal e mais as perdas e danos?
Também não. Não se pode cumular multa compensatória prevista em cláusula penal com indenização por perdas e danos decorrentes do inadimplemento da obrigação.
A finalidade da cláusula penal compensatória é recompor a parte pelos prejuízos que eventualmente decorram do inadimplemento total ou parcial da obrigação. Não é possível, portanto, cumular cláusula penal compensatória com perdas e danos decorrentes de inadimplemento contratual.
Com efeito, se as próprias partes já acordaram previamente o valor que entendem suficiente para recompor os prejuízos experimentados em caso de inadimplemento, não se pode admitir que, além desse valor, ainda seja acrescido outro, com fundamento na mesma justificativa – a recomposição de prejuízos.

Entendimento atual do STJ:
Em um contrato no qual foi estipulada uma cláusula penal, caso haja o inadimplemento é possível que o credor exija o valor desta cláusula penal e mais as perdas e danos?
NÃO. Isso tanto em caso de cláusula penal moratória como também compensatória.

Lei nº 13.786/2018
Em 28/12/2018, entrou em vigor a Lei nº 13.786/2018, que dispõe sobre a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária.
A Lei nº 13.786/2018 acrescentou o art. 43-A na Lei nº 4.591/64 para tratar sobre o inadimplemento (parcial ou absoluto) em contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas integrantes de incorporação imobiliária ou de loteamento. Veja inicialmente o que diz o caput:
Art. 43-A. A entrega do imóvel em até 180 (cento e oitenta) dias corridos da data estipulada contratualmente como data prevista para conclusão do empreendimento, desde que expressamente pactuado, de forma clara e destacada, não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente nem ensejará o pagamento de qualquer penalidade pelo incorporador.

Assim, o caput do art. 43-A prevê agora expressamente a validade da cláusula de tolerância (que já era admitida pela jurisprudência). Com isso, admite-se como tolerável (aceitável) um atraso de até 180 dias em relação ao prazo previsto para a entrega.
Por outro lado, se o empreendimento for entregue após os 180 dias de tolerância, isso já será considerado inaceitável e o adquirente poderá pedir cumulativamente:
• a resolução do contrato;
• a devolução de todo o valor que pagou; e
• o pagamento da multa estabelecida.

A incorporadora deverá fazer o pagamento em até 60 dias corridos, contados da resolução, acrescidos de correção monetária. É isso que prevê o novo § 1º do art. 43-A:
§ 1º Se a entrega do imóvel ultrapassar o prazo estabelecido no caput deste artigo, desde que o adquirente não tenha dado causa ao atraso, poderá ser promovida por este a resolução do contrato, sem prejuízo da devolução da integralidade de todos os valores pagos e da multa estabelecida, em até 60 (sessenta) dias corridos contados da resolução, corrigidos nos termos do § 8º do art. 67-A desta Lei.

O adquirente pode, no entanto, decidir que, mesmo tendo sido ultrapassado o prazo de tolerância, ele não quer a resolução do contrato, ou seja, ele permanece com interesse no imóvel.
Neste caso, este adquirente irá receber o imóvel e terá direito à indenização de 1% do valor efetivamente pago à incorporadora, para cada mês de atraso, acrescido de correção monetária.
Veja a redação do § 2º do art. 43-A:
§ 2º Na hipótese de a entrega do imóvel estender-se por prazo superior àquele previsto no caput deste artigo, e não se tratar de resolução do contrato, será devida ao adquirente adimplente, por ocasião da entrega da unidade, indenização de 1% (um por cento) do valor efetivamente pago à incorporadora, para cada mês de atraso, pro rata die, corrigido monetariamente conforme índice estipulado em contrato.

Vale ressaltar que a multa do § 1º, vista acima, é decorrente da inexecução total da obrigação (houve a resolução do contrato).
O § 2º, por sua vez, prevê uma indenização para a mora (o contrato não foi desfeito, tendo sido apenas cumprido com atraso).
Assim, as sanções têm natureza jurídica e finalidade diversas, sendo, portanto, inacumuláveis, conforme prevê o § 3º do art. 43-A:
§ 3º A multa prevista no § 2º deste artigo, referente a mora no cumprimento da obrigação, em hipótese alguma poderá ser cumulada com a multa estabelecida no § 1º deste artigo, que trata da inexecução total da obrigação.

Como fica a questão da aplicação da Lei nº 13.786/2018 no tempo? Essas regras da Lei nº 13.786/2018, que acabei de explicar, podem ser aplicadas para os contratos celebrados antes da sua vigência?
NÃO. As regras da Lei nº 13.786/2018, que entrou em vigor no dia 28/12/2018, não podem ser aplicadas os contratos anteriores à sua vigência.
A nova lei só poderá atingir contratos celebrados posteriormente à sua entrada em vigor.
Nas palavras do Min. Luis Felipe Salomão:
“(...) a Lei n. 13.786/2018 não será aplicada para a solução dos casos em julgamento, de modo a trazer segurança e evitar que os jurisdicionados que firmaram contratos anteriores sejam surpreendidos, ao arrepio do direito adquirido e do ato jurídico perfeito.”

O que vale é a data da celebração do contrato (e não a data do inadimplemento). Desse modo, imagine que o contrato foi celebrado em janeiro de 2017. Em janeiro de 2019, terminou o prazo de tolerância e a construtora não entregou o empreendimento. Neste caso, não se aplicam as regras trazidas pela Lei nº 13.786/2018 porque o pacto é anterior a esse diploma.
Assim, podemos fixar as conclusões:
• contratos celebrados até 27/12/2018: em caso de inadimplemento, aplica-se a jurisprudência do STJ firmada neste REsp 1.498.484-DF, não incidindo a Lei nº 13.786/2018.
• contratos celebrados a partir de 28/12/2018: devem ser aplicadas as regras da Lei nº 13.786/2018.




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