sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O art. 40 da Lei 6.766/79 prevê um poder-dever do Município de regularizar os loteamentos irregulares ou clandestinos



Imagine a seguinte situação hipotética:
João era proprietário de uma grande extensão de terra, não edificada (“sem nada construído”), localizada em área urbana.
Ele, então, teve uma “ideia”: decidiu lotear esse terreno e vender esses lotes.
Para fazer isso, João deveria ter cumprido uma série de providências previstas na Lei nº 6.766/79 (que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano). Tais exigências, contudo, são difíceis e trabalhosas e, por isso, João não as cumpriu.
Em resumo, João fez um loteamento irregular e passou a firmar com as pessoas compromissos de compra e venda dos lotes.

Loteamento clandestino
Loteamento irregular
Loteamento clandestino é aquele que não foi aprovado pela administração pública municipal.
Loteamento irregular: é aquele que foi aprovado pela administração pública municipal, mas que:
• não foi inscrito ou
• não foi executado em conformidade com o plano e as plantas aprovadas.

Ação proposta pelo MP
O Ministério Público, ao tomar conhecimento, ajuizou ação civil pública contra João e o Município pedindo que:
a) João seja condenado a promover a aprovação do loteamento perante o Município, devendo, para tanto, atender as exigências da legislação municipal e federal;
b) o Município seja condenado, nos termos do art. 40 da Lei nº 6.766/79, a executar as obras de infraestrutura necessárias para a regularização do loteamento irregular, caso o loteador, depois de notificado, não tomar as medidas adequadas:
Art. 40. A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, se desatendida pelo loteador a notificação, poderá regularizar loteamento ou desmembramento não autorizado ou executado sem observância das determinações do ato administrativo de licença, para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes.

O Município contestou a demanda afirmando que não teria esse dever e que o art. 40 acima transcrito é muito claro ao dizer que o Município “poderá” regularizar. Logo, a regularização do loteamento é um ato discricionário do poder público.

É possível condenar o Poder Público neste caso? O Município possui uma faculdade ou um dever de regularizar o loteamento?
SIM. Não se trata de uma mera faculdade. O Município possui o poder-dever de regularizar o loteamento.
Para o STJ, o art. 40 da Lei nº 6.766/79 prevê o poder-poder do Município de regularizar loteamento não autorizado ou executado sem observância das determinações do ato administrativo de licença, configurando, portanto, ato vinculado da municipalidade.
O art. 30, VIII, da CF/88 afirma que:
Art. 30. Compete aos Municípios:
(...)
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;

Para evitar lesão aos padrões de desenvolvimento urbano, o Município não pode eximir-se do dever de regularizar loteamentos irregulares se os loteadores e responsáveis, devidamente notificados, deixam de proceder com as obras e melhoramentos indicados pelo ente público.
Desse modo, o procedimento previsto no art. 40 da Lei nº 6.766/79 é obrigatório (vinculante) para o Município, não sendo meramente facultativo.
O Município tem, assim, o dever de promover o asfaltamento das vias, a implementação de iluminação pública, redes de energia, água e esgoto, os calçamentos etc.

Mas o Município fará isso com recursos públicos?
SIM. O Município deverá, ele próprio e às suas expensas, fazer as obras necessárias, cobrando depois, do loteador, o ressarcimento pelos custos que teve com a regularização.

A regularização feita pelo Município deve obedecer à legislação
Vale ressaltar que o dever do Município, segundo a redação do art. 40, tem por objetivo “evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes”.
Isso significa que não se exige do Município que faça a regularização de loteamentos clandestinos (não aprovados pelo Município) em terrenos que ofereçam perigo imediato para os moradores lá instalados, assim como os que estejam em Áreas de Preservação Permanente, de proteção de mananciais de abastecimento público, ou mesmo fora do limite de expansão urbana fixada nos termos dos padrões de desenvolvimento local.
A ordem judicial, nesses casos, deve ser apenas para exigir que o Poder Público faça a remoção das pessoas alojadas nesses lugares insalubres, impróprios ou inóspitos, assegurando-lhes habitação digna e segura (o verdadeiro direito à cidade).
Nesse sentido, veja o que afirma o § 5º do art. 40:
Art. 40 (...)
§ 5º A regularização de um parcelamento pela Prefeitura Municipal, ou Distrito Federal, quando for o caso, não poderá contrariar o disposto nos arts. 3º e 4º desta Lei, ressalvado o disposto no § 1º desse último.

Os arts. 3º e 4º da Lei nº 6.766/79, citados no dispositivo acima transcrito, são exatamente aqueles que definem os requisitos mínimos para a implementação dos loteamentos e impõem, como não poderia deixar de ser, observância à legislação urbanística local.
Mesmo na hipótese de loteamentos irregulares (aprovados, mas não inscritos ou executados adequadamente), a obrigação do Poder Público restringe-se à infraestrutura necessária para sua inserção na malha urbana, como ruas, esgoto, iluminação pública etc., de modo a atender aos moradores já instalados, sem prejuízo do também dever-poder da Administração de cobrar dos responsáveis os custos em que incorrer na sua atuação saneadora.
Assim, por óbvio que o art. 40 da Lei nº 6.766/79 não autoriza que o Município descumpra a sua própria legislação urbanística.

Em suma:
Existe o poder-dever do Município de regularizar loteamentos clandestinos ou irregulares. Esse poder-dever, contudo, fica restrito à realização das obras essenciais a serem implantadas em conformidade com a legislação urbanística local (art. 40, caput e § 5º, da Lei nº 6.799/79).
Após fazer a regularização, o Município tem também o poder-dever de cobrar dos responsáveis (ex: loteador) os custos que teve para realizar a sua atuação saneadora.
STJ. 1ª Seção. REsp 1.164.893-SE, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 23/11/2016 (Info 651).





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