quarta-feira, 24 de junho de 2020

Comentários à Lei 14.016/2020, que autoriza restaurantes e similares a doarem alimentos excedentes a pessoas em situação de vulnerabilidade ou de risco alimentar ou nutricional



O problema das sobras de alimentos nos restaurantes e similares
É muito comum que, em estabelecimentos que trabalhem com fornecimento de comida, tais como restaurantes, lanchonetes, padarias, hotéis e supermercados, sobrem alimentos que estão preparados, mas não foram consumidos e que logo perderão a validade.
Para se ter uma ideia, segundo dados da ABRASEL (RMC), em cada restaurante sobram, em média, 5kg de alimentos por dia. Multiplique isso pela quantidade de restaurantes e bares e se chegará a muitas toneladas de alimentos que sobram constantemente.
Geralmente, esses alimentos são simplesmente descartados, ou seja, jogados fora.
Essa é uma triste realidade, considerando que existem muitas pessoas passando fome.

E por que os donos dos estabelecimentos não doam esses alimentos para pessoas que precisam?
O principal motivo alegado é o de que não havia segurança para isso.
As associações de bares, restaurantes, hotéis etc. não recomendavam que seus associados doassem os alimentos excedentes porque se a pessoa que os recebeu e os consumiu eventualmente tivesse alguma indisposição de saúde, o estabelecimento poderia ser processado e condenado a pagar indenização. Além disso, poderia haver implicações criminais.
Desse modo, tais associações sempre defenderam que houvesse uma legislação que definisse, de forma mais clara, o regime de responsabilidade nesses casos. A Lei precisaria também estabelecer protocolos de segurança alimentar, considerando que depois de doado, o alimento, se não for consumido imediatamente, precisará ser transportado, acondicionado, manipulado e servido ao destinatário final. Em cada uma dessas etapas, é indispensável que se mantenham os cuidados com a conservação e com a higiene a fim de evitar eventual contaminação.

Leis estaduais e municipais
Em alguns Estados e Municípios, foram editadas leis autorizando que restaurantes e similares fizessem essa doação. No entanto, a insegurança jurídica permanecia, considerando que o tema envolve responsabilidade civil e até direito penal, matérias que são de competência legislativa privativa da União (art. 22, I, da CF/88). Assim, tais leis estaduais ou municipais não podiam simplesmente isentar ou mesmo abrandar a responsabilidade dos estabelecimentos que adotassem a boa prática da doação.

Lei nº 14.016/2020
Dentro do contexto acima explicado, foi editada a Lei nº 14.016/2020, que expressamente autoriza a doação de excedentes de alimentos para o consumo humano. São as chamadas “sobras limpas”.

Estabelecimentos ficam expressamente autorizados a fazer a doação dos alimentos
Pela nova Lei, os estabelecimentos que produzem ou forneçam alimentos ficam expressamente autorizados a doar os alimentos excedentes que ainda não foram comercializados, desde que cumpridos alguns critérios. Veja a redação do caput do art. 1º:
Art. 1º Os estabelecimentos dedicados à produção e ao fornecimento de alimentos, incluídos alimentos in natura, produtos industrializados e refeições prontas para o consumo, ficam autorizados a doar os excedentes não comercializados e ainda próprios para o consumo humano que atendam aos seguintes critérios:
I – estejam dentro do prazo de validade e nas condições de conservação especificadas pelo fabricante, quando aplicáveis;
II – não tenham comprometidas sua integridade e a segurança sanitária, mesmo que haja danos à sua embalagem;
III – tenham mantidas suas propriedades nutricionais e a segurança sanitária, ainda que tenham sofrido dano parcial ou apresentem aspecto comercialmente indesejável.

O inciso II trata daqueles produtos que estão com as embalagens amassadas, avariadas, mas sem comprometer o seu conteúdo. Normalmente, os clientes dos supermercados não querem comprar os produtos nessas condições e eles são, atualmente, descartados, mesmo sem ter qualquer vício no conteúdo. A ideia é estimular que essas mercadorias sejam doadas.
O inciso III versa sobre as frutas, vegetais ou outros alimentos esteticamente “feios”, mas que ainda estão em boas condições.

Doação deve ser inteiramente gratuita e desinteressada
A doação será realizada de modo gratuito, sem a incidência de qualquer encargo que a torne onerosa (art. 1º, § 1º).
Assim, não é possível exigir qualquer contraprestação – direta ou indireta – da pessoa beneficiada.
Se houver alguma espécie de contraprestação em favor do estabelecimento, não se aplica o regime jurídico da Lei nº 14.016/2020, incidindo as regras gerais do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor.

Quais estabelecimentos estão autorizados, pela Lei nº 14.016/2020, a doar os alimentos?
A lei prevê um rol exemplificativo:
• empresas;
• hospitais;
• supermercados;
• cooperativas;
• restaurantes;
• lanchonetes
• e todos os demais estabelecimentos que forneçam alimentos preparados prontos para o consumo de trabalhadores, de empregados, de colaboradores, de parceiros, de pacientes e de clientes em geral.

Como é feita essa doação?
A doação poderá ser feita:
1) diretamente;
Ex: ao final da noite, o gerente do restaurante doa alimentos para moradores de rua.

2) em colaboração com o poder público;
Ex: supermercado firma convênio com o Município para doar, gratuitamente, alimentos para creches públicas.

3) com a participação de entidades intermediárias.
Assim, a doação pode ser feita por meio de:
• bancos de alimentos*;
• entidades beneficentes de assistência social certificadas; ou
• entidades religiosas.

* “os bancos alimentares ou bancos de alimentos são organizações sem fins lucrativos baseadas no voluntariado e que têm como objetivo a angariação de donativos de bens alimentares e a recuperação de excedentes alimentares da sociedade para os redistribuir entre pessoas necessitadas, evitando qualquer desperdício ou mau uso.” (https://www.wikiwand.com/pt/Banco_de_Alimentos)

Quem pode ser beneficiado com as doações?
Os beneficiários da doação serão pessoas, famílias ou grupos em situação de vulnerabilidade ou de risco alimentar ou nutricional (art. 2º).

Não há relação de consumo
A doação a que se refere a Lei nº 14.016/2020, em nenhuma hipótese, configurará relação de consumo (art. 2º, parágrafo único).
Trata-se de importante garantia para os estabelecimentos porque, com isso, não se aplica a eles o rigoroso regime de responsabilidade objetiva por fato do produto, previsto no art. 12 do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

Com isso, o indivíduo beneficiado com a doação não poderá ser enquadrado no conceito de consumidor (art. 2º do CDC), nem mesmo na figura equiparada de bystander, tratada no art. 17 do CDC.

Qual foi o regime de responsabilidade civil do doador previsto pela Lei nº 14.016/2020?
Veja o que diz o caput do art. 3º:
Art. 3º O doador e o intermediário somente responderão nas esferas civil e administrativa por danos causados pelos alimentos doados se agirem com dolo.

No direito brasileiro, em regra, a responsabilidade civil é subjetiva, de forma que o agente será responsabilizado se agiu com dolo ou culpa (art. 186 c/c art. 927 do Código Civil).
No caso da doação gratuita de alimentos, o legislador abrandou essa regra e determinou que só haverá responsabilidade se o doador ou o intermediário tiverem agido com dolo. Assim, mesmo que tenham atuado com culpa, não serão responsabilizados.
A despeito de reconhecer a boa intenção do legislador diante de um tema tão sensível e socialmente relevante, penso que a previsão foi exacerbada e que ela poderá gerar uma proteção insuficiente às pessoas que recebem as doações. Entendo que a Lei deveria ter previsto que o doador e o intermediário também teriam responsabilidade caso tivessem agido com “culpa grave”, ou seja, quando demonstraram total descaso, mesmo que sem intenção de causar dano.
Mutatis mutandis, seria o caso de se aplicar o mesmo raciocínio que levou o STJ a editar a súmula 145:
Súmula 145-STJ: No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave.

Não foi essa, contudo, a opção legal.

Preocupação com a cadeia de conservação do alimento e previsão de rompimento do nexo causal
Uma das preocupações dos restaurantes e similares está no fato de que, no momento da doação, o alimento está dentro do prazo de validade e em condições de ser consumido. Ocorre que, se for mal conservado ou se passar muito tempo, ele poderá se tornar impróprio para o consumo.
Assim, não há como o doador garantir que aquele alimento doado em perfeitas condições permanecerá dessa forma no exato instante do consumo, caso este não seja imediato.
Pensando nisso, o legislador inseriu uma regra afirmando que o doador somente possui responsabilidade pela higidez do alimento no momento da doação, não sendo responsável por eventuais danos decorrentes da má-conservação, transporte inadequado ou incorreta manipulação. Isso porque são fatos posteriores, supervenientes, sobre os quais o doador não terá mais controle. Há, portanto, ausência de responsabilidade pelo rompimento do nexo causal.
Veja o que diz o § 1º do art. 3º:
Art. 3º (...)
§ 1º A responsabilidade do doador encerra-se no momento da primeira entrega do alimento ao intermediário ou, no caso de doação direta, ao beneficiário final.

Dessa forma, o estabelecimento só responderá se, no momento da doação, o alimento era impróprio para o consumo.

Responsabilidade do intermediário
Os restaurantes e similares muitas vezes não possuem condições de entregar pessoalmente para aqueles que necessitam dos alimentos. É o caso, por exemplo, da doação de alimentos para uma creche, asilo ou para uma entidade de recuperação de dependentes químicos. Essa logística de transporte e entrega pode, portanto, ser feita por um terceiro que, se for também economicamente desinteressado, tem a sua responsabilidade regida pela Lei nº 14.016/2020.
A responsabilidade desse intermediário nos mesmos moldes acima explicados, encerra-se quando ele entrega o alimento, não podendo ser punido caso a entidade recebedora não acondicione corretamente os produtos ou não os manipule em condições adequadas. Confira:
Art. 3º (...)
§ 2º A responsabilidade do intermediário encerra-se no momento da primeira entrega do alimento ao beneficiário final.
§ 3º Entende-se por primeira entrega o primeiro desfazimento do objeto doado pelo doador ao intermediário ou ao beneficiário final, ou pelo intermediário ao beneficiário final.

Responsabilidade penal
Qual é o crime praticado pelo sócio-gerente de um restaurante que doa alimentos que estão estragados?
Em tese, ele pratica o crime do art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/90:
Art. 7º Constitui crime contra as relações de consumo:
(...)
IX - vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo;
Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.
Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II, III e IX pune-se a modalidade culposa, reduzindo-se a pena e a detenção de 1/3 (um terço) ou a de multa à quinta parte.

A Lei nº 14.016/2020 inova ao exigir “dolo específico” do agente para que ele seja responsabilizado criminalmente:
Art. 4º Doadores e eventuais intermediários serão responsabilizados na esfera penal somente se comprovado, no momento da primeira entrega, ainda que esta não seja feita ao consumidor final, o dolo específico de causar danos à saúde de outrem.

Dolo específico
O dolo específico ocorre quando “o agente deseja praticar a conduta visando a uma finalidade específica, que é elementar do tipo. Ex.: art. 159 – sequestrar pessoa com o fim de obter vantagem como condição ou preço do resgate.” (ALVES, Jamil Chaim. Manual de Direito Penal. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 249).
O contrário de dolo específico é o dolo geral, isto é, quando o tipo penal não exige nenhuma finalidade especial.
A expressão “dolo específico” está atualmente em desuso e a doutrina prefere falar em elemento subjetivo do tipo (ou elemento subjetivo do injusto).

Com base no art. 4º podemos chegar a duas conclusões:
1) os doadores e eventuais intermediários disciplinados pela Lei nº 14.016/2020 só responderão pelo crime do art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/90 se tiverem o dolo específico (finalidade especial) de causar danos à saúde de outrem;
2) a figura culposa do parágrafo único do art. 7º da Lei nº 8.137/90 não se aplica para os doadores e eventuais intermediários disciplinados pela Lei nº 14.016/2020.

Instituições públicas e privadas como intermediárias
Para que os objetivos da Lei sejam concretizados, o ideal seria a criação de órgãos públicos e de associações privadas que funcionassem como intermediários entre os estabelecimentos e as pessoas que necessitam de doação. Tais órgãos e instituições funcionariam curadores atestando a qualidade dos alimentos doados e os mantendo em condições adequadas para serem entregues às pessoas que mais necessitam.

Vigência
A Lei nº 14.016/2020 entrou em vigor na data de sua publicação (24/06/2020).






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