quinta-feira, 18 de junho de 2020

É inconstitucional a suspensão do exercício profissional em razão do inadimplemento de anuidades devidas à entidade de classe



Imagine a seguinte situação hipotética:
João, advogado, encontra-se há quatro anos sem pagar a anuidade devida a OAB.
Diante disso, houve uma representação contra ele no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB.
O TED instaurou processo disciplinar por inadimplência de anuidade e condenou o advogado pela infração disciplinar do art. 34, XXIII, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB):
Art. 34. Constitui infração disciplinar:
(...)
XXIII - deixar de pagar as contribuições, multas e preços de serviços devidos à OAB, depois de regularmente notificado a fazê-lo;

O TED aplicou, em desfavor do advogado, a sanção de suspensão, prevista no art. 37, I, da Lei nº 8.906/94:
Art. 37. A suspensão é aplicável nos casos de:
I - infrações definidas nos incisos XVII a XXV do art. 34;
(...)

O que significa isso? O que representa essa sanção de suspensão?
Significa que esse advogado não poderá exercer a advocacia no período em que estiver suspenso.
Essa suspensão perdurará até que o advogado pague as anuidades em atraso, inclusive com correção monetária.
É o que preconizam os §§ 1º e 2º do art. 37 do Estatuto da OAB:
Art. 37 (...)
§ 1º A suspensão acarreta ao infrator a interdição do exercício profissional, em todo o território nacional, pelo prazo de trinta dias a doze meses, de acordo com os critérios de individualização previstos neste capítulo.
§ 2º Nas hipóteses dos incisos XXI e XXIII do art. 34, a suspensão perdura até que satisfaça integralmente a dívida, inclusive com correção monetária.

João ajuizou ação, na Justiça Federal, contra a OAB argumentando que essa suspensão seria inconstitucional porque violaria o livre exercício profissional (art. 5º, XIII, da CF/88).

O STF concordou com os argumentos de João? Essa previsão é inconstitucional?
SIM. A suspensão do exercício profissional em virtude de inadimplência da anuidade traduz-se em sanção política, medida que é rechaçada pela jurisprudência do STF.

O que é sanção política?
Os tributos em atraso devem ser cobrados pelos meios judiciais (execução fiscal) ou extrajudiciais (lançamento tributário, protesto de CDA) legalmente previstos. Existem, portanto, instrumentos legais para satisfazer os créditos tributários.
Justamente por isso, não se pode fazer a cobrança de tributos por meios indiretos, impedindo, cerceando ou dificultando a atividade econômica desenvolvida pelo contribuinte devedor. Quando isso ocorre, a jurisprudência afirma que foram aplicadas “sanções políticas”, ou seja, formas “enviesadas de constranger o contribuinte, por vias oblíquas, ao recolhimento do crédito tributário” (STF ADI 173). Exs.: apreensão de mercadorias, não liberação de documentos, interdição de estabelecimentos.
A cobrança do tributo por vias oblíquas (sanções políticas) é rechaçada por quatro súmulas do STF e STJ:
Súmula 70-STF: É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.
Súmula 323-STF: É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.
Súmula 547-STF: Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.
Súmula 127-STJ: É ilegal condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento de multa, da qual o infrator não foi notificado.

Desse modo, a orientação jurisprudencial do STF e do STJ é a de que não se pode adotar sanções políticas, que se caracterizam pela utilização de meios de coerção indireta que impeçam ou dificultem o exercício da atividade econômica, para constranger o contribuinte ao pagamento de tributos em atraso.

Nas palavras do Min. Edson Fachin:
“As sanções políticas consistem em restrições estatais no exercício da atividade tributante que culminam por inviabilizar injustificadamente o exercício pleno de atividade econômica ou profissional pelo sujeito passivo de obrigação tributária, logo representam afronta aos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e do devido processo legal substantivo.”

O conceito de sanção política fala em cobrança de “tributos” por vias oblíquas... mas, no caso concreto, está sendo discutida a cobrança de anuidades da OAB... a anuidade da OAB tem natureza jurídica de tributo?
SIM. O STF entende que a anualidade (anuidade) é considerada tributo, sendo classificada como contribuição profissional ou corporativa:
O entendimento iterativo do STF é na direção de as anuidades cobradas pelos conselhos profissionais caracterizarem-se como tributos da espécie “contribuições de interesse das categorias profissionais”, nos termos do art. 149 da Constituição da República.
STF. Plenário. ADI 4697, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 06/10/2016.

Ofensa à livre iniciativa e à liberdade profissional
Os dispositivos do Estatuto da OAB que punem, com suspensão, a inadimplência do advogado, representam ofensa à livre iniciativa e à liberdade profissional.
A contribuição anual devida à OAB, depois de certificada pela diretoria do Conselho, constitui título executivo extrajudicial (art. 46, da Lei nº 8.906/94). Logo, pode ser cobrada mediante execução, que tramita na Justiça Federal (STF RE 595.332, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 23/06/2017).
Desse modo, há outros meios alternativos para cobrança da dívida civil, sendo certo que a suspensão do exercício profissional inviabiliza o mínimo existencial do devedor. Isso demonstra que essa medida estatal afronta o devido processo legal substantivo e, por consequência, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Tese fixada pelo STF:
É inconstitucional a suspensão realizada por conselho de fiscalização profissional do exercício laboral de seus inscritos por inadimplência de anuidades, pois a medida consiste em sanção política em matéria tributária.
STF. Plenário. RE 647885, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 27/04/2020 (Repercussão Geral – Tema 732).

Repare que o caso enfrentado envolvia a OAB, mas a tese foi fixada pelo STF de modo propositalmente amplo, abrangendo todo e qualquer conselho profissional.

Dispositivos do Estatuto da OAB declarados inconstitucionais
O STF declarou a inconstitucionalidade do art. 34, XXIII e do art. 37, § 2º, da Lei nº 8.906/94.



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