sábado, 20 de agosto de 2022

Incide imposto de renda sobre o valor recebido a título de pensão alimentícia decorrente do direito de família?

 

A situação concreta foi a seguinte:

O art. 3º, § 1º, da Lei nº 7.713/88 e os arts. 5º e 54 do Decreto nº 3.000/99 (Regulamento do Imposto de Renda (RIR) preveem que incide imposto de renda sobre os valores recebidos em dinheiro a título de pensão alimentícia. Confira:

Lei nº 7.713/88:

Art. 3º O imposto incidirá sobre o rendimento bruto, sem qualquer dedução, ressalvado o disposto nos arts. 9º a 14 desta Lei.

§ 1º Constituem rendimento bruto todo o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, os alimentos e pensões percebidos em dinheiro, e ainda os proventos de qualquer natureza, assim também entendidos os acréscimos patrimoniais não correspondentes aos rendimentos declarados.

(...)

 

Decreto nº 3.000/99:

Art. 5º No caso de rendimentos percebidos em dinheiro a título de alimentos ou pensões em cumprimento de acordo homologado judicialmente ou decisão judicial, inclusive alimentos provisionais ou provisórios, verificando-se a incapacidade civil do alimentado, a tributação far-se-á em seu nome pelo tutor, curador ou responsável por sua guarda (Decreto-Lei nº 1.301, de 1973, arts. 3º, § 1º, e 4º).

(...)

Art. 54. São tributáveis os valores percebidos, em dinheiro, a título de alimentos ou pensões, em cumprimento de decisão judicial ou acordo homologado judicialmente, inclusive a prestação de alimentos provisionais (Lei nº 7.713, de 1988, art. 3º, § 1º).

 

O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) propôs ADI contra esses dispositivos afirmando que é inconstitucional a incidência do imposto de renda sobre os valores recebidos em dinheiro a título de alimentos ou de pensão alimentícia estabelecida com base no direito de família.

 

Primeira pergunta: o IBDFAM possuía legitimidade para propor essa ADI?

SIM. O STF considerou que o IBDFAM se enquadra no conceito de entidade de classe de âmbito nacional, nos termos do art. 103, IX, da CF/88.

A Corte também entendeu que estava presente o requisito da pertinência temática.

Os dispositivos impugnados versam a respeito da incidência do imposto de renda sobre os valores recebidos em dinheiro a título de pensão alimentícia, entre outras hipóteses. Note-se que uma das principais fontes da obrigação de pagar alimentos é o direito de família. E um dos objetivos do IBDFAM é “atuar como força representativa nos cenários nacional e internacional e instrumento de intervenção político-científica, ajustados aos interesses da família e aos direitos de exercício da cidadania”.

Há, portanto, correlação entre os objetivos institucionais do requerente e o objeto da ação direta de inconstitucionalidade.

 

Segunda pergunta: o pedido foi acolhido? Pode-se dizer que é inconstitucional a incidência do imposto de renda sobre valores recebidos a título de alimentos ou pensão alimentícia fixadas segundo o direito de família?

SIM. Vamos entender com calma.

 

A materialidade do imposto de renda está relacionada à existência de acréscimo patrimonial

O imposto de renda está previsto no art. 153, III, da CF/88:

Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:

(...)

III - renda e proventos de qualquer natureza;

 

Quando o dispositivo fala em “renda e proventos de qualquer natureza”, isso significa que somente é possível instituir imposto de renda se houver “acréscimo patrimonial”.

Por isso, é comum você ouvir ou ler a seguinte afirmação: “a materialidade do imposto de renda está relacionada à existência de acréscimo patrimonial.” Repetindo: só haverá incidência de imposto de renda se houver acréscimo patrimonial.

 

O IR só pode incidir uma única vez sobre a mesma realidade

O imposto de renda só pode incidir uma única vez sobre a mesma realidade, sob pena de ocorrência de bis in idem vedado pelo sistema tributário.

 

Pressupostos necessários para que haja a obrigação de alimentar

A obrigação de pagar alimentos ou pensão alimentícia oriunda do direito de família tem os seguintes pressupostos:

a) existência de vínculo de parentesco ou de reciprocidade;

b) necessidade da pessoa que reclama os alimentos, sendo isso presumido no caso de o reclamante ser menor;

c) possibilidade da pessoa que se encontra obrigada a pagá-los;

d) proporcionalidade na fixação do valor a ser pago a título de alimentos.

 

Personagens da obrigação alimentar

De um lado da obrigação está o devedor (alimentante) que, por ter renda ou provento de qualquer natureza, consegue ter a possibilidade de pagar os alimentos ou a pensão alimentícia.

Do outro lado está o credor dessa pensão, que necessita dos alimentos para, em regra, viver de modo compatível com sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.

Esse quadro revela a seguinte realidade: o devedor dos alimentos, quando recebe a sua renda ou o provento de qualquer natureza (acréscimos patrimoniais) já paga o imposto de renda, tendo em vista que isso configura o fato gerador desse tributo. Depois de pagar o imposto, o alimentante utiliza o que sobrou para adimplir a obrigação alimentícia.

O valor recebido pelo alimentado é um montante retirado dos acréscimos patrimoniais (rendas ou proventos) auferidos pelo alimentante (e que já foram objeto de IR).

Por isso, submeter também os valores recebidos pelo alimentado ao pagamento do IR representa nova incidência do mesmo tributo sobre a mesma realidade, configurando bis in idem camuflado e sem justificação legítima, em evidente violação ao texto constitucional.

Nas exatas palavras do Min. Dias Toffoli:

“Alimentos ou pensão alimentícia oriundos do direito de família não são renda nem provento de qualquer natureza do credor dos alimentos, mas simplesmente montantes retirados dos rendimentos (acréscimos patrimoniais) recebidos pelo alimentante para serem dados ao alimentado. Nesse sentido, para o último, o recebimento de valores a título de alimentos ou de pensão alimentícia representa tão somente uma entrada de valores.”

 

A inconstitucionalidade dessa cobrança fica ainda mais evidente quando se compara duas situações:

Situação 1: imagine um homem e uma mulher que são casados e que possuem um filho. Suponhamos que o provedor da família é apenas o homem e que a mulher não tenha qualquer rendimento;

Situação 2:  imagine agora um ex-casal, ou seja, um homem e uma mulher que se separaram. No divórcio, a sentença determinou que o homem pagasse pensão alimentícia ao filho e à ex-esposa.

 

Na primeira situação, o cônjuge e o filho comum são considerados como dependentes do homem, para fins de declaração de imposto de renda, em razão de necessitarem financeiramente dele.

Na segunda situação, a ex-esposa e o filho do casal não podem ser considerados dependentes do homem na declaração do imposto de renda. Apesar disso, é evidente, no presente caso, que ambos continuam a dele depender financeiramente.

Com a separação, o que muda é a forma por meio da qual esse último passa a suprir as necessidades daqueles dois sujeitos: antes, o homem supria as necessidades diretamente; depois do divórcio, passa a fazer isso por meio do pagamento da pensão alimentícia. Note-se, assim, que não há, por força da pensão alimentícia, nova riqueza dada aos alimentados.

Além do mais, em ambas as situações a quantia destinada à manutenção dos três sujeitos é a mesma, sendo ela, reitere-se, tributada quando de seu recebimento pelo mantenedor. Todavia, em razão da aludida separação e do recebimento dos alimentos (segunda situação), parte dessa quantia (a relativa às pensões alimentícias) passa a ser tributada mais uma vez, sem justificação legítima, pelo imposto de renda, ofendendo, desse modo, o texto constitucional.

 

Em suma:

É inconstitucional norma que prevê a incidência do imposto de renda sobre valores percebidos pelo alimentado a título de alimentos ou pensão alimentícia.

STF. Plenário. ADI 5422/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 3/6/2022 (Info 1057).

 

Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, julgou procedente o pedido para dar interpretação conforme a Constituição ao art. 3º, § 1º, da Lei nº 7.713/88, aos arts. 4º e 46 do Anexo do Decreto nº 9.580/2018, e aos arts. 3º, caput e § 1º; e 4º do Decreto-lei nº 1.301/1973, com o intuito de afastar a incidência do imposto de renda sobre valores decorrentes do direito de família percebidos pelos alimentados a título de alimentos ou de pensões alimentícias.

Obs: a decisão acima se limitou a analisar os alimentos e pensões alimentícias estabelecidas com base no direito de família, pois o IBDFAM, ao formular suas razões, não apresentou fundamentos de inconstitucionalidade da incidência do imposto sobre outras realidades.


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