quarta-feira, 24 de agosto de 2022

A possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução penal é conferida exclusivamente ao Ministério Público, não cabendo ao Poder Judiciário determinar ao Parquet que o oferte

 

ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (ANPP)

O julgado a seguir comentado trata sobre acordo de não persecução penal (ANPP).

Antes de verificar o que foi decidido, irei fazer uma breve revisão sobre o tema com base na excelente obra de Leonardo Barreto (Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2021).

Se estiver sem tempo, pode ir diretamente para a explicação do julgado logo em seguida:

 

Acordo de não persecução penal (ANPP)

A Lei nº 13.964/2019 (“Pacote Anticrime”) inseriu o art. 28-A ao CPP, prevendo o instituto do acordo de não persecução penal (ANPP), que pode ser assim conceituado:

- é um acordo (negócio jurídico)

- celebrado entre o Ministério Público e o investigado, mas com a necessidade de homologação judicial

- firmado, em regra, antes do início da ação penal (em regra, é pré-processual)

- ajuste esse permitido apenas para certos tipos de crimes

- no ajuste, o investigado se compromete a cumprir determinadas condições

- e caso cumpra integralmente o acordo, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.

 

Mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal

Segundo o princípio da obrigatoriedade, havendo justa causa e estando preenchidos todos os requisitos legais, o membro do Ministério Público é obrigado a oferecer a denúncia.

Trata-se de um dever, e não uma faculdade, não sendo reservado ao Ministério Público um juízo discricionário sobre a conveniência e oportunidade de seu ajuizamento.

Pode-se dizer, então, que o ANPP é uma exceção ao princípio da obrigatoriedade. Outro exemplo de exceção: o acordo de colaboração premiada, no qual o MP pode conceder ao colaborador como benefício o não oferecimento da denúncia.

 

Justiça Penal Consensual

O instituto do ANPP está diretamente ligado ao movimento chamado Justiça Penal Consensual ou Negociada ou Pactual.

O Min. Reynaldo Soares da Fonseca afirma que se trata de instrumento para otimização dos recursos públicos e a efetivação da chamada Justiça multiportas, com a perspectiva restaurativa (HC 607003-SC).

 

Formalidades do acordo

O acordo será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor (§ 3º do art. 28-A).

A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para ficar registrado que esse mesmo investigado não poderá fazer novo ANPP no prazo de 5 anos (§ 12 do art. 28-A).

 

O acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia

A Lei nº 13.964/2019, no ponto em que institui o ANPP, é considerada lei penal de natureza híbrida, admitindo conformação entre a retroatividade penal benéfica e o tempus regit actum.

O ANPP se esgota na etapa pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de recebimento da denúncia.

O recebimento da denúncia encerra a etapa pré-processual, devendo ser considerados válidos os atos praticados em conformidade com a lei então vigente.

Dessa forma, a retroatividade penal benéfica incide para permitir que o ANPP seja viabilizado a fatos anteriores à Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.

Assim, mostra-se impossível realizar o ANPP quando já recebida a denúncia em data anterior à entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019.

STJ. 5ª Turma. HC 607003-SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 24/11/2020 (Info 683).

STF. 1ª Turma. HC 191464 AgR, Rel. Roberto Barroso, julgado em 11/11/2020.

 

Requisitos (caput e § 2º do art. 28-A)

REQUISITOS PARA QUE O MP POSSA PROPOR O ANPP

1) não ser o caso de arquivamento

Se não houver justa causa ou existir alguma outra razão que impeça a propositura da ação penal, não é caso de oferecer o acordo, devendo o MP pedir o arquivamento do inquérito policial ou investigação criminal.

2) o investigado deve ter confessado a prática da infração penal

O ANPP exige que o investigado tenha confessado formal (em ato solene) e circunstancialmente (com detalhes) a prática da infração penal.

O art. 18, § 2º, da Res. 181/2017-CNMP exige que a confissão seja registrada em áudio e vídeo.

3) infração penal foi cometida sem violência e sem grave ameaça

A infração penal não pode ter sido cometida com violência ou grave ameaça.

Prevalece que é cabível ANPP se a infração foi cometida com violência contra coisa.

Assim, o ANPP somente é proibido se a infração foi praticada com grave ameaça ou violência contra pessoa.

4) a pena mínima da infração penal é menor que 4 anos

A infração penal cometida deve ter pena mínima inferior a 4 anos.

Se a pena mínima for igual ou superior a 4 anos, não cabe.

Para aferição da pena mínima, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.

Aplicam-se ao ANPP, por analogia, as súmulas 243-STJ e 723-STF.

5) o acordo deve se mostrar necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime no caso concreto

Esse requisito revela que a propositura, ou não, do acordo está atrelada a certo grau de discricionariedade do membro do MP, que avaliará se essa necessidade e suficiência estão presentes no caso concreto.

6) não caber transação penal

Se for cabível transação penal (art. 76 da Lei nº 9.099/95), o membro do MP deve propor a transação (e não o ANPP). Isso porque se trata de benefício mais vantajoso ao investigado.

Por outro lado, mesmo que seja cabível a suspensão condicional do processo, ainda assim, o membro do MP pode propor o ANPP.

7) o investigado deve ser primário

Se o investigado for reincidente (genérico ou específico), não cabe ANPP.

8) não haver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas

Regra: se houver elementos probatórios que indiquem que o investigado possui uma conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, não cabe ANPP.

Exceção: se essas infrações pretéritas que o investigado se envolveu forem consideradas “insignificantes”, será possível propor ANPP.

9) o agente não pode ter sido beneficiado nos 5 anos anteriores ao cometimento da infração com outro ANPP, transação penal ou suspensão condicional do processo

No momento de decidir se vai propor o ANPP, o membro do MP deverá analisar se, nos últimos 5 anos (contados da infração), aquele investigado já foi beneficiado:

· com outro ANPP;

· com transação penal ou

· com suspensão condicional do processo.

10) a infração praticada não pode estar submetida à Lei Maria da Penha

Não cabe ANPP nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

 

Condições

O Ministério Público irá propor que o investigado cumpra as seguintes condições “ajustadas cumulativa e alternativamente”:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de 1/3 a 2/3, em local a ser indicado pelo juízo da execução;

IV - pagar prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

 

Recusa do MP de oferecer o acordo

No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 do CPP (§ 14º do art. 28-A).

 

Obrigatória a realização de audiência

Conforme vimos acima, o ANPP precisa de homologação judicial.

Antes de decidir pela homologação, o juiz deverá designar audiência para analisar:

a) a legalidade do acordo, isto é, se todos os requisitos do art. 28-A do CPP foram cumpridos; e

b) a voluntariedade, ou seja, se o investigado deseja realmente o ajuste. Para isso, o magistrado irá fazer oitiva do investigado na presença do seu defensor.

 

“Quanto à voluntariedade, o magistrado verificará a ocorrência de algum tipo de vício de vontade, como o erro, o dolo e a coação. Além disso, deverá observar se o agente possui pleno e integral conhecimento do conteúdo do acordo por ele celebrado. No que diz respeito à legalidade, o juiz deverá examinar se o ANPP foi firmado em atendimento às hipóteses legais, assim como se as suas cláusulas estão em consonância com o regramento contido no art. 28-A do CPP. Certo é que o magistrado não poderá apreciar o mérito/conteúdo do acordo, matéria privativa do Ministério Público e do investigado, dentro do campo de negociação reconhecido pela Justiça Penal Consensual, sob pena de violação da sua imparcialidade e do próprio sistema acusatório.” (MOREIRA ALVES, Leonardo Barreto. Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 356).

 

Devolução dos autos ao MP

Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor (§ 5º do art. 28-A).

 

Recusa à homologação

O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º do art. 28-A acima mencionado (§ 7º do art. 28-A).

Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia (§ 8º do art. 28-A).

 

Homologação do acordo

Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal (§ 6º do art. 28-A).

 

Vítima deverá ser informada da celebração do acordo e de eventual descumprimento

A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento (§ 9º do art. 28-A).

 

Cumprimento do acordo

Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade (§ 13 do art. 28-A).

 

Descumprimento do acordo

Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia (§ 10 do art. 28-A).

O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo (§ 11 do art. 28-A).

 

EXPLICAÇÃO DO JULGADO

Feita essa revisão, imagine agora a seguinte situação adaptada:

João foi denunciado pela prática do crime de corrupção ativa, previsto no art. 333, parágrafo único do Código Penal:

Art. 333. Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional.

 

Após o encerramento da instrução processual, entrou em vigor a Lei nº 13.964/2019 que acrescentou o art. 28-A no CPP.

Diante disso, o juiz abriu vista ao Procurador da República para que se manifestasse sobre o interesse em propor acordo de não persecução penal.

O Procurador da República manifestou-se pela impossibilidade de celebração do acordo, requerendo o prosseguimento do processo.

A defesa não concordou e pediu a aplicação do § 14 do art. 28-A, do CPP:

Art. 28-A (...)

§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.

 

A 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF manteve a recusa do Procurador da República em oferecer o acordo afirmando que ele estava certo.

Ainda irresignada, a defesa impetrou habeas corpus no Tribunal Regional Federal insistindo na tese de que deveria ser oferecido o ANPP.

O TRF denegou o pedido da defesa que, então, recorreu ao STJ alegando que o Ministério Público não fundamentou adequadamente a recusa ao oferecimento do ANPP, razão pela qual seria possível a intervenção do Poder Judiciário para obrigar o Parquet.

 

O STJ concordou com o pedido da defesa?

NÃO.

No caso concreto, o ANPP pretendido deixou de ser ofertado em razão de o Ministério Público ter considerado que a celebração do acordo não seria suficiente para a reprovação e prevenção do crime, pois violaria o postulado da proporcionalidade em sua vertente de proibição de proteção deficiente, destacando que a conduta criminosa foi praticada no contexto de uma rede criminosa envolvendo vários empresários do ramo alimentício e servidores do Ministério da Agricultura.

Não há ilegalidade na recusa do oferecimento de proposta de acordo de não persecução penal quando o representante do Ministério Público, de forma fundamentada, constata a ausência dos requisitos subjetivos legais necessários à elaboração do acordo, de modo que este não atenderia aos critérios de necessidade e suficiência em face do caso concreto.

 

Não se trata de direito subjetivo do investigado

A possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução penal é conferida exclusivamente ao Ministério Público, não constituindo direito subjetivo do investigado:

As condições descritas em lei são requisitos necessários para o oferecimento do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), importante instrumento de política criminal dentro da nova realidade do sistema acusatório brasileiro. Entretanto, não obriga o Ministério Público, nem tampouco garante ao acusado verdadeiro direito subjetivo em realizá-lo. Simplesmente, permite ao Parquet a opção, devidamente fundamentada, entre denunciar ou realizar o acordo, a partir da estratégia de política criminal adotada pela Instituição.

O art. 28-A do Código de Processo Penal, alterado pela Lei 13.964/19, foi muito claro nesse aspecto, estabelecendo que o Ministério Público 'poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições'.

STF. 1ª Turma. HC 191124 AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 08/04/2021.

 

Cuidando-se de faculdade do Parquet, a partir da ponderação da discricionariedade da propositura do acordo, mitigada pela devida observância do cumprimento dos requisitos legais, não cabe ao Poder Judiciário determinar ao Ministério Público que oferte o acordo de não persecução penal. Nesse sentido:

O Poder Judiciário não pode impor ao Ministério Público a obrigação de ofertar acordo de não persecução penal (ANPP).

Não cabe ao Poder Judiciário, que não detém atribuição para participar de negociações na seara investigatória, impor ao MP a celebração de acordos.

STF. 2ª Turma. HC 194677/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/5/2021 (Info 1017).


O STJ considerou que estava devidamente fundamentado o não oferecimento do acordo de não persecução penal, em razão do não preenchimento de todos os requisitos legais e tendo o Ministério Público entendido que o acordo não era suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Por essa razão, o Tribunal entendeu que não havia nenhuma flagrante ilegalidade a ser sanada.

 

Em suma:


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