terça-feira, 16 de agosto de 2022

O juiz, ao analisar se uma associação tem pertinência temática para propor ação civil pública, deve adotar interpretação restritiva ou flexível?

 

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

“M” é uma indústria de bolachas e biscoitos. Seus produtos são todos feitos à base de farinha de trigo. Em razão disso, existe a presença de glúten na sua composição. Por conta dessa circunstância, as embalagens dos seus produtos possuem a seguinte informação destinada ao consumidor: “contém glúten”. 

Ocorre que Associação Brasileira de Defesa dos Consumidores de Plano de Saúde (Abracon) entendeu que essa informação seria incompleta para a proteção efetiva das pessoas.

Diante disso, ingressou com ação civil pública contra a indústria pedindo que a ré fosse condenada a veicular no rótulo dos alimentos industrializados que produz a informação com a seguinte mensagem mais completa: “Contém glúten. O glúten é prejudicial à saúde das pessoas com doença celíaca.”

A indústria contestou alegando, dentre outros argumentos, que a Abracon seria parte ilegítima por falta de representatividade adequada e de pertinência temática.

Segundo argumentou a ré, o objetivo estatutário da autora é a defesa dos consumidores de plano de saúde (e não a promoção da defesa de direitos coletivos de celíacos).

 

Antes de prosseguir, cumpre indagar: o que é a pertinência temática na ação civil pública?

A pertinência temática exigida pela legislação, para a configuração da legitimidade em ações coletivas, consiste no nexo material entre os fins institucionais do demandante e a tutela pretendida naquela ação. É o vínculo de afinidade temática entre o legitimado e o objeto litigioso, a harmonização entre as finalidades institucionais dos legitimados e o objeto a ser tutelado na ação civil pública (STJ. 4ª Turma. REsp 1357618/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 26/09/2017).

Na lição da doutrina, trata-se da “harmonização entre as finalidades institucionais das associações civis ou dos órgãos públicos legitimados e o objeto a ser tutelado na ação civil pública. Em outras palavras, mencionadas pessoas somente poderão propor a ação civil pública em defesa de um interesse cuja tutela seja de sua finalidade institucional” (DE SOUZA, Motauri Ciocchetti. Ação Civil Pública e Inquérito Civil. 5ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 78).

Assim, o autor de uma ACP deverá, em regra, demonstrar a sua pertinência temática para aquele interesse tutelado.

 

O que acontece caso o juiz entenda que não existe pertinência temática?

Se não houver pertinência temática, a parte deve ser considerada ilegítima para o ajuizamento da ACP, o que ocasionará a extinção do processo sem resolução de mérito (art. 485, VI, CPC).

Veja como o tema já foi cobrado em prova:

þ (Promotor de Justiça MP/SP 2019) A Associação “X”, constituída em 1999 com a única finalidade de tutela coletiva dos direitos dos consumidores, ingressou com ação civil pública ambiental em face do Município “Y”, pretendendo impedir a continuidade de obras de alargamento de um logradouro, sob alegação de que a ampliação poderia causar dano ao meio ambiente. O magistrado, embora reconhecendo o atendimento do requisito da pré-constituição, considerou ausente a pertinência temática para a propositura da demanda. Nesse caso, o processo deve ser extinto, sem resolução do mérito, por ausência de legitimidade ativa. (certo)

 

Voltando ao caso concreto: o STJ acolheu a tese da indústria?

NÃO. Como vimos acima, a pertinência temática é o nexo que deve existir entre a finalidade institucional da autora da ACP e aquilo que se pretende na ação.

Essa análise, contudo, não pode ser extremamente restritiva. Ao contrário. O juízo de verificação da pertinência temática há de ser responsavelmente flexível e amplo, em contemplação ao princípio constitucional do acesso à justiça, especialmente se considerarmos a máxima efetividade dos direitos fundamentais.

No caso concreto, a Abracon possui entre os fins institucionais a promoção da segurança alimentar e nutricional, assim como a melhoria da qualidade de vida, especialmente no que diz respeito a qualidade de produtos e serviços, estando, dessa forma, configurada a pertinência temática.

 

Em suma:

O juízo de verificação da pertinência temática para a proposição de ações civis públicas há de ser responsavelmente flexível e amplo, em contemplação ao princípio constitucional do acesso à justiça, mormente a considerar-se a máxima efetividade dos direitos fundamentais.

STJ. 4ª Turma. AgInt nos EDcl no REsp 1.788.290-MS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 24/05/2022 (Info 738).

 

Qual é o entendimento do STJ quanto ao mérito da demanda? A indústria deverá trazer essa informação requerida pela associação?

SIM. O STJ já decidiu em 2017 que:

O fornecedor de alimentos deve complementar a informação-conteúdo "contém glúten" com a informação-advertência de que o glúten é prejudicial à saúde dos consumidores com doença celíaca.

STJ. Corte Especial. EREsp 1515895-MS, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 20/09/2017 (Info 612).

 

DOD Plus – Tema correlato:

Mesmo sem 1 ano de constituição, associação poderá ajuizar ACP para que fornecedor preste informações ao consumidor sobre produtos com glúten

Como regra, para que uma associação possa propor ACP, ela deverá estar constituída há pelo menos 1 ano.

Exceção. Este requisito da pré-constituição poderá ser dispensado pelo juiz quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido (§ 4º do art. 5º da Lei nº 7.347/85). Neste caso, a ACP, mesmo tendo sido proposta por uma associação com menos de 1 ano, poderá ser conhecida e julgada.

Como exemplo da situação descrita no § 4º do art. 5º, o STJ decidiu que:

É dispensável o requisito temporal (pré-constituição há mais de um ano) para associação ajuizar ação civil pública quando o bem jurídico tutelado for a prestação de informações ao consumidor sobre a existência de glúten em alimentos.

STJ. 2ª Turma. REsp 1600172-GO, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 15/9/2016 (Info 591).



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