domingo, 2 de julho de 2023

Desde que respeitadas as exigências legais, o reconhecimento de pessoas é uma prova válida e pode ser utilizada para condenação; isso não significa, contudo, que, em todo e qualquer caso, o reconhecimento da vítima seja prova cabal e irrefutável

Imagine a seguinte situação adaptada:

No dia 27 de julho de 2019, Renata, ao estacionar seu carro, foi abordada por um homem que, empunhando arma de fogo, anunciou um assalto. O sujeito determinou que a vítima deixasse o veículo, assumindo o controle do automóvel e fugindo em direção ignorada.

Renata foi imediatamente até uma Delegacia de Polícia reportar o roubo. Na ocasião, ela descreveu o homem como “jovem, pardo, com cavanhaque e magro”.

Em 12 de agosto de 2019, cerca de 15 dias após o fato, a vítima foi chamada novamente na Delegacia e, nesta segunda ocasião, descreveu o autor do roubo como sendo um homem negro. O escrivão mostrou um álbum fotográfico e a vítima reconheceu João da Silva como sendo o autor do crime.

João da Silva foi denunciado.

Em Juízo, a vítima foi levada a sala própria de reconhecimento, na qual havia quatro pessoas, dentre elas João da Silva.

A vítima apontou João da Silva como sendo o autor do delito.

O acusado, na ocasião do seu interrogatório, negou a autoria delitiva.

João da Silva foi condenado pelo crime de roubo qualificado.

O réu interpôs recurso de apelação alegando a insuficiência probatória porque a condenação foi baseada apenas na palavra da vítima.

O TJ/RJ manteve a sentença.

A defesa impetrou habeas corpus ao STJ alegando, em síntese, que não restou demostrada a autoria delitiva, uma vez que o reconhecimento fotográfico é considerado de frágil valor probante, ainda que ratificado em juízo, bem como que o reconhecimento pessoal, embora tenha o seu valor, não é absoluto para, isoladamente, autorizar uma condenação criminal, pois a vítima já estaria convencida da identidade de seu suposto roubador.

Aduziu que o testemunho da vítima, único fundamento para a condenação do paciente, não foi preciso e harmonioso para tornar o reconhecimento feito na fase inquisitorial regular e válido, eis que mudou o teor de sua declaração inicial e cerca de 15 dias depois apresentou mais características do agente do que havia feito no dia dos fatos.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa? O réu foi absolvido?

SIM.

Desde que respeitadas as exigências legais, o reconhecimento de pessoas é uma prova válida e pode ser valorado pelo Julgador para fins de condenação. Isso não significa, contudo, que, em todo e qualquer caso, a afirmação do ofendido de que identifica determinada pessoa como o agente do crime seja prova cabal e irrefutável. Do contrário, a função dos órgãos de Estado encarregados da investigação e da acusação (Polícia e Ministério Público) seria relegada a segundo plano. O Magistrado, por sua vez, estaria reduzido à função homologatória da acusação formalizada pelo ofendido.

Assim, podemos dizer que o reconhecimento positivo, que respeite as exigências legais “é válido, sem, todavia, força probante absoluta, de sorte que não pode induzir, por si só, à certeza da autoria delitiva, em razão de sua fragilidade epistêmica” (HC 712.781/RJ, Rel. Ministro Rogerio Schietti).

Há diferentes graus de confiabilidade de um reconhecimento. Se decorrido curto lapso temporal entre o crime e o ato e se a descrição do suspeito é precisa, isenta de contradições e de alterações com o passar do tempo - o que não ocorre no caso em tela - a prova, de fato, merece maior prestígio.

No entanto, em algumas hipóteses o reconhecimento deve ser valorado com maior cautela, como, por exemplo, nos casos em que já decorrido muito tempo desde a prática do delito, quando há contradições na descrição declarada pela vítima e até mesmo na situação em que esse relato porventura não venha a corresponder às reais características físicas do suspeito apontado.

A confirmação, em juízo, do reconhecimento fotográfico extrajudicial, por si só, não torna o ato seguro e isento de erros involuntários, pois “uma vez que a testemunha ou a vítima reconhece alguém como o autor do delito, há tendência, por um viés de confirmação, a repetir a mesma resposta em reconhecimentos futuros, pois sua memória estará mais ativa e predisposta a tanto” (STJ. 6ª Turma. HC 712.781/RJ, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 15/3/2022).

No caso concreto, as provas produzidas nos autos revelam que:

i) a condenação do paciente foi baseada tão somente no depoimento da vítima e nos reconhecimentos realizados na fase extrajudicial e em juízo;

ii) não foram ouvidas outras testemunhas de acusação;

iii) a res furtiva não foi apreendida em poder do acusado; e

iv) o réu negou a imputação que lhe foi dirigida.

 

Diante desse cenário, percebe-se que as graves incongruências no reconhecimento do paciente não podem ser sanadas mesmo porque não há outras provas em desfavor do condenado.

Desse modo, considerando que o decreto condenatório está amparado tão somente nos reconhecimentos formalizados pela vítima e, ainda, as divergências e inconsistências na referida prova, aferíveis de plano, conclui-se que há dúvida razoável a respeito da autoria delitiva, razão pela qual é necessário adotar a regra de julgamento que decorre da máxima in dubio pro reo, tendo em vista que o ônus de provar a imputação recai sobre a acusação.

 

Em suma:

 

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