segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Não é possível aproveitar o tempo anterior de posse de terceiros para complementação do quinquênio necessário à declaração de prescrição aquisitiva no caso de usucapião especial urbana

Usucapião

Usucapião é...

- um instituto jurídico por meio do qual a pessoa que fica na posse de um bem (móvel ou imóvel)

- por determinados anos

- agindo como se fosse dono

- adquire a propriedade deste bem ou outros direitos reais a ele relacionados (exs: usufruto, servidão)

- desde que cumpridos os requisitos legais.

 

Usucapião especial urbana

A usucapião especial urbana é prevista no art. 183 da CF/88, sendo também reproduzida no art. 1.240 do CC e no art. 9º da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade).

Para se ter direito à usucapião especial urbana, é necessário preencher os seguintes requisitos:

a) 250m2: a pessoa deve estar na posse de uma área urbana de, no máximo, 250m2;

b) 5 anos: a pessoa deve ter a posse mansa e pacífica dessa área por, no mínimo, 5 anos ininterruptos, sem oposição de ninguém;

c) Moradia: o imóvel deve estar sendo utilizado para a moradia da pessoa ou de sua família;

d) Não ter outro imóvel: a pessoa não pode ser proprietária de outro bem imóvel (urbano ou rural).

 

Algumas observações:

• Não se exige que a pessoa prove que tinha um justo título ou que estava de boa-fé;

• Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez;

• É possível usucapião especial urbana de apartamentos (nesse caso, quando for calcular se o tamanho do imóvel é menor que 250m2, não se incluirá a área comum, como salão de festas etc, mas tão somente a parte privativa);

• O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

 

A usucapião especial urbana foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio pela Constituição da República de 1988, e tem por escopo “permitir o acesso dos mais humildes a melhores condições de moradia, bem como para fazer valer o respeito à dignidade da pessoa humana, erigido a um dos fundamentos da República (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal)” (trecho do voto do Min. Dias Toffoli no julgamento do RE 422.349).

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

Em julho de 2003, João vendeu um imóvel para Daniel.

Em 2008, Antônio vendeu para Paulo.

Em 2012, Paulo vendeu para Nonato.

Essas “vendas” ocorreram sem registro no registro de imóveis.

Assim, o imóvel ainda se encontra registrado em nome de João.

Em 2014, Nonato ajuizou ação de usucapião especial urbana.

O autor argumentou que está na posse do imóvel há apenas 2 anos. No entanto, pediu que fosse acrescentado à sua posse a posse exercida por seus antecessores, a fim de conseguir atingir o tempo de 5 anos exigido pelo art. 1.240 do Código Civil.

 

Em tese (sem ainda enfrentarmos o caso concreto), é possível a soma das posses para fins de usucapião?

SIM. Isso está previsto no art. 1.243 do Código Civil:

Art. 1.243. O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé.

 

A soma das posses inter vivos é chamada de acessio possessionis, algo como “compra da posse”.

A soma das posses causa mortis, isto é, decorrente de herança, é denominada sucessio possessionis.

 

No caso concreto, essa soma das posses é possível? É possível o aproveitamento do tempo anterior de posse de terceiros para complementação do quinquênio (5 anos) no caso de usucapião especial urbana?

NÃO.

Se formos analisar apenas o Código Civil, vamos perceber que não existe nenhuma proibição de que seja feita a soma das posses para a usucapião especial urbana. O art. 1.243 do CC não restringe a possibilidade de acréscimo/soma de posses a alguma modalidade específica de usucapião. Assim, o art. 1.243 apresenta previsão de caráter genérico.

Vale ressaltar, contudo, que o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), que também rege a usucapião pro-moradia, autoriza apenas a sucessio possessionis (soma das posses causa mortis), não mencionando a possibilidade de accessio possessionis. Veja o que diz o art. 9º, § 3º:]

Seção V

Da usucapião especial de imóvel urbano

Art. 9º Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

(...)

§ 3º Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.

 

Diante desse cenário de antinomia aparente, o STJ concluiu que não é possível a acessio possessionis na usucapião especial urbana, especialmente porque essa modalidade de usucapião tem como uma de suas características a pessoalidade da posse. Nesse sentido, confira a lição da doutrina:

“A pessoalidade da posse é fundamental. Tanto na usucapião urbana como na rural, ninguém poderá adquirir propriedade pela habitação no local por outra pessoa (detentor ou possuidor direto), sob pena de ferir o desiderato constitucional. É por isso que a usucapião urbana também é conhecida como usucapião pro moradia. Essa exigência de habitação efetiva na coisa desqualifica a possibilidade de êxito para aqueles que apenas eventualmente ocupam o imóvel, como naquelas hipóteses de utilização de bens nas épocas de férias e feriados.

(...)

A outro giro, parece-nos incompatível com a finalidade social prevista na Constituição que o possuidor pretenda beneficiar-se da acessio possessionis para completar os cinco anos de posse. Não poderá o candidato a usucapião somar o seu prazo ao de quem lhe cedeu a posse, já que os cinco anos pedem posse pessoal.

Ao inverso, a sucessio possessionis é permitida, pois o que se defere é a proteção à entidade familiar, e não a um de seus membros isoladamente. Assim, se ao tempo do óbito o sucessor já residia no local - mesmo que não tenha coabitado desde o início da posse -, não haverá quebra do período possessório de cinco anos.

(...)

Importa asseverar a inadmissibilidade de uma interpretação literal do dispositivo [artigo 1.243 do CC), pois a mesma acarretaria ofensa à teleologia de Constituição Federal. Isto é, admitir a acessão de posses no prazo exíguo de cinco anos, inevitavelmente, sacrifica a exigência de se beneficiar as entidades familiares, culminando por incentivar práticas puramente comerciais de aquisição e venda de posses para fins de usucapião.”

(FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: direitos reais. v. 5, 18 ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 485).

 

Essa foi também a conclusão exposta no Enunciado n. 317 aprovado na IV Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal, cujo teor ora se transcreve: “A accessio possessionis de que trata o art. 1.243, primeira parte, do Código Civil não encontra aplicabilidade relativamente aos arts. 1.239 e 1.240 do mesmo diploma legal, em face da normatividade da usucapião constitucional urbano e rural, arts. 183 e 191, respectivamente”.

Distancia-se do escopo constitucional entender-se pela compatibilidade entre o instituto da accessio possessionis com a usucapião especial urbana, porquanto inarredável o caráter pessoal e humanitário inerente a essa. Trata-se de modalidade de aquisição da propriedade imóvel singular, com especificidades próprias, a exemplo do prazo relativamente diminuto, comparativamente aos demais modos, bem assim a exigência da finalidade precípua de moradia e de o requerente não ser titular de nenhum outro imóvel urbano ou rural.

 

Em suma:


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